Allfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ... Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (1974)

Escrevivendo e Photoandando

No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.

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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.

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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.

VN

terça-feira, 29 de novembro de 2016

O SER E O NADA


O dilema de Rogger - Publicar ou não publicar, eis a questão !


Alguém escreve:
Sabem o que somos? Nada. Para alguns menos que nada. Muito do que escrevemos por aqui,é isso mesmo...NADA!!!

e eu reflexiono:
O SER E O NADA - Todas e cada uma das pessoas são ALGUÉM, com virtudes e defeitos e não apenas com perfeições que só existem no "reino" asséptico da virtualidade, inodora, silenciosa e confusionista.

Sobre sermos NADA ... E, desdramatizando, eu que o diga. LOL Ás vezes escrevemos, telefonamos ou enviamos sms personalizados a pessoas que estimamos e pensamos que nos estimam para lá do vazio das palavras, prova de que essas pessoas são para nós muitíssimo mais que NADA e o retorno é o silêncio.

É a vida com lantejoulas e com espelhos baços, sem abraços nem laços, os traços lassos de solidão e lassidão.

Para amanhã e dias/noites subsequentes, um Bom Dia ou Boa Noite de ou da Restauração, da independência ou de comes e bebes.

domingo, 27 de novembro de 2016

Em Cuba do Alentejo ou entre o fanatismo e a ignorância atrevida

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AM says:
O que eu acho lamentável é que prestem homenagem a uma terra batizada de Cuba por fanatismo dos comunas que dominam a Câmara desde o 25 de Abril! É triste um tipo chegar ali ao centro e dar com aquela estátua do Che Guevara disfarçado de Colombo, como costumava desfilar no Carnaval de Havana. Tem razão o Bispo de Beja quando apela à intervenção do Governo para que a vila volte ao seu nome original de Santa Maria da Burra!

comentário meu
Há o fanatismo e há a ignorância. Qualquer pesquisa pela Net esclarece que o nome de "Cuba" é anterior à tomada da povoação aos Árabes por Sancho II, no século XIII, derivando o nome provavelmente do termo "Caaba", santuário sagrado de Meca. E foi esse o nome pelo qual a povoação desde então tem sido conhecida, desde a Monarquia até aos dias de hoje.

Para anunciar a morte de Fidel Castro a TVI faz um "directo" de Cuba ... no Alentejo

https://aventar.eu/2016/11/26/fidel-o-alentejano/#comment-213081


Uma figura marcante

* Victor Nogueira

O inefável Cisco Assis perora salomónicamente sobre Fidel Castro, começando com elogios e terminando com ataques ao liberticida marxismo-leninismo de Che e da URSS. Pois, para ele,concluo, liberticidas não são os EUA, profundamente respeitadores dos direitos humanos, quer dentro quer fora de portas, uma sociedade paradisíaca, que em nome da Liberdade Infinita bombardeiam países que se lhes opõem, de que são exemplo as bombas nucleares  sobre um Japão derrotado, em Hiroshima e Nagasaki, recado destinado a uma URSS vencedora e  para continuar a campanha contra o bolchevismo empreendida por Hitler. Liberticidas não são os EUA, que impuseram um bloqueio económico a Cuba, tudo em nome da liberdade, da democracia e dos direitos humanos.

Os mesmíssimos EUA que com a actual UE apoiavam a "democracia orgânica" de Salazar, esse estrénuo defensor da Liberdade e baluarte da luta contra o "comunismo ateu", Talvez Cisco Assis devesse ter à cabeceira o "Canto e as Armas" ou a "Praça da Canção"  do seu agora "camarada" Manuel Alegre, que escreveu um poema intitulado "Exílio" no qual afirma que vem dizer que não tem medo, pois a verdade é mais forte que as algemas.

"Venho dizer-vos que não tenho medo
A verdade é mais forte do que as algemas,
Venho dizer-vos que não há degredo
Quando se traz a alma cheia de poemas.

Pode ser uma ilha ou uma prisão
Em qualquer lado eu estou presente,
Tomo o navio da canção
E vou direito ao coração de toda a gente."


 Podem escolher a versão musicada interpretada por Adriano ...


