Auto-retrato no Mindelo em 2023 09 30, mirando a cintilante luzinha verde da câmara do computador, em dia outonal mas límpido, com as árvores e os campos ainda verdejantes, ainda sem cores brúnias, salvo as do milho, que vai secando, de castanho também os terrenos em que já foi debulhado. Daqui a pouco, desbastada a barba, será outro o Victor. Com efeito, em criança, vendo-me a Susana sem barba, que eu havia acabado de cortar, exclamou: "Olha, outro Victor!"
Foto victor nogueira Mindelo Praia da Gafa (2022 11 15 MVI_0899_Moment) - Neste local era o porto de pesca, no tempo em que esta era complementar com a agricultura e no areal se apanhava o sargaço para adubar as terras. A pesca desapareceu, a apanha do sargaço está proibida por ser zona balnear e nos campos da freguesia predominam os eucaliptais e os milheirais, adubados com produtos químicos, sendo o milho recolhido mecanicamente e processado industrialmente, para que se transforme em racção para o gado vacum e leiteiro. A esta praia vem desembocar a Rua da Gafa, o que indicia que nesta zona terá existido uma gafaria ou leprosaria ou teria residido alguém leproso.
Foto victor nogueira (2023 08 29 IMG_3015) - Sombras no Mindelo, rendilhado executado, a long time ago, pela minha tia Maria Luísa para um dos cortinados para esta casa
O que são as memórias? Um escrito? Uma photo? Uma lembrança burilada ou afeiçoada nas brumas do tempo e da memória? Uma recordação, uma atrás das outras, impetuosas ou em meandros como o rio que se espraia pela planície? Qual é a verdade das memórias?
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Hoje - a 4 de setembro - farias 92 anos; daqui a 4 meses faria a Maria Emília 94, como o Zé Luís teria feito 62 em 29 de Maio, tantos quantos a Celeste a 7 desse mesmo mês. Não comemorarás o centenário com a família, parte da família, como desejavas, num lauto banquete como o que ofereceste aos 80, de convites personalizados. Na juventude pensei que seria o patriarca duma grande família, espalhada por várias gerações. Mas os meus tios de "sangue" não casaram, o meu irmão morreu, os divórcios e separações mesquinhamente e com frequência apartam águas.
Contigo, para além de na minha meninice e adolescência me teres transmitido os valores da tolerância política e religiosa, da solidariedade, da multi-racialidade, da verticalidade e da não subserviência, da não adesão a castas ou preconceitos de classe, aprendi também que a família é muito mais extensa . Depois disso tivemos muitas desinteligências, não poucas vezes deixaste de falar comigo mas não eu contigo, porque na família fui o único que te disse não qd entendia dever fazê-lo, sem que a minha firmeza me roubasse as boas-maneiras para contigo, entre-ambos. E só nos voltámos a encontrar nos dois anos antes de morreres. Só então voltaste a libertar a ternura que sempre tiveras pelo teu filho insubmisso, rebelde e contestatário.
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A família … Que é a família? Uma certidão ou conjunto de certidões de nascimento? Uma árvore genealógica a partir destas? E como preencher as lacunas das filiações de pai incógnito, mesmo qd se sabe que este era um estudante de medicina, médico muito rico numa qualquer terreola do interior ? Uma Foto ? Mesmo que seja mentirosa como aquela em que estás com a mão no ombro do que sempre considerei meu bisavô? Como neto me consideraram o avô Zé Luís, afinal teu padrasto, ou a minha tia-avó Esperança, que sempre nos considerou e nos tratou e à Maria Emília como sobrinhos ! Porque é mentirosa aquela foto que sempre exibiste com orgulho? Um dia perguntei à Lili se o meu bisavô não teria escrito poemas ao Manuel - o Necas - como fizera aos filhos da Alzira e do Zé Luís ou se estes se haviam perdido. A resposta foi que nunca os havia escrito. Insisti, mas parecem amigos na foto, aquela que o meu pai emoldurou em vários exemplares e me ofereceu e aos irmãos e não sei se ao “pai” dele, adoptivo. E veio a história – por duas vezes o Manuel pousou a mão no ombro do que eu sempre considerei meu bisavô e por duas vezes este sacudiu-a com brusquidão. Mas à 3ª, não houve tempo porque entretanto o fotógrafo disparara.
Na última longa conversa que tivemos, dias antes de morreres, em que falámos de muitas coisas - do passado, do presente, do futuro - [a minha mãe escrevia-me mas tu preferias conversar] , veio à baila a fotografia que estava porque a puseras no teu quarto no lar. E sem acrimónia e com bonomia e com um sorriso ladino contaste a história do garoto que teimosamente rejeitara a rejeição do seu “avô” – a verdade da foto não é/seria a aceitação que não houve mas a teimosia de quem considerava aquela a sua família. Como no teu quarto puseste essa e a foto que te tirei na tua casa em Setúbal, porque mo pediras, numa das mãos uma com a Alzira e o Zé Luís, teus pais, na outra a do teu bisneto Francisco, como se fosses um elo entre gerações.
