quinta-feira, 18 de agosto de 2011

évoraburgomedieval no antigamente (3)

por Victor Nogueira a quinta-feira, 18 de Agosto de 2011 às 18:28
* Victor Nogueira
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O ar abafado, a vozearia imperceptível, mas não inaudível, enchem o café Arcada, para onde vim estudar (...) É um domingo indefinido, um começo de tarde. (...) O café está cheio, na sua grande maioria homens na casa dos quarenta, que cavaqueiam. Logo, a meio da tarde, a clientela será diferente: os homens trarão as esposas e a prole. Nos outros dias apenas as [mulheres] mais "evoluídas" aqui virão. Mas são já muitas mais do que antigamente, se a memória me não atraiçoa. (...)
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Olho à minha volta e vejo malta conhecida: além, o Morte que me acena, como o Calisto, que há muito não via. O namorado da Gabriela discute acaloradamente e o senhor D. Alexandre de Lencastre conversa com dois amigos (sê-lo-ão?), que falam também com a cabeça e as mãos. Aqui, à minha esquerda, está o velhote pequenitates que anda à Charlot; costuma pôr uma flor no copo de água que normalmente acompanha a bica, fala em verso - os dois últimos primam quase sempre pela falta de rima e métrica - e oferece moedas da sua colecção às personalidades importantes que passam por Évora e às caras bonitas. Fala com toda a gente e não sei se falará com alguém.
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Quando regressei de Luanda reparou que eu tinha rapado a barba... largos meses depois do acto solene que me tornou irreconhecível ao espelho, provocando me, durante alguns dias, ataques de hilaridade frente àquela face rejuvenescida e francamente risonha, sem o sorriso voltaireano que dizem ser o meu - irónico e trocista - de que muitas vezes me apercebo mas não contenho, mesmo nos momentos mais solenes e sérios, de gravidade de circunstância. (...) (1)  O ar está [agora] pesado; olho à minha volta e há clareiras na humanidade que me cercava. O relógio, sobre a mesa, diz-me faltarem quinze para a uma. Horas de ir até lá fora, apanhar um pouco de ar antes de regressar a casa para o almoço (NSF - 1971.01.31)
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Inaugurei hoje a minha época de piscinas. O tempo está quente e a água, embora fria, é agradável. (1971.06.17 - ?)
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Quanto à correspondência violada,[aberta pela PIDE] por razões que desconheço, só seguiam recortes de jornais relatando o que se tem passado na Assembleia Nacional.(...) Daqui para o futuro acompanharão os recortes uma lista detalhada dos mesmos e irão lacrados. Farto de malandros ando eu. (NSF - 1971.06.30)
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Hoje, em Évoraburgomedieval é terça feira e, para além dos turistas habituais, a Praça do Giraldo e o Café Arcada encontram-se cheios de forasteiros, solidamente especados, indiferentes a quem passa e ao estorvo provocado. É dia de S. Porco i.e., dia de mercado, em que os homens vêm à cidade para o negócio do gado, enfiados nos seus fatos escuros, de mau corte, botas enlameadas e chapéu na cabeça. Detesto a sua falta de maneiras, embora por vezes seja uma distracção observar as suas atitudes. O mais interessante neles é o modo como se escarrancham nas cadeiras, à mesa do café, solidamente instalados, o chapéu na cabeça atirado para trás.
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Mas para além deles e quotidianamente há outras figuras curiosas no café, figuras de todos os dias nas mesmas posições. Todo um mundo parado, parecendo indiferente à passagem do tempo.
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(...) Évora é uma cidade morta, a que o começo das aulas dá um certo movimento que se transformará na monotonia do café, casa, instituto, com o cinema (estreias diárias) e as mesmas caras e os mesmos rostos. (MAF - 1971.10.09)