Letra e Música: Manuel Alegre, Luís Cília e Adriano Correia de Oliveira
Álbum: Adriano Correia de Oliveira (1967)


 ou por Luís Cilia


Canção muito divulgada mas infelizmente não na versão do seu autor aqui apresentada, inserida no seu primeiro disco "Portugal Angola - Chants de Lutte" de 1964 e reeditada no LP "Meu País" de 1970. Esta canção conheceu a sua maior divulgação quando em Portugal Adriano Correia de Oliveira a divulgou já que eram proibidos os discos de Luis Cília. Belo e simples poema de Manuel Alegre.

OPINIÃO

Uma figura marcante

27 de Novembro de 2016, 

Um pequeno documentário intitulado “PM”, da autoria de Sabá Cabrera Infante e de Orlando Jiménez Leal e produzido em 1961 em pleno processo revolucionário cubano, originou uma violenta polémica política que terminou com um celebre discurso proferido por Fidel Castro na Biblioteca Nacional. O discurso intitulava-se “Palavras aos intelectuais” e continha uma mensagem clara bem resumida naquela que se tornaria a sua frase com maior repercussão: “dentro da revolução tudo, contra a revolução nada”. Pouco tempo antes, no âmbito desse mesmo encontro, uma das maiores figuras da literatura cubana, Virgilio Piñera, havia pedido a palavra para pronunciar apenas as seguintes palavras: “quero dizer-vos que tenho medo”. Tinha razões para isso. Muitas coisas já se tinham passado desde a noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro de 1959. Nessa noite o ditador Fulgêncio Batista abandonara Cuba abrindo as portas para a vinda de um grupo de jovens libertadores. (...)



continua em https://www.publico.pt/2016/11/27/mundo/noticia/uma-figura-marcante-1752785

sábado, 26 de novembro de 2016

Fidel Castro foi um grande…


* Victor Nogueira

Aceito e respeito a discordância ou contra-argumentação factual, posso entender o ódio (de classe), mas ler certas notícias ou as caixas de comentários do Expresso, do Observador e de blogs de direita ou mesmo dalguns alinhados com o PS é um exercício deveras incómodo. É caso para dizer, livremo-nos do "amor",  da "tolerância" , da "democracia  em liberdade"  de gente de que AZ é um exemplo.

O post num certo blog colectivo era apenas o que se segue:

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Fidel Castro foi um grande…

(é favor acabar a frase)

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A minha reflexão na caixa de comentários ....




Victor Nogueira

Com este post o XXX pretende apurar até onde vão a imaginação, as frases feitas e o vocabulário da maioria dos seus leitores, conforme a saliva que pavlovamente segreguem ?

e dois exemplos de comentários de outrem




JC

Eh pá, essa é fácil! Foi um GRANDE que, mesmo depois de morto, põe a falar dele os pequenos e os infinitamente pequenos de quem ninguém fala nem falará, pois ninguém alguma vez saberá quem são, foram ou serão.
Foi um cientista que conseguiu e continua a conseguir, mesmo depois de morto, o prodígio de pôr micróbios a falar para lhe chamar nomes, o que, só por si, é um feito científico que lhe valerá, certamente, o Nobel da Biologia a título póstumo.
Foi um gajo a quem o privilégio do nascimento teria dado uma vida confortável, mas que optou pelo desconforto do mato e o risco de um tiro na mona só porque achava que os homens não nasceram para viver de joelhos, vê lá tu como era excêntrico!
Foi um homem que fez asneiras e cometeu erros, como é próprio dos homens, já que de homens precisamos e de anjos não.
Foi um daqueles homens cheios de defeitos cujas qualidades conseguem que milhões de outros homens cheios de defeitos e qualidades se orgulhem simplesmente de pertencer à espécie humana.




AZ

ò abc, vendedor está mal escrito e se vires o maltez manda-o pró caralho. o fidel foi um grande filho da puta como todos os ditadores e que todos os aprendizes de ditador veneram. não há cá contemplações para quem persegue, prende ou tortura adversários políticos e reprime a liberdade de expressão.




AZ

porra, nunca pensei haver tanto democrata a simpatizar com um ditador e é curioso serem os mesmos que apresentam disfuncionalidade orgasmica permanente quando se fala no donaldo trampas. ide pró caralho ò imbecis de merda.

6 CANÇÕES POR FIDEL



6 CANÇÕES POR FIDEL

A 1ª vez que ouvi falar de Fidel foi em 1956, com a virulenta campanha contra a Revolução Cubana movida pela imprensa ocidental, incluindo a de Luanda, onde imperava o "Visado pela Censura" fascista portuguesa. 


