segunda-feira, 29 de agosto de 2011

évoraburgomedieval no antigamente (6)


  

por Victor Nogueira a Domingo, 28 de Agosto de 2011 às 20:58
As tuas alterações foram guardadas.
* Victor Nogueira

CENAS DO JARDIM
[de Diana, em Évora,  na parte de cima. onde esta(va) o coreto e na parte baixa - fora da muralha - onde se situava o parque infantil - entrada paga,  na altura - e o  campo de  mini-golfe]

1. Era um jardim
geometricamente desconfortável
artificial
No coreto
a banda tocava.
Além
caridosamente
alguém partilhava com os "jardineantes"
as goelas do transístor escancaradas
No banco
ao meu lado
uma matrona e uma gaiata conversam
banalmente,
"Puxa a mala um bocadinho mais para baixo.
Isso! Assim!
Para que te não vejam as pernas"
E eu sorrio-me
por entre a sisudez duma "Introdução à Vida Política"
Pobres e ridículas gaiatas!
Pobres e ridículas matronas!

2. Era um miúdo esfarrapado
sujo
de rosto envelhecido,
Aproxima-se do guarda, mas o dinheiro não chega.
Mas o velho, que já terá sido criança, deixa-lo entrar.

O miúdo envelhecido corre,
Para,
Hesita!
Os olhos sorriem no rosto sujo,
Balancé? Carrocel? Escorrega? Ou avião?
Não poder ele desdobrar-se!
Corre, sobe, escorrega
o mundo é dele

Agarra-lo.
Sobe, desliza, corre, sobe, desliza
sobe; desliza, corre, sobe, desliza
contorce-se

"MÃE, OLHA ESTE MATULÃO SUJO! VAI-TE EMBORA!"
As avózinhas contorcem os lábios
num rictus de desprezo
os meninos apedrejam com a língua e crucificam com os lábios.
Ele hesita.
Baloiça, baloiça, baloiça!
Roda, roda, roda,
sobe, desliza, corre, sobe, tropeça, sobe, desliza, corre!
contorce-se, baloiça, roda
Olhos brilhantes cheios de felicidade!
Um velho num corpo de criança
pequena para a roupa suja
esfarrapada!

As avózinhas contorcem os lábios num rictus de desprezo
Os meninos, esses apedrejam com a língua
e crucificam com os lábios
Velhas envelhecidas
Garotos moribundos

e uma criança num pequeno corpo de velho!


1969.Fevereiro.24 – Évora


6ª FEIRA SANTA


Ah! 15 horas!
Sim, foi há uns dois mil anos
Houve um Deus feito homem
- ou um Homem feito deus -
não sei bem.
A memória dos homens é fraca.

Mas, ... não interessa
Há dois mil anos alguém morreu numa cruz
Vejam lá!
Até disse coisas simples
"Que o vosso falar seja sim, sim,
"Amai-vos uns aos outros!"
"Perdoai as nossas ofensas
"Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido"
Tudo coisas neste género,

Bem, também falou em choro e ranger de dentes
em maus servos,
infiéis,
Lembro-me, bem, lá lembrar não lembro
- ainda não era nascido
pois, lembro-me
NÃO!
Dizem-me que esse alguém disse
para não cortar as ervas daninhas
antes de vir o tempo da ceifa,
não fosse estragar-se a seara.

Foram assim coisas nesse género.
Coisas simples..
Pois só os simples as entendiam.

"Não julgueis para não serdes julgados"
Parece-me ser também de sua autoria.

Não interessa.
Deve ter sofrido muito
-até chorou lágrimas de sangue! -
Vejam lá!
A mesma multidão que lhe cantou hosanas
ululou selváticamente no Calvário
- não confundir com o António.
Não brinco.
Sei quanto pesa a solidão,
a traição dos amigos
o sono dos que dizem acompanhar-nos
Ah! sei! Oh! se sei!
Quão pesados são os risos de escárnio
as galináceas multidões
cacarejando
aos uivos.
E eu não tenho pretensões de morrer
para salvar as meus irmãos
- só dou para alguns.

Dizem que foi há dois mil anos
que os seus frágeis ombros de Homem feito deus
ou Deus feito homem
suportaram o pesado madeiro
feito das nossas lágrimas,
dos nossos desesperos,
das nossas angústias,
das nossas raivas,
das nossas faltas
que não são nossos,
mas do Adão e da Eva.

Morreu sózinho,
abandonado,
numa a cruz
ladeado por dois ladrões
- o bom e o mau,
o Judas e o João
o espírito e a matéria
o homem e a mulher
o lupanar e a igreja
Gabriel e Lúcifer
o bem e o mal ...
Dizem que foi por mim, por nós.

Depois
os homens pegaram na sua solidão
Institucionalizaram-na
(é um termo bonito)
Juntaram-lhe artigos
alíneas,
parágrafos,
ritos
gestos
penumbras,
trindades,
Trentos e Vaticanos.