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Estou no café, no "velho", barulhento e de ar viciado que é o Arcada. Deixei os jornais em cima de uma mesa, para marcar o lugar, enquanto ia à tabacaria comprar uma folha de papel. (...) Ao regressar encontrei um moço a folheá-los muito descontraidamente. Devia ser dos Regentes Agrícolas. Que ficou algo atrapalhado e balbuciou pensando serem do café. Que não acabou de lê-los, apesar da minha cordialidade.
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Enquanto escrevo vou bebendo o galão e comendo a sanduíche de fiambre, acto quotidiano das 17 horas. Na sala meio cheia umas pessoas conversam, outras lêem os jornais da tarde, alguns estudam, uns olham simplesmente para coisa nenhuma, embrenhados sabe se lá em que pensamentos. Reconheço alguns, poucos, companheiros indiferentes, quase móveis da casa. Dos outros, é de assinalar o seu mau gosto no vestir, fatos escuros, a boina ou o chapéu de abas viradas para os olhos. Conversam com a cabeça apoiada na mão, uns sorridentes, outros de rosto grave, testas enrugadas. Por vezes recostam-se para trás nas cadeiras, outras juntam as cabeças, convergindo para o centro da mesa, quais conspiradores. Olho à minha volta e o café está [continua] meio cheio.
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O João Luís [Garcia] chegou e começou a ler o jornal. Daqui a pouco chegarão o Camilo e o Carlos, que virão do exame. Domingo Évora será um deserto, estupidificante. Eis que assomam à porta do café o Chico Garcia [pintor] e o Manel. Ficaram-se pelo balcão da pastelaria. Entretanto entra também oÁlvaro Lapa, que é pintor, e corresponde cordialmente ao meu largo aceno. Entretanto o João Luís protesta porque não consegue ler o jornal; a mesa está desengonçada e tremeliques. (MCG - 1972.03.18)
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Café Portugal - dia de S. Pedro: uma pequena pausa na leitura contrariada do cooperativismo agrícola, capítulo da Sociologia Rural, parte ínfima da matéria de Sociologia II... Estou envolto no vozear barulhento neste fim de tarde, o ruído contínuo da máquina de café e da louça na cozinha, o barulho dos carros ali na rua. Seguramente um contraste com a Salvada, silenciosa nos seus ruídos campesinos, que o Pe. [Augusto] Silva tão literariamente descreve na sebenta, a propósito do meio físico rural: "O citadino que chega ao campo é ordinariamente surpreendido pelo silêncio que aí reina ou pelos ruídos novos que ouve (rumorejar das folhas, os gritos dos animais, o canto das aves, etc.) Tem a impressão de respirar mais à vontade ou, ao contrário, de ser surpreendido pelo vento, crestado pelo ardor do sol." Enfim, o rapaz Silva saiu-me um "poeta".Esqueceu se foi de falar no maravilhoso céu estrelado [que vi em Beringel, estirado no terraço duma casa - dos tios do Camilo - que foi do Marquês de Minas] (..) [Entretanto] o ruído diminuiu, sinal de que se aproxima a hora de jantar.(MCG - 1972.06.30)
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Em Évora, novamente no café [Arcada], uma das três dominantes da minha vida neste burgo perdido na imensa planície alentejana. Na mesa quadrada de tampo encarnado, o habitual café com leite, o copo de água, os óculos, o envelope e as folhas, meios de estar com os outros. O mesmo ar quente e abafado, o ruído em surdina, a floresta de gente - forasteiros ? - em torno de mim. Naquela mesa as únicas caras conhecidas: o Dinis e o Cachatra (2) que esta tarde tem procurado impingir um dos seus quadros, aquele mesmo que tem agora sobre a mesa. Cheguei de Beringel há umas cinco horas. (MCG - 1972.07.05)
