sábado, 8 de setembro de 2007

Ao (es)correr da pena e do olhar (7)

* Victor Nogueira
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O sol já desapareceu e dele há apenas no horizonte, debruando as colinas, uma faixa vermelho-alaranjado. Ali á direita, a estrada para Porto Salvo, polvilhada de casario que vai substituindo os campos onde ainda se pratica a agricultura, agora secos. Ao longe um cão ladra e lá do fundo da casa vem o barulho da televisão. O mundo parece de brinquedo, assim, visto dum nono andar.
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Passei a manhã lendo ou gravando música - desta vez brasileira - para além de ter ajudado a minha tia lavando a louça e na parte das lides domésticas resultantes da minha estadia. À tarde fui com a Susana ver o comércio de Paço de Arcos e passear pelo jardim
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Levantei-me para acender a luz, já necessária neste fim de dia, neste crepúsculo que o meu ânimo "melancoliza". Porque estou triste - porque não dizê-lo? - e não só, como quem está na ressaca duma grande sova e calca os sentimentos e os rios de lágrimas muito bem calcados, para que só apareça uma face impassível e serena.
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Tenho esperado pela Maria do Mar muitas vezes - talvez demasiado, talvez equivocado. Tenho esperado as suas notícias, a sua voz, o seu sorriso, a sua companhia, a sua presença e, porque não dizê-lo, a sua ternura. E rio-me (...) de mim. Porque, ao contrário dela, não faço grandes discursos sobre a amizade e a franqueza pessoal, porque são apenas palavras e poeira aqueles que não têm correspondência nos actos. (...)
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Olho para a bonita caneta que ela me deu e que os meus colegas elogiam e alguns gostariam de ter. (...)
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A mim o que me interessa são os vivos e a solidariedade ou o gesto que se não recusa, a liberdade que conseguimos fazer nascer nesta teia de constrangimentos e de embaraços.
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(...) Olho novamente pela janela e o céu é agora azul escuro, com um leve debrum alaranjado no horizonte. Piscando, um avião passa além, enquanto lá em baixo fieiras de luzes assinalam as estradas, as casas e os automóveis.
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Imagino-a lendo esta carta e dizendo ou comentando - "que bem escreve o meu amigo! " ou "que coisas bonitas ele diz !" ou algo semelhante. E dir-me-à pelo telefone - se eu lhe telefonar - que gostou de receber as minhas cartas, que as guardará não sei onde para ler quando for velhinha.(...)
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Não tenho medo do futuro e do passado guardo ma experiência, boa ou má, não para fechar-me em casa, paralizado, mas como orientação na estrada da vida breve para a imensidão do que há para viver e fazer. Mas nem todos são assim !
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Acreditei na Maria do Mar, mas talvez me tenha enganado. Todos são meus iguais, todos têm virtudes e defeitos, todos nos completamos uns aos outros. Mas não mendigo amizades nem gosto de sentir-me escorraçado. Gosto dela e tenho pena de não estar com ela. (...) (Mas) não vivo de amizades e de amores platónicos, entendendo que a "masturbação" é um muito pobre sucedâneo para a vida e para o amor.(...)
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A continuar assim um dia deixarei de escrever-lhe, telefonar-lhe ou procurá-la. Hoje escrevo-lhe isto e digo-lhe que tenho pena que tal venha a suceder. Mas há jogos que não sei ou não quero jogar, como por exemplo o do gato e do rato.
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Estou cansado e triste. Pelo nosso desencontro e porque com ele vem o peso de outros que tive.
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E hoje deixo-a deste modo, sem nenhum gesto, partindo simplesmente.
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Paço de Arcos, 1986.08.15
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1 comentário:

  1. Duros golpes,são os que nos remetem ao silêncio das palavras não ditas...fica tanta coisa suspensa nessas palavras não ditas...melhor fora que fossem palavras de dor, duma dor assim cortante, dilacerante, como partida, mas duma só vez!...

    Maria Mamede

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)