terça-feira, 20 de setembro de 2011

Os dias da (Pré) Revolução (3) por Victor Nogueira


 

 a Segunda-feira, 19 de Setembro de 2011 às 1:09


* Victor Nogueira

A "Brigada de Saneamento"

A "Brigada de Saneamento" chegou ao Instituto: o Movimento foi crescendo e engrossando desde o 26 de Abril, em que a Direcção do ISESE tentou impedir a realização duma Reunião Geral de Alunos [RGA] e impôr uma Comissão Administrativa da AE do seu agrado. E desde 6ª feira passada, 3 Maio, o ISESE está em polvorosa e com reuniões de cursos para discussão e deliberações sobre cadeiras e professores que vão desde decisões de reorganização de programas, supressão de cadeiras, demissão de professores e abolição de aulas e exames. Entretanto os Jesuítas voltaram completamente a casaca e já aceitam diálogos e participações e até convocaram a Comunidade Académica (Professores, Alunos e Empregados) para uma reunião hoje á noite! Comunidade Académica !!?? Como é possível mudarem se as pessoas dum dia para o outro? Estou estupefacto! Enfim ...

Tenho tido muito trabalho: durante todos estes dias e noites estive praticamente sózinho tentando levar a água ao moinho da unidade dos estudantes para a gestão do ISESE. A Direcção tem sido completamente desautorizada e fazendo esforços para controlar a situação. A Comissão Organizadora [da AE] tem estado a estruturar se especialmente desde ontem e é preciso agora organizar as comissões de trabalho para não serem torneadas pela Direcção [do ISESE] (MCG - 1974.05.07)


Fora com o calor, já!

O Calor é aquele monstro que nos empasta o cérebro, é uma pancada súbita quando se passa do átrio do instituto para a rua, é aquela viscosidade que nos encarapaça o corpo, os dedos, o tronco coberto pela camisa, os sovacos, a região púbica. FORA COM O CALOR, JÁ! (MCG - 1974.07.24 - aniversário da Revolução Cubana)

Um breve regresso a Económicas (ISCEF - UTL)

Está um dia de calor abafado. Desconhecendo ainda o que a casa gasta, saí de manhã com o guarda chuva na mão e o casaco debaixo do braço. O que vale é que Lisboa é grande e a minha parvoíce passa desapercebida. Estive em Económicas com a Manuela Silva, sobre a possibilidade de participação no corpo docente do ISESE. Para além disso S.Exa perguntou me o que fazia eu, e como lhe dissesse que estava no "exército industrial de reserva", perguntou me o que me interessaria (talvez haja possibilidade no MEC) e ficou de contactar comigo. Os contínuos (o sr.Pinto e o sr.Cascais) - vê lá! - ainda se lembram de mim e perguntaram me se eu voltava para Económicas. Ah!Ah!Ah! (1) (MCG - 1974.09.12)

1 - Em Luanda as entradas e saídas nos Liceus eram controladas. Pelo que em Portugal, na 1ª vez que entrei em Económicas, em 1966, dirigi me ao porteiro, creio que era o Cascais, dizendo que era aluno e se podia entrar. Enfim, caloirices ingénuas, como depois verifiquei, pois a entrada nas faculdades era franca e ninguém controlava as movimentações.

 Alfabetização

Este postal é - creio - uma fotografia retirada dum dos dois filmes que há dias vi sobre as campanhas de alfabetização, as tais em que eu gostaria de ter participado em Agosto último se ...   Esta cena do filme era comovente: uma mulher que até aí não sabia comunicar por escrito, conseguir fazê-lo. A procura das sílabas, o gesto hesitante, o voltar atrás para corrigir ou desenhar melhor a letra !!! Deve ser bestial um tipo descobrir que sabe ler, não achas? (MCG - 1974.11.17)
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Aqui no café Estrela vão progressivamente substituindo as pequenas mesas de pedra preta e as cadeiras amarelas por amplas mesas brancas com armação preta e confortáveis e anatómicas cadeiras laranja. É o fim da manhã de domingo, um domingo cheio de sol mas frio. (MCG - 1974.12.08)
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Pouca terra, pouca terra, cá vai o comboio para Évora. (...) Despachei as malas - vêm no furgão, mas o saco com os livros pesa muito.  Ali duas velhotas discutem as vantagens de ser criada de servir: ganham bem, vestem os vestidos da senhora, não gastam nada. Uma vida de fidalgas. Opiniões! Há pouco discutiam a nudez: passar aí um homem todo nú, que falta de moral e patati patata. Eu rio me a bandeiras despregadas e ela mete-se comigo. (MCG - 1974.12.10)
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Acabou de chegar o almoço. Isto não é comida para uma pessoa de alimento como eu. Évora deve ser das cidades onde se come pior. Parece que os alentejanos jejuam por sistema. Arre! (MCG - 1974.12.16)
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 Ontem andei de avião sobre Évora, que é uma cidade bestial lá de cima. Foi a 2ª vez que andei de avioneta na minha vida - a 1ª foi em Angola, tinha para aí três anos. Tirei umas fotografias. (...) Aqui para nós, um pouco antes, quando o teco-teco começou a rolar na pista estava um pouco apreensivo, mas logo liguei à terra. Sobrevoámos a cidade, fomos a S. Bento, às piscinas, à Cartuxa, ao convento do Espinheiro. É bestial! (1974.12.23)
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O ISESE foi desocupado às 14:30, por decisão do Plenário de Estudantes. [Os jesuítas]vistoriaram o edifício, que foi achado em bom estado de conservação, apesar de não sei quantas lâmpadas fundidas, dum interruptor partido dum quebra luz partido - 15 contos (resultado duma bola mais alta) e duma poltrona combalida. (...) Nas instalações da Associação dos estudantes foi assinada a acta de desocupação, depois de mais discussão sobre os termos [da mesma] (1974.12.26)