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Há da família conceitos que a vida pode ir alargando, cada vez mais compreensiva e extensamente. Há quem fique pela escravidão do “sangue” e da servidão, mesmo que retintamente vermelho e plebeu aquele seja, e há quem alargue o conceito até abranger a humanidade e a vida, toda a humanidade e toda a vida. Há um poema de Eugénio de Andrade que fala disso:
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"
Partir com as aves é muitas vezes doloroso, mas tal como o poeta refere em O Lugar da Casa “ (…) crescer como árvore, resistir / ao vento, ao rigor da invernia,/ certa manhã sentir os passos / de abril / ou, quem sabe?, a floração / dos ramos, que pareciam / secos, e de novo estremecem / com o repentino canto da cotovia.” é partir com as aves e responder ao canto da cotovia; significa também a capacidade de estender a fraternidade para além do clâ, da seita, da igreja, do clube, do bairrismo, da vizinhança.
Sim, a minha família é muito mais extensa do que aquela que certas leis e certas decisões dizem ser a minha. Muitos não percebem, não compreendem nem aceitam que a minha família, se a explicitasse, englobaria as das mulheres que amei, mesmo que não tivessem sido minhas companheiras: desde a jovem professora - meu amor de sempre, nunca esquecido - que em évoraburgomedieval me despertou para a poesia, até à Maria Papoila, a Florbela, a Fatma, incluindo a Maria do Mar, a Joana Princesa, a Mana Clarisse de Aguiar e Berlmonte, a Maria dos Mil-Sóis Rendilhados, a Julieta dos Espíritos ... Mas (quase) tudo passou e morreu, com ou sem aspas, e uma simples passagem no inFaceLock pelas páginas de certas pessoas que sempre conisiderei da minha familia, leva-me a constatar que eu e os meus filhos e neto fomos pura e simplesmente eliminados. A decisão não é minha, nunca seria minha.
“Pai, tu não és deste Mundo ! Tu não vives neste Mundo !”, disse-me a susana em adolescente. Talvez ! Mas a minha família continuam a ser a Vida e a Humanidade” como o meu pai e a vida me ensinaram. E eu decidi escolher ! Eu escolhi a fratenidade e a igualdade. Eu escolhi o futuro sem esquecer ou renegar/re-escrever o passado.
Um brinde aos avós, a todos eles, qualquer que seja a geração passada ou futura, com a Dança do Balcão, já a seguir, em:
Abraço amigo e uma feliz noite, eu sou uma sobrevivente .....🙂
10 ano(s)
Donzilia Conceiçao
Memórias? O que são as memórias, são o que guardamos da nosso passado, bom ou mau, de meninos ou já adultos, é como a história do nosso país, dele temos muitas memórias!!! e são tantas, tantas porque já os anos passaram por nós e nos deixou recordações que teima-mos em recordar, e tu Victor fá-lo bem demais, nós conseguimos ver tudo o que escreves e como escreves,sentimos e vimos o que tu vês,pelo menos eu que adoro o que escreves e a história mal contada desta Portugal, tu fazes revê-la, um beijo amigo,obrigada
10 ano(s)
Donzilia Conceiçao
Nós somos todos sobreviventes.
10 ano(s)
José Pires
Somos MEMÓRIAS ! Abraço
10 ano(s)
Isabel Magalhães
De alguma forma, somos todos sobreviventes.Por vezes, as pessoas são desconhecedoras da verdade dos acontecimentos e das razões de certas atitudes, tomadas pelos seus antepassados. Acontece as pessoas idealizaram para a sua vida uma coisa, mas a vida programar outra. Todavia, não devemos desvalorizar o que de bom nos foi dado, nem ficar amargurados, muito menos desejar vingança nas gerações actuais por algo que nos marcou no passado. Temos obrigação de tentar entender as razões dos vários lados e não só de um, para não sermos injustos, nem egoístas.
10 ano(s)
Manuela Vieira da Silva
As minhas memórias são traições do presente, não quero viver de memórias porque prefiro viver o presente edificando o futuro. Embora sem grande esperança nele (futuro) é o fazer o presente, livre de traumas ou saudades, que a vida se faz., Bjos.🙂
10 ano(s)
Maria Lisete Almeida
Grata pela partilha d
10 ano(s)
Maria Lisete Almeida
dos seus escritos que muito aprecio. Abraço Amigo.
10 ano(s)
Fatima Mourão
beijinhos gostei muito!
10 ano(s)
Deolinda F. Mesquita
Gostei muito e agradeço 🙂 Sobre as memórias muito há dizer.... eu vivo bem com as minhas.