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O café é um mar de gente barulhentamente conversadora. As ventoinhas giram mas nem por isso o ar está mais fresco. Évora civiliza-se: cerca de dezoito elementos do sexo feminino aqui no Arcada (minha pátria em terras alentejanas). O mundo caminha para a perdição, diriam os "moralistas" de porta para fora! (MCG - 1972.07.24)
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Aqui, espalhados pela mesa, vários recortes de jornais, a maioria deles da Isabel da Nóbrega, que já conheço desde há seis anos pelos artigos que tem publicado no "Diário de Lisboa" e na "Vida Mundial". Actualmente já nem sempre aprecio tanto os seus artigos como outrora: porque ela teria mudado a sua maneira de escrever? Ou eu a minha maneira de ser? Vi-a apenas uma vez (em Évora) há dois anos, num colóquio sobre poesia - o Ary dos Santos - conhecido pelas letras da "Desfolhada" e de "Menina" - declamou - e bem - poemas seus ).
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 A esse colóquio o Ary chegou muito atrasado e já "entornado"  [e pelo desrespeitoso atraso vaiado por parte da assistência] e com uma garrafa de brandy com que ia molhando as goelas ao longo da sessão. Quem costuma andar lá pelas reuniões em Évora, como eu, conhece um certo número de autodidactas, o mais enfadonho dos quais é um tipo de bigode e óculos. Pois esses autodidactas - numa atitude compreensível mas inaceitável - aproveitam estas "manifestações " culturais para botar faladura a propósito e - sobretudo - a despropósito. De modo que para o fim aquilo começou a aquecer - o Ary dos Santos, bêbado, a falar contra a situação, em português vernáculo (e o Presidente da Direcção da Sociedade Operária de Cultura e Recreio Joaquim António de Aguiar  muito aflito, por causa da PIDE e dos castos ouvidos das senhoras presentes) os autodidactas discutindo com a assembleia e a mesa, o Victor Ângelo e outros alimentando a discussão (dessa vez não abri o bico, pois por mim falava o... Ângelo).
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José Saramago e a Isabel da Nóbrega procuravam, em vão, acalmar os ânimos. Apaixonei-me pelo rosto da Isabel. Se a vissem, aqueles olhos grandes, as suas mãos, a atenção e o cuidado para não ferir os autodidactas - vaiados pela assistência! Estou a vê-la sentada, aflita à procura da palavra e do gesto, falando às pessoas, voltada para elas, aflita por não poder falar com os dois campos simultaneamente, um grande respeito pelas pessoas! Entrevi a depois à saída e fiquei algo desiludido: o seu corpo não me pareceu corresponder à nobreza do seu espírito. Pouco sei dela: que tem escrito alguns romances, que terá dois filhos da minha idade.(MCG - 1972.09.02)
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1 - Anos mais tarde rapei a barba e a minha filha Susana, ainda pequena, ao ver-me, exclamou: "Olha, outro Victor!" [ Em pequenos tratavam-nos  por Victor  e Celeste e não por Pai e Mãe].
2 - O Cachatra era pintor (e creio que fora professor) e ficara muito afectado psiquicamente ao sobreviver a um acidente, salvo erro de aviação. Era familiar dos donos da pensão logo a seguir á casa onde me hospedara. Vendia os quadros dele, salvo erro, a 200$00 [1 €],[eu teria uma mesada de 3 mil escudos - cerca de 15 €]  o que na altura era muito dinheiro. Alguns agradavam-me e tenho pena de nunca ter feito um "sacrifício" para comprar algum.
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O Arcada é um mar de gente em burburinho, uns lendo, outros comendo, outros escrevendo ou preenchendo sonhos de Totobola, outros conversando com a língua e os dentes e os lábios e as mãos quando não com o corpo inteiro. Do outro lado, além à minha esquerda, um homem está sentado tirando dum saco de plástico algo cujo conteúdo lhe enche as mãos: talvez moedas. Insólito, a seus pés, uma enorme e brilhante bacia de cobre amarelado. O homem levanta-se - tem uma pasta de cabedal quase do seu tamanho - pega na bacia e encaminha-se para a porta, por onde entra e sai muita gente, com ar lento e vagaroso de quem nada tem para fazer. Lembro-me de há quatro anos - ou mesmo há dois - e há muito mais mulheres e raparigas - algumas bem giras, por estas mesas. Évora "civiliza se". Só a minha hospedeira continua com as suas concepções retrógradas de outros tempos e outras eras, que continuam [no fundo] a ser as de Évora.