Independentemente do rumo que a Revolução Angolana e o MPLA tiveram depois de 1975, Cuba teve um papel determinante na derrota do regime de apartheid na África do Sul e na independência da Namíbia, tal como as Guerras de Libertação lideradas pelo PAIGC, FRELIMO e MPLA contribuíram para o 25 de Abril. 

A História é feita de avanços e processos cujo desenvolvimento e desenlace estão muito para lá do que o nossa efémera passagem por este Planeta e pelo Universo permite apreender e compreender.

Por Fidel Castro e pela Revolução Cubana, 6 canções:

 Os Meninos do Huambo, por Rui Mingas



 Hasta Siempre, Comandante, por Carlos Puebla



 
Le Chant des Partisans, por Jean Ferrat



 Gracias a la Vida, por Violeta Parra



 Grândola, Vila Morena, por José Afonso


 Do You Hear the People Sing ?, da opereta "Os Miseráveis", baseada no romance de Victor Hugo


  

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

memória de zeca afonso e do fascismo


memória de zeca afonso e do fascismo

 José Afonso - Um amigo

Victor Nogueira.

Para muitos de nós o Zeca foi uma referência e um amigo. Ao vivo, só o vi duas vezes; num dos últimos espectáculos, no Clube Naval Setubalense, quase sempre sentado por causa da doença que o mataria, e outra no meio da multidão num dia normal na Praça do Bocage. O Zeca tinha uma voz rica e era um homem solidário, que os senhores do dinheiro através dos seus tiranetes e marionetas, quiseram calar, maneira eufemística de dizer ASSASSINAR, que é o que decorre da proibição de trabalhar, do activo repúdio do comunismo e doutras formas subversivas que resultam do dia de trabalho à hora, à peça, ou do desemprego, seja ele resultante da informação de bufos e PIDES, seja pela prepotência do patronato, seja este analfabeto ou matarroano ou mal vestido, ou doutorado, bem vestido, bem penteado e escanhoado, para além de perfumado e bem falante.

.Durante o meu «exílio» em Évora, a música foi uma das minhas amizades e companhias. Entre outra, o canto de intervenção, de que destaco três «amigos» - o Zeca, o Adriano e o Joaquin Diaz. Para não falar, noutra onda, no Jacques Brell, no Charles Aznavour, no Gilbert Bécaud e na Edith Piaff.
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Por isso, andando por ali e por aqui, convido-vos a visitar José Afonso. A entrada é aqui -> Maria Faia - José Afonso
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Mas há mais deambulações em Cidade sem muros nem fronteiras e Zeca Afonso: conjugar o verbo ser

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* Victor Nogueira.

Em José Afonso - Um amigo falei das duas únicas vezes em que me lembro de ter visto o Zeca Afonso pessoalmente. Mas já o conhecia de Luanda, duma data, que situa nos anos 60 do milénio passado, quando em casa recebi um telefonema do meu colega do Liceu e amigo Virgílio que me disse um pouco em surdina: «Ouve este disco que acabou de me chegar às mãos». E assim, pelo telefone, ouvi pela 1ª vez o José Afonso, interpretando «Os Vampiros».

Terminado o Liceu, rumei para Economia no Porto, onde apenas estive 15 dias e mudei-me para Económicas em Lisboa e depois para Sociologia em Évora. Esta era uma sociedade muito fechada e nós, os «estrangeiros das colónias», medianamente abonados, formávamos um grupo: o Henrique da Beira, (Moçambique), o Camilo de Benguela e este escriba, de Luanda. Ao nosso grupo reuniram-se os estrangeiros semi-abononados, de fora do Alentejo, o João e a Filomena, de Santarém, o Luís Filipe de Lisboa, o Carlos do Porto, o Valentim, namorado da Domingas, ele de Beja e ela de Évora, a Lúcia de Évora, e um casal de irmãos, salvo erro o Henrique e a Dídia,  a Suzete, e dois ou três transmontanos e outros tantos da Beira Interior..Depois havia as aves de arribação de Évora e arredores, que umas vezes se sentavam à nossa mesa, outras no Café Portugal, como o Pingarilho, o Janicas, o Zé Pinto,  o Ilhéu, o Custódio, a Lídia, o Tobias e o Carmelo, para além do Cabral que era o único filho de agrário que convivia connosco.