"Quem não for por mim
é contra mim!"

Organizaram-se cruzadas
Alcácer Quibir
a Inquisição
o Index
os autos de fé
- ah! o fogo purificador -
Vá, em fila
Auschwitz Bergen-Belsen

Está tudo bem escrito
o que deve fazer-se
o que não deve fazer-se
artigo 8º e suas alíneas [1]
É preciso estudar muito
Direito Natural
Doutrina Social da Igreja
Filosofia
Teologia
Teodiceia
Direito Canónico
Internacional Público

Ética
e muita matemática
cálculo infinitesimal
para extrair a média aritmética
da raiz quadrada disto tudo
(parto sem dor)
e planificar bem. a distribuição dos pecadores
e dos bem aventurados,
para que não haja inflação
para que se equilibrem
as curvas da oferta e da procura.


Hoje não se come carne·
nem se ouve música
deve comungar-se ao menos·
uma vez cada ano
Pela Páscoa da Ressurreição
Domingo
Mete-se a moeda
sai a confissão - perdão - absolvição
despache-se
não vê a multidão
enorme
quedesejalavaraalma?



[1]  [o artº 8º da Constituição  fascista, do chamado Estado Novo - que foram paridos já muito envelhecidos/ envilecidas definia os direitos dos/das cidadã(o)s, negados, liimitados e/ou condicionados nos parágrafos que se seguiam ao corpo do referido artigo]

1969.Abril.04 - Évora

**********
à guida sem amor hoje


na sua aconchegadora toca
rodeada dos seus amores
a guida
com bach e beethoven
deleita-se
com as “humanidades”
masturba-se
com a Poesia

“La poésie c’est tout autre chose
“La poésie c’est l’ indisible
“Ce qu’ on ne voit pas
“Ce qu’ on aime trop
“Pour pouvoir le dire!”

(palmas, muitas palmas, delirantes)

de vez em quando desce ao povoado
vibra sofre horroriza-se
(coro) muito muito muito muuuiito (num crescendo, ecoante)
... e volta para a sua toca
escandalizada com os terra-a-terra
com os espíritos práticos desprezíveis
a quem deve os livros
os discos
e tudo aquilo com que na segurança vai vivendo
coitada da margarida
tão sensível
tão cheia de amor pelos outros

(soluços, lágrimas, oceanos de lágrimas)

os outros ahhh ! os outros !!!

“Et pour toi mil fois merde
“je te le dis!
“que sais-tu de poésie, toi
“qui regarde les journaux
“aux yeux avides de voisine
“qui aime trop les nouvelles
“qui ne veut que savoir
“ce qui se passe au monde?”

(indignação, himalaias de indignação)

com a Poesia
masturba-se
com as “humanidades”
deleita-se
com bach e beethoven
a guida
rodeada dos seus amores
na sua aconchegada toca


1971.Julho.24 - Évora

poema para um relatório de estágio numa escola normal

as criancinhas avezínhas pobrezinhas
(pobrezinha uma ova)
Mas as criancinhas

Em bandos chilreantes

lá vão p'ra escola


DEUS PÁTRIA FAMILIA

uns doutores serão
outros cavadores
da terra ou p'ra França
lá vâo
uns enchendo a pança
doutros esvaziando
lá vão cantando e rindo
levadas p'ra Escola
as criancinhas

DEUS PATRIA FAMILIA

tão branquinhas
OMO LAVA MAIS BRANCO

tão branquinhas
TIDE É LOVE STORY

tão branquinhas
asseadinhas

arranjadinhas
tadinhas tadinhas
"não se distinguindo as que vivem
com mais dificuldades economicas ..." *
... isto é
a ralé dos senhores
ou os senhores da ralé


Em bandos chilreantes
P'rá Escola saltitantes
"perdendo tempo em coisas dessas" **

DEUS PATRIA FAMILIA
De branco as criancinhas


* de um relatório de estágio numa escola normal
** NB - inadvertidamente, ela é um poço de verdades oportunas


1972.Maio.30 – Évora

 ·  ·

Alice Coelho, Ana Paula Sena Belo e Antonio Garrochinho gostam disto.

Antonio Garrochinho vou ler com tempo camarada Victor ! depois dou a minha opinião mas antecipadamente sei do valor dos seus trabalhos e gosto deles
há 4 horas · Gosto


Alice Coelho trabalho elaborado com toda a minunciosidade e rigor... como já vem sendo hábito aos nossos olhos.... abraço Victor :-))
há 3 horas · Não gosto · 1 pessoa

Antonio Garrochinho maravilhoso camarada ! tenho muitos dos seus textos em arquivo ! trabalho de muita qualidade ! parabéns !
há 2 horas · Não gosto · 1 pessoa

Sem comentários:

Enviar um comentário

Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)