10 ano(s)
Victor Barroso Nogueira
Isabel Magalhães Deolinda Figueiredo Mesquita Manuela Silva Sobre as memórias, sobre a vida, sobre os tempos ... Por mim está tudo escrito com clareza, no que nesta nota escrevi, reproduzi ou transcrevi. Bjos 😛
10 ano(s)
Victor Barroso Nogueira
Isa Alçada Donzilia Conceiçao José Pires Aquele abraço 🙂
10 ano(s)
Victor Barroso Nogueira
Ao Rui Gato, que atentamente comentou em privado, aquele bjo 🙂
10 ano(s)
Editado
Victor Barroso Nogueira
aos parcos em palavras e ricos em silêncio - grato por me terem lido e deixado a marca 🙂
10 ano(s)
Deolinda F. Mesquita
Victor, bjs 🙂
10 ano(s)
Maria Jorgete Teixeira
Belíssimo o poema do Eugénio de Andrade, como se sabe, mas belas também as tuas palavras, que não se ficam na beleza e que nos fazem pensar não só no que dizem, mas também na delicadeza, interioridade, verticalidade e humanidade da pessoa que as escreve...
Beijinhos, Victor!
10 ano(s)
Margarida Piloto Garcia
Esta é para mim, talvez a tua nota mais bela e brilhante. De repente despiste-te de uma armadura e expuseste-te com tudo aquilo que tens de bom e belo. O teu interior está desnudado nas palavras i falam de quem és. Aqui seria possível escrever um romance com personagens ricas de sentido e sentir e tão diversas em personalidade. Na minha mente ficam muitas indagações, ficarão sempre. O poema do grande Eugénio é um dos meus preferidos e nesta nota que fala de família e não só, ele assume importância especial.
Estando tão perto ainda os últimos acontecimentos tu conseguiste escrever uma nota que sem quaisquer lamechices é im tributo à família de sangue, à de papel passado, à dos afectos nunca esquecidos e a toda a humanidade.
Os meus aplausos e um beijo.
10 ano(s)
Graça Maria Teixeira Pinto
Somos feitos de muitas vivências.A família, os que amámos, os que passaram por nós, os que ficaram (vão ficando...) Engolimos desilusões, carinhos, amores.E o que fica é se calhar uma manta de retalhos a que alguns chamam memórias e outros, vida...Belíssimo este Eugénio."Boa noite,Eu vou com as aves."
10 ano(s)
Maria Márcia Marques
A família não escolhemos ela entra na nossa vida sem pedir licença e permanece, os amigos escolhemos e selecionamos, até à perfeição, se assim for possível.
Mas é com a família que aprendemos a andar, a crescer, a rir, a chorar, a amar, a odiar...
É no seu seio que criamos raízes, embora as arranquemos para partir e viver por nós, mas ficam sempre pequenos rebentos que florescem na Primavera e nunca se desata o nó, nem se cortam as amarras, voltamos sempre....mas um dia, lentamente, alguém começa a ir com as aves, quer a família, quer os amigos....
Restam as fotos, as cartas escritas, ou por escrever, os objetos, os livros lidos e os que restam ler, os lugares, os espaços, a mesa posta, as lembranças.......
10 ano(s)
Editado
Yolanda Botelho
Lindo...como sabes gosto muito de ti,querido amigo.
10 ano(s)
Yolanda Botelho
Emocionei-me.....ter-me- ás sempre como amiga.Sem mais palavras.
10 ano(s)
Maria Célia Correia Coelho
Uma bela narrativa familiar muito sentida e que nos sensibiliza Victor!
10 ano(s)
Carlos Rodrigues
Fraternidade e Igualdade, é sempre uma bela escolha. Obrigado, Victor.
10 ano(s)
Luisa Neves
Belo e emocionante. ABRAÇO. 😉 ❤
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10 ano(s)
Clara Roque Esteves
Um bom texto, como é teu apanágio. Meu amigo Vítor, tenho de te pedir desculpa de novo, assim como a tantos outros amigos que me mimam com presentes destes. O Carlos Rodrigues, a Cecília, a Maria Jorgete, O Osvaldo Pires e tantos outros. Não tenho conseguido entrar na net com excepção dos emails que implicam responsabilidades laborais que ainda detenho em algumas áreas. Um grande beijinho e um bem hajam para todos.
Foto victor nogueira (IMG_3008 2023 08 28) - Pôr do sol no milheiral, nos campos agrícolas entre a EN 13 e a linha do metro de superfície, Porto / Póvoa de Varzim
O jipe dos Nogueira da Silva, em Luanda, construído pelo Manuel, a partir do chassis dum automóvel. Foi contemporâneo da carrinha Austin Mini Cooper e pelas fotos acompanhou-nos nas vivendas alugadas onde morámos nos Bairros do Maculusso e de S. Paulo, mas já não quando nos mudámos para a Praia do Bispo, cerca de 1956. Lembro-me de assistir à "montagem" da carroçaria mas se não fossem as fotos não me recordaria do seu aspecto.. Pensando bem, talvez tivesse sido este e não o Mini Cooper o primeiro carro dos Nogueira da Silva. Se fosse vivo, o meu pai hoje comemoraria o seu 102º aniversário (Porto 1921 Setúbal 2013)