domingo, 17 de outubro de 2010

Da Carta - segundo Garcia de Resende, António Jacinto e Victor Nogueira

por Victor Nogueira a Domingo, 17 de Outubro de 2010 às 10:06

 (com algumas repetições porque em se não mudando a vida não se podem mudar/não mudam os gestos dela e da galeria de recados serão retirados/as os/as mudos/as e calados/as)
 

Da Carta
1. Se as cartas não fossem cartas, muitas vezes escreveria a V.M. como desejo, mas porque o são o não ouso fazer, pois as não leva o vento, como palavras e plumas, antes se guardam tão bem, que a todo o tempo se pode pedir razão de ...como se escreveram e porque as escreveram (…) (Garcia de Resende a D. Francisco de Castelo Branco, 20.11.1535).
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2. (…) Antigamente as pessoas escreviam muito e as cartas eram meio de transmitir notícias e muitas delas, com maior ou menor valor literário, tornaram-se testemunho dos factos, acontecimentos, ideias e sentimentos. Mas hoje, hoje as pessoas telefonam ou encontram-se, devido à facilidade e rapidez dos transportes e das comunicações, e o tempo é pouco, paradoxalmente, devido à sobrecarga do que se gasta em transportes, sentado frente à TV ou em tarefas domésticas. O mesmo sucede com o convívio e a conversação: por vários motivos os cafés e as tertúlias desaparecem, só se conhece o vizinho da frente ou do lado, quando se conhece, e as pessoas metem-se na sua concha, casulo, carapaça ou buraco. Muita gente junta, ao alcance da mão ou da voz, não significa que estejamos mais acompanhados e humanizados. (…) (Victor Nogueira à «Maria do Mar», 18.08.1993)

3.  Carta de um Contratado    - António Jacinto
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Eu queria escrever-te uma carta
Amor
uma carta que disesse
deste anseio
de te ver
deste receio de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...
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Eu queria escrever-te uma carta amor
uma carta de confidências íntimas
uma carta de lembranças de ti
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como dilôa
dos teus olhos doces como macongue
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por aí...
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Eu queria escrever-te uma carta
amor
que recordasse nossos dias na capôpa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura nossa separação...
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Eu queria escrever-te uma carta
amor
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...
Eu queria escrever-te uma carta
amor
uma carta que te levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levasse puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor...
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Eu queria escrever-te uma carta...
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Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem que tu não sabes ler
e eu - Oh! Desespero - não sei escrever também!
    4. - Escrevivendo e Photoandando por ali e por aqui «Ao lermos uma novela ou uma história imaginamos as cenas, a paisagem, os personagens, dando a estes uma voz, uma imagem física. Por isso às vezes a transposição para o cinema revela-se-nos uma desilusão. Quando leio o que a Maria do Mar me escreve(u) surge perante mim a sua imagem neste ou naquele momento da nossa vida, uma pessoa simples, encantadora, gentil e delicada.» Victor Nogueira
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    5. -    Dizem que os livros são os nossos melhores e maiores amigos. Mas os livros não se sentam á nossa beira, nem tem olhos, nem sorriem nem nos abraçam, nem connosco passeiam pela rua, pelo campo. Nada podemos dar aos livros senão as letras dos nossos pensamento ou um pouco de nós  para que chegue aos outros. Os livros têm os olhos que nós temos. E os seus lábios são os nossos lábios. Porque se os livros tivessem olhos e lábios e mãos e dedos seriam talvez pessoas mas nunca livros. Évora 1969.Março.19 Victor Nogueira
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    7 . PRESENÇA AFRICANA E apesar de tudo, Ainda sou a mesma! Livre e esguia, filha eterna de quanta rebeldia me sagrou. Mãe-África! Mãe forte da floresta e do deserto, ainda sou, a Irmã-Mulher de tudo o que em ti vibra puro e incerto... A dos coqueiros, de cabeleiras verdes e corpos arrojados sobre o azul... A do dendém Nascendo dos braços das palmeiras... A do sol bom, mordendo o chão das Ingombotas... A das acácias rubras, Salpicando de sangue as avenidas, longas e floridas... Sim!, ainda sou a mesma. A do amor transbordando pelos carregadores do cais suados e confusos, pelos bairros imundos e dormentes (Rua 11!... Rua 11!...) pelos meninos de barriga inchada e olhos fundos... Sem dores nem alegrias, de tronco nu e corpo musculoso, a raça escreve a prumo, a força destes dias... E eu  revendo ainda, e sempre, nela, aquela Longa história inconsequente... Minha terra... Minha, eternamente... Terra das acácias, dos dongos, dos cólios baloiçando, mansamente... Terra! Ainda sou a mesma. Ainda sou a que num canto novo pura e livre, me levanto, ao aceno do teu povo!                                            Benguela,1953 (de  Poemas,1966)   
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    TESTAMENTO À prostituta mais nova Do bairro mais velho e escuro, Deixo os meus brincos, lavrados Em cristal, límpido e puro... E àquela virgem esquecida Rapariga sem ternura, Sonhando algures uma lenda, Deixo o meu vestido branco, O meu vestido de noiva, Todo tecido de renda... Este meu rosário antigo Ofereço-o àquele amigo Que não acredita em Deus... E os livros, rosários meus Das contas de outro sofrer, São para os homens humildes, Que nunca souberam ler. Quanto aos meus poemas loucos, Esses, que são de dor Sincera e desordenada... Esses, que são de esperança, Desesperada mas firme, Deixo-os a ti, meu amor... Para que, na paz da hora, Em que a minha alma venha Beijar de longe os teus olhos, Vás por essa noite fora... Com passos feitos de lua, Oferecê-los às crianças
    Que encontrares em cada rua...
     
    Formatação original dos dois poemas aqui:
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8 - Aqui estou no meu quarto, buscando para ti as palavras que não encontro, corpo sem imaginação mas irritado e desassossegado pela constipação que me percorre as veias e me enche dum nervoso miudinho. Busco para ti as palavras dos outros, nos livros dos outros, os ponteiros aproximando‑se das nove e trinta, hora da vinda do homem que levará de mim as letras que cadenciadamente vão surgindo no papel branco que já não é só! Busco as palavras e apenas encontro estas, hoje vazio de ti pela tua ausência, ontem pleno pela nossa presença. São vinte e uma e vinte, hora de parar, os livros espalhados pela mesa, o corpo quebrado, a imaginação e a voz quase secas e frias. Daqui desta terra, para ti noutra terra, te abraço e beijo com ternura e amizade, na memória do tempo que fomos juntos. Aqui estou!
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Évora, 1972.09.21 (Do Victor Manuel para a Maria Papoila ou Maria Vai Com as Outras)
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Victor Nogueira
Victor Nogueira
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)