A Lídia e o Tobias, que não estudavam e creio que já trabalhavam, eram os únicos eborenses que conviviam connosco, para além da Lúcia, da Domingas, do Pingarilho e do Custódio. Mais tarde juntou-se-nos a Isabel, de quem já falei noutro post, sobrinha do Conde de Vilalva..Também havia o Aristides, dos Açores, um homem bom, ex-seminarista que tinha já feito a guerra colonial, um «revoltado» que dizia que convivia connosco porque não éramos tão «reaças» como a maior parte dos nossos colegas embora não tão «radicais» como ele, mas enfim, ele tinha de dar-se com alguém, como nos dizia. Os da Beira interior e de Trás os Montes também eram ex-seminaristas que, embora menos abonados, andavam mais ou menos «perdidos» na medievalidade de Évoranoantigamente.

No ISESE as propinas eram baixas e havia uma boa biblioteca, porque o Instituto era subsidiado pela Fundação Eugénio de Almeida, Conde de Vilalva, engenheiro e proprietário de extensas propriedades agrícolas no Alentejo e do Convento da Cartuxa, de que talvez fale noutro post. Havia um outro grupo, que fazia vida à parte, que não nos passavam cartão nem nós a eles: Champalimaud's e similares, meninos ricos e consequentemente com um alto trem de vida. Eles seriam mais tarde os «patrões» e nós, os que entrássemos nas empresas deles, os quadros superiores de confiança..

Os cafés da malta eram dois, O Portugal, que já fechou, ponto de encontro dos eborenses e da malta do reviralho, e o Arcada, mais fino, também «escandalosamente» frequentado pelas esposas dos alemães da fábrica Siemens e pelas nossas colegas, acima referidas. As outras, ou estavam hospedadas em lares religiosos, em casa dos pais ou em quartos alugados, segregadas dos hóspedes masculinos, e com horas de entrada e saída, atentamente vigiadas pelas «hospedeiras», ciosas do bom nome e reputação das suas casas de hóspedes..Era assim como nas aldeias e vilas alentejanas onde existiam quase sempre duas sociedades recreativas: a dos ricos/agrários e a dos pobres/assalariados rurais, completamente estanques.

No café não era bem assim: tanto se estava num como noutro, mas o Arcada, na Praça do Giraldo, ficava mais perto dos nossos quartos alugados, do Cinema e da Livraria Nazareth, defronte da qual a conversa se prolongava pela madrugada fora, mesmo no pino do inverno e nas noites de chuva, nestas abrigados debaixo das arcadas, após o encerramento dos cafés e «corrida» dos clientes mais relapsos, que normalmente éramos nós.

Quem conheça Évora dirá que os cafés estavam separados apenas por uns longos 100 metros! Não desminto, mas naquele tempo era uma distância enorme, que apenas percorríamos às terças feiras, dia de mercado, quando os agrários, para tratarem dos seus negócios, ocupavam e enchiam o Arcada, transbordando para a Praça do Giraldo. Disso falo num poema da altura, denominado «Évora, natureza-morta».

Deste grupo todo só o Henrique (da Beira) o Cabral e o João tinham carro, este um descapotável de dois lugares, de modo que o núcleo duro (Camilo, Carlos e o presente escriba) corriam o Alentejo de camioneta ou à boleia de alguém que tivesse carro e fosse convencido por nós a acompanhar-nos nas nossas visitas «turísticas». Muitas vezes íamos até Beringel, onde viviam os tios do Camilo, ele médico e ela enfermeira, ambos em Beja..Ah! falta falar de dois miúdos pobres (o Jorge, de quem já falei noutro post, e o Carlos), que se sentavam à nossa mesa e eram os nossos «protegidos», que por isso os empregados não se atreviam a correr com eles do Arcada para fora.

Chegados aqui, quem chegou, dirá «o tipo está a gozar connosco, então o Zeca Afonso desapareceu?». Não, está quase a chegar! Daquele grupo todo os únicos que tinham muitos livros e gira-discos éramos a Guida (que também fazia parte do grupo) e este escriba. A Guida tinha uma grande biblioteca de poesia e um piano, e a sala dela era uma tertúlia mais selecta, com declamação de poemas, normalmente pelo Campos, que já morreu, e pela Guida, vasculho de livros de poesia pelo Camilo, audições de piano proporcionadas pelo Carlos, serenatas à viola pelo Aristides, quando o conseguíamos convencer, pois tinha uma voz muito bonita, mas resmungando sempre contra a «burguesia» e a inutilidade da poesia, pois o que era preciso era varrer a burguesia à metralha.