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À minha direita dois velhotes conversam: um deles conta qualquer episódio relacionado com a sua estadia na Grande Guerra de 14/18. Olho à minha volta e o café está mais vazio; não encontro o Camilo, que pela segunda vez passou há pouco além no corredor central. Deve estar em dia não. Mais velhotes sentam-se ao lado da minha, iniciando amena cavaqueira. Agora reparo que esta é a mesa deles. Adeus, estudo. Um deles diz que os gajos da situação são os que mais maldizem o Marcelo[Caetano] e os que mais o homenageiam. (MCG - 1972.09.28)
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Enfim, interessante como a camaradagem se transformou em divergência, cansaço e desencanto. Talvez porque tal camaradagem era dos tempos livres e não do estudo. Neste Instituto o estudo conduz ao individualismo. Lembro me dos montes de malta que se reunia ali no Palácio de Vidro, defronte ao Nazareth [livraria], ao fim da tarde e após o jantar, no tempo fresco do Outono. Ou as reuniões no Arcada, quando foi tempo do frio e da chuva, amontoados ao redor duma mesa. Mas parece-me que nem Évora nem o Instituto propiciam a camaradagem e a solidariedade. (MCG - 1972.10.04)
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Ontem um bêbado abordou-me quando via os livros na montra da Livraria dos Salesianos. (1) Queria saber qual era a melhor história que ali estava. Ou a maior ? A de todo o mundo! De todos os tempos Que todos aqueles livros eram mentiras. Para as pessoas comprarem pensando serem verdades. Era a máquina! Se eu acreditava que o homem tinha ido à Lua, se eu vira com os meus olhos. Que os jornais e os livros só diziam mentiras. Que nenhum homem pudera ter ido à Lua porque ele não vira. E que eu tinha sido enganado pelos jornais. Era mentira, talvez tivessem ido, mas tinham morrido todos. Que isso dos submarinos andarem debaixo de água era diferente: era a Terra.
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Quanto pagaria eu para ele me contar uma história daquelas, vinda do fundo do coração? (E vai daí, faz um gesto como que proveniente das profundezas do mesmo mas, ou pela bebedeira, ou lá porque fosse, o gesto iniciou-se baixo demais e não pude deixar de comentar com a minha habitual ironia: "O seu coração está baixo demais!". ) Quis saber o que eu fazia - se era escritor e já escrevera o meu livro - e não acreditava que eu vivesse do ar e do vento. Enfim, que se tivesse 25 anos como eu estava mas é em Lisboa, que isso sim! E lá se ia agitando desequilibradamente o velho (de 57 anos), num asilo, convidando-me (ou convidando-se) para um copo ali na taberna, beata ao canto da boca com um grande morrão e deitando perdigotos como nuvem rota em dia de inverno. Mas nem queiram saber a insistência com que ele duvidava da ida dos homens à Lua. (MCG - 1972.10.23)
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1 - Esta livraria situava se no largo das Portas de Moura, no qual existe um chafariz mandado edificar pelo cardeal D. Henrique, que foi inquisidor e tio do rei D. Sebastião, falecido na Batalha de Alcácer Quibir. Aqui se situavam o edifício do tribunal e daqui se avistavam a janela manuelina da casa de Garcia de Resende e, mais para cima, a imponência da Sé medieval. Neste largo se situa também o mirante galeria da Casa Cordovil.