Naquelas tertúlias era proibido falar da política, mas eu às vezes esquecia-me e a Guida, que era amiga de todos nós, uma espécie de pintainhos debaixo da asa dela, ia aos arames, como descrevo num poema «À Guida sem amor hoje». Também pela nossa mesa do café e pela casa da Guida passavam alguns pintores, como o Chico Belizzi, o Palolo ou o Álvaro Lapa.

De modo que aquilo era uma comunidade, onde cada um partilhava com os outros o que estes não tinham. No meu caso, tinha uma biblioteca e uma discoteca razoáveis, um gira-discos e um quarto enorme. De modo que quando me sabiam em casa aquilo era um corropio, para lerem livros ou os jornais, ouvirem música, conversarmos ou estudarmos. Como aquilo era uma casa de hóspedes eu subverti as regras todas da hospedeira, a D. Vitória, que me dizia que me tinha alugado o quarto a mim e não a um bando de cavalgaduras que passavam o dia escada acima escada abaixo. Outra das regras subvertidas era a das raparigas, as que estavam na mesma casa, iam até lá ouvir música, conversar ou pedir-me livros emprestados, tal como algumas colegas do Instituto. Aquilo então exasperava a D. Vitória: uma vergonha, isto é uma casa de respeito, onde é que já se viu meninas enfiadas nos quartos dos senhores?!

Claro que nunca recebi ordem de despejo. De modo que fiz uma concessão à D. Vitória: quando estivessem as meninas ou senhoras no meu quarto eu deixava a porta aberta.

E aqui voltamos ao gira-discos e ao Zeca. Para além de música clássica, havia livros e discos apreendidos pela PIDE e FORA do MERCADO, sendo crime tê-los em casa. E assim o que sobrava da mesada era para livros e discos, estes comprados por baixo do balcão e vendidos apenas a clientes de confiança. Deste modo, para além de pessoas, acompanhavam-me, para além da música clássica e de ópera, o Luís Góis, o Fernando Machado Soares, o Zeca Afonso, o Adriano, o então Pe. Fanhais, Cantos Revolucionários de Le Chant du Monde, Joaquin Diaz, Luís Cila, Jacques Brell, José Mário Branco, o Manuel Freire. Ary dos Santos e o seguimento quase religioso do Zip-Zip e, quanto a mim, d’ As Conversas em Família do Marcelo Caetano, num outro café mais popular, salvo erro o Alentejano, que comentavam em voz alta e entre si as suas discordâncias com a conversa fiada do Marcello..O televisor era um luxo, embora a preto e branco, e eu cedera à D. Vitória o da minha mãe, que entretanto já regressara á Luanda, terminadas as férias. De modo que quando queria ver algo na TV tinha de ir para o Alentejano, pois o único programa que me interessava e às meninas e senhoras da casa era o Zip-Zip.

Claro que nas aldeias só os ricos tinham televisor, e alguns compartilhavam-no com o povo, colocando-a na janela, virada para a rua, onde se aglomeravam os telespectadores. Em Évora, quando havia desafios de futebol, alguns comerciantes deixavam um televisor da montra ligado para o povo poder assistir aos desafios de futebol..

Aqueles cantores atrás referidos e outros eram os nossos amigos e companheiros, a Voz da Resistência e do Combate, e por isso ouvir hoje essas canções comove-me e simultaneamente melancoliza-me, pela não concretização do Sonho que o 25 de Abril criou, afinal breve esperança que não será concretizada na nossa geração..Mas o capitalismo já leva seiscentos anos de existência e só agora conseguiu criar condições para se estender pelo todo o mundo. Mas a Comuna de Paris durou escasso tempo, as Revoluções de 1848 e de 1918 foram esmagadas de forma cruel e sangrenta, a Revolução de Outubro aguentou-se mais tempo. E como dizia Lincoln ( se entretanto não houver um holocausto nuclear), «pode-se enganar todo o Povo durante algum tempo, pode enganar-se uma parte do Povo todo o tempo, mas não se pode enganar todo o Povo todo o tempo».

[em évoraurgomedieval, no exílio]  Hoje é domingo, uma vez mais! O tempo conta‑se pelos domingos, especialmente quando são como este, soalheiros, quentes, e que nos fazem sentir o peso dos 25 anos, praticamente solitários, incomunicáveis, cheios de barreiras entre mim e os outros. Que é daquele tempo em que se cria em alguma coisa, em que se colhiam flores para dar aos entes queridos, cabelos esvoaçantes ao vento? Que é do tempo dos sorrisos, das gargalhadas cristalinas? Que é do tempo deslizando suavemente, das mãos esperançosamente estendidas? O tempo é isto, esta desilusão, este vazio, estas malhas que enredam mais e mais e que angustiosamente procuro afastar. Sou um guerreiro cansado por batalhas inúteis, contra o vento! "Grandes são os desertos e tudo é deserto" ([1])

Como única companhia nesta tarde o José Afonso, melhor, a voz do Zeca Afonso, que sai dos alto‑falantes e enche o quarto, mas não a minha alma, demasiado grande para a minha alma tão pequena. (NSF - 1971.02.28) 

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(1) - Dum poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa

19 comentários
Comentários
Elsa Cardoso Vicente MUITO OBRIGADA por tão importante e bela partilha...abraço Victor Nogueira...
Maria João De Sousa Estive no teu "daqui e dali", Victor Nogueira! Excelente, este teu texto a propósito do Zeca! Abraço!
Joana Espanca Bacelar Gostei do que escreveste, gostei da forma como recordaste Zeca Afonso, uma homenagem no aniversário da sua morte e também gostei de voltar atrás no tempo.
Joana Espanca Bacelar A Guida que referes no texto é a Margarida Morgado? se é ainda anda por aí escrevendo e declamando os seus poemas.Bjs
Joana Espanca Bacelar Pois como nesse tempo continua rodeada de gente mais jovem e a acompanha-los no tempo.
Deolinda Figueiredo Mesquita Excelente, Obrigada Victor. 
Donzilia Conceiçao o Zeca será sempre lembrado com muita saudade, o povo não o esquece nunca.
Milu Vizinho Obrigado camarada Victor Nogueira, o nosso querido Zeca está sempre nos nossos corações, é sempre lembrado com muita saudade, não me canso de o ouvir, enfim, não tenho palavras para descrever...
José Elizeu Pinto Obrigado por mais este escrito, Victor, que nos ajuda a 'rever a matéria'. Muito rigoroso, como de costume, na reconstituição e na galeria de personagens, todos eles bons amigos, alguns já só reencontrados nos teus textos. Justo o teu olhar sobre esta cidade, ainda tão actual apesar das várias décadas de lapso'. E conforta-me a presença na galeria. Abraço grande.
Belaminda Silva Obrigada camarada Victor... Zeca Afonso será sempre lembrando com muita saudade e carinho. Obrigada, pela belíssima partilha. Te desejo uma boa semana. Beijinho amigo  
Maria Do Mar O povo não se esquece nunca quem foi Zeca.. Obrigada pela partilha.. Um semana feliz.. Beijinho.
A ultima vez que o vi estava eu numa mesa de voto na casa do Bocage em Setúbal ele apareceu para votar, mas já não conseguir subir ao 1º andar e lhe trouxemos o boletim de voto para assim poder fazê-lo foi um gesto que só o fizemos porque era o zeca.
Graca Maria Antunes Gostei de ler tudo! Ri-me um bocadinho c/ a D. VItória, mas eram assim os tempos...Que diria ela aos q aí vinham? 
Luisa Neves ZECA... SEMPRE. 
Filipe Chinita o meu abraço amigo
3 hNão gosto2
Judite Faquinha Meu querido camarada adorei tudo o que escreves-te com o vais ao pormenor de toda uma passagem da tua vida,e onde o Zeca é o homenageado pelo seu valor, um revolucionário de alma e coração...onde também referes outros da mesma geração e companheiros de luta que suas vozes eram as armas que tinham, conheci o Zéca, eu era muito jovem, e vi-o no ultimo espectáculo no Coliseu adoro ouvir os seus CD, e acompanhei-o há sua ultima morada foi comovente...suas canções foram todas cantadas pelos estudantes com as suas capas negras que foram colegas de escola com o Zéca...foi arrepiante,,,o tempo passa mas fica sempre a saudade, obrigada camarada Victor adoro como nos dás estes testemunhos beijinhos.
2 hNão gosto1
Graca Maria Antunes Obrigada por partilhares comigo estas memórias, Victor. O Zeca, grande ser humano!
2 hNão gosto1

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