 Em Évora abriram novas instalações de pronto a vestir, perto do Teatro [Garcia de Resende] - 4 pisos. Junto à Livraria dos Salesianos abriu uma loja de electrodomésticos. Évora moderniza a sua fachada. Já não era sem tempo. (MCG - 1972.11.28)
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Passei pelo café, que estava vazio de quem me interessasse. Apenas a Lídia, o Tobias e o Luís, muito entusiasmados porque em Évora "rebentara um golpe de estado" (!) O Tobias teria visto um movimento desusado e aparatoso de polícias com capacetes de aço e metralhadoras aperreadas nas imediações do Governo Civil. Para lá seguiu o grupo, mas sem mim, pois tenho mais que fazer. Amanhã lerei os jornais e logo saberei.
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Évora moderniza se. Este ano o Giraldo terá iluminações natalícias. Vamos ver se as colocam antes de eu abalar ou não as retiram antes do meu regresso. (MCG - 1972.12.15)
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Tac tac - tac tac - tac tac, cá vou eu a caminho de [Évora] num comboio ronceiro que espero chegue à tabela. Ao chegar, às 21:30, a falta de táxis e o excesso de "chegantes" fizeram com que o Régua e eu pegássemos nos respectivos sacos e mochilas rumo, um ao fim da Rua dos Mercadores, outro ao princípio da do Raimundo. Embora os sacos não fossem pesados, são incómodos de transportar, pelo que a meio do caminho eu protestava contra as minhas brilhantes ideias e murmurasse para com os meus botões acerca da minha fartura de mim e da muita paciência que eu tenho para aturar-me. (MCG - 1973.01.04)
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A sala de espera deste consultório médico é bastante desolada. É ao entardecer, as luzes estão ainda apagadas e a pintura azul das paredes não aquece o frio que paira no ar. (...) Olho pela janela, que dá para uns pátios com aspecto medieval, mas interessantes: laranjeiras, muros e paredes escurecidos pela queda da cal e da chuva, janelas pequeninas e muita roupa estendida a secar - lençóis, camisolas, camisas, calças e o mais que é. Mais adiante a torre [das cinco quinas] que fica na esquina da Rua da Alcarcova de Cima (traseiras do Arcada) e a Rua Nova. A empregada veio acender a luz e dos clientes que estavam à espera só resto eu. Foi mais rápido do que eu supunha.(MCG - 1973.01.15)
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A tarde de hoje tem estado verdadeiramente tempestuosa: vento ciclónico e chuva a cântaros. É um prazer andar pelas ruas com o vento a bater na cara e o cabelo revolto. Mas desde há uns largos momentos que me encontro no abrigo que é o café Portugal - hoje é 3ª feira e o Arcada está poluído e barulhento. O vidro da montra, defronte do qual me sentei, está embaciado, como se fosse nevoeiro, e as pessoas que passam, correndo ou vergadas sob os guarda chuvas abertos, são sombras fantasmagóricas, como as luzes do outro lado da rua. Na mesa ao lado o Camilo escreve. Deve ser o 3º testamento, nesta tarde. (...)
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Chegou agora o Guerreiro, mas vai lendo os vespertinos para se pôr em dia. Assisti ontem, como não podia deixar de ser, ao discurso do Marcelo Caetano sobre o Ultramar Português, na sequência dos incidentes verificados em Lisboa na Capela do Rato, após a atitude tomada por um grupo de católicos - chamados progressistas - sobre a paz - e as consequências da guerra colonial. (...) Pois o discurso do 1º Ministro foi atentamente escutado pela audiência ali do Café Alentejo onde vejo o pouco que me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente. Um discurso notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e factos, pela sua poesia
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("Que bom poder ser moralista...", faz-me lembrar um dos poemas dum dos heterónimos do Fernando Pessoa ), pela deturpação dos factos e pela demagogia. Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece um facto que o Governo Português procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)
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Vou até ao café lanchar e poluir um pouco os pulmões. (MCG - 1973.01.24)
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                  NATUREZA MORTA

Évora é uma terça -mercado numa praça
…......numa praça em terça-mercado um café
…......de um café em praça numa terça-mercado
de agrários cinzentos
como cepos sem vida


e o meu cansaço
o meu cansaço é uma ilha escarpada em
….....................passos em pontes pontas sem margens

Por onde os mares com arvoredos nas encostas verdejantes
............as mãos..........armas ou arados
..................................nos dias que vão?


..onde o tempo das papoilas
.…........................dos cantares
.......... cabelos soltos ao vento
......... de abril em maio?


Évora é uma ilha
…......ilha em pedra e cal
….....de ruas estreitas e tortuosas
….....as miúdas em bandos cerrados
….....nas mãos dos homens
….....rapazes velhos em

Évora há colunas pântanos lamaçais
…......relógios parados ponteiros partidos
…......pesos ….sombrios.....de âncoras em cadeias
….....de casebres refulgindo
….....em dias fechados
….....de ferro e cinzento


Évora
…...... é
…...... uma
…...... escarpa
…...... agreste
…...... com
…...... lábios
…...... cerrados
…...... em
…...... deserto
…...... sem
…...... fundo
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Victor Nogueira - Poesia
7210. 016.3 / 3. 008
1972.Outubro.17 (1985.Outubro.13/1989.Março.01)
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OBRIGADO

Obrigado, muito obrigado
obrigado por todos os presentes que hoje me ofereceste
obrigado por tudo quanto vi, escutei, recebi
obrigado pela luz que me despertou
obrigado pela roupa que me veste, pelas cores que ela
                tem e pelo corte que a faz bela
obrigado pelo jornal, pelas histórias do Tintin, sorriso semanal, pelas reuniões
                austeras, pela justiça que se fez, pela partida ganha
obrigado pelo camião do lixo e pelos homens que o acompanham,
                pelos gritos que soltam de manhã, pelos ruídos da rua que acorda
obrigado pelo metal, entre os dedos apertado, pelo longo lamento que
                ele solta sob o aço que o morde, pelo olhar satisfeito do contramestre,
                 pelo carinho cheio das peças terminadas
obrigado pelo Camilo que se sentou à minha mesa, pela simplicidade
                do Rocha, pela mão do director no meu ombro, pelo
                sorriso - sempre é sorriso - do Rola, pela malta de  Económicas
                que me reconheceu, pela amizade do Artur e do Luís Filipe
obrigado pela rua acolhedora que recebeu os meus passos, pelas
                montras das lojas, pelos automóveis, pelos transeuntes, por
                toda a vida que escorria lenta, entre as paredes das casas,
                manchadas de sol
'obrigado pela comida que me sustentou, pelo copo de café com
                leite que há pouco me matou a sede
obrigado pelo autocarro que facilmente me levou onde eu  queria
                pela gasolina que o fez funcionar, pelo vento que
                me afagou o rosto, pelas árvores que me saudavam quando
                eu ia a passar
obrigado pelas miúdas que encontrei hoje
                pela graça marota da Isabel., seu sorriso-riso sonoro
               que alegra a gente
                pelo ar sereno da Noémia
                pelo sorriso da garota do Chiado, aquela que tinha uma
               covinha no queixo,
                pelas travessuras da Microbianas
                pelo olá da puta que se cruza comigo diariamente
obrigado pela alegria do Jorge perante os brinquedos que comprara
obrigado pelos bons dias que me desejaram
                pelos apertos de mão que reparti
                pelos sorrisos com que me brindaram
obrigado pela mãe que em casa me acolhe, pela sua presença
obrigado pela amizade do pai, apesar do seu silêncio
obrigado pela amizade desajeitada do Zé Luís
obrigado pelo tecto que me abriga, pela luz que me ilumina,
                pela música que ouço
obrigado pelo Zeca Afonso, pelo Vivaldi
obrigado pelos livros, pelo Steinbeck pelo Jorge Amado,
                pelo Manuel Alegre e pelo António  Reis
obrigado por tantos eles
obrigado pelo ramo de flores,
                pela erva no telhado, pequenas florestas galgando montes

obrigado pelos dias luminosos
                pela noite serena
                pelo céu estrelado
                pelo silêncio

obrigado pelo tempo que me deste ...
pela vida
por sentir tudo isto
obrigado por estares aqui
obrigado porque me escutas, me levas a sério. recebes em
      tuas mãos o feixe dos meus dons para oferecê-los aos
                outros
obrigado
muito obrigado

 Michel Quoist
(adaptado - Évora 1971.ABR.14)
(1989.MAR.01)
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posts anteriores sobre "évoraburgomedieval no antigamente"
13 de Agosto 
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14 de Agosto
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Praça do Giraldo
café arcada

café portugal
cafe arcada

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)