O 1º emprego, a tempo inteiro

Estava eu já todo porreiro da vida, de saco aviado, prestes a partir para Lisboa, quando telefonei ao  Aníbal Queiroga como combinado. Assim, tive de adiar a viagem e estou aqui na Escola Industrial de Évora há quase 2 horas, primeiro aguardando que chegasse o Presidente da Comissão de Gestão e agora que S.Exa se digne terminar o despacho com o Chefe de Secretaria. Venho falar lhe para saber da hipótese de leccionar "Introdução á Política". Acho que são 31 horas semanais (sendo 10 extraordinárias) o que daria cerca de nove mil escudos mensais. Como é uma hora semanal por turma seria ... 31 turmas por semana, o que daria qualquer coisa como ... mil alunos. Safa! Se não houver que fazer e corrigir exercícios, mal não iria a coisa. Claro que um tipo tem de gramar o mesmo paleio horas seguidas por semana, já que é o mesmo programa para todas as turmas, o que poderá tornar se chato. Por outro lado, como é a mesma matéria teria menos trabalho a prepará la. A ver vamos (embora ficar em Setúbal me seduza mais).

A merda do despacho não há meio de acabar. Entretanto alguns professores - que chegaram depois de mim - vão entrando e despachando se. (...)

3 horas! 3 horas foi o tempo que estive aguardando que o dr. Pimentel me recebesse. 2ª feira dar me á a resposta. Embora eu não diga nem que sim nem que não, o Queiroga diz que eu sou é pessimista. A ver vamos. (MCG - 1974.11.27)

Não sei bem se isto que está em mim é "nervoso" ou ... gripe. Os dados estão lançados e vou para Évora dar aulas na Escola Industrial. O Dr.Pimentel queria que me apresentasse ao serviço já na 3ª feira, a mim convinha me na 4ª e acabou por ficar para 5ª! Vamos lá ver como isto corre. Hoje e amanhã tenho de preparar a lição. Ah!Ah!Ah! (isto é para disfarçar a morte que me vai na alma). Francamente, não me seduz ser professor de meninos! Mas ... podia ser pior! (MCG - 1974.12.02)

Já hoje me deram o horário ("o senhor doutor para aqui", "o senhor doutor para acolá" - deixarei de ser o Victor contestatário ?), (1) fizeram me as recomendações ("isenção, nada de transformar as aulas em comícios", "CDS não, mas PPD para a esquerda, sim, mas não extrema esquerda" informaram me do ambiente político (predomina a UEC, há divergências entre os alunos de dia e de noite, por causa da Associação de Estudantes); enfim, eis me apanhado pela engrenagem. (2). Tenho 29 1/2 horas semanais de aulas (não sei quanto será ao fim do mês) (3) e um horário muito sobrecarregado (a maioria das aulas á tarde, 3 á noite, nenhuma ao sábado e 2ª de manhã - "Assim o sr. dr. pode ir para Lisboa". ) Tenho alunos - rapazes e raparigas - desde os 13 aos 30 anos. A maioria entre os 14 aos 19. Só á 3ª tenho aulas ás 9 da manhã. (...) Cá recebi hoje no apartado a tua carta cheia de "bons" conselhos (Como se aturar adolescentes e dar "Introdução à Política" for o mesmo que aturar ingénuas criancinhas!) De qualquer modo, obrigadinho. (MCG - 1974.12.05)

Cá estou eu no 2º dia de aulas, que vão correndo. Não sei qual é a aceitação dos alunos. Ainda ando a fazer "experiências" para ver como hei de dar aulas.(...) (Ah! Não sei se já vos disse que acabei em professor de Vida Política e [de] Introdução á Política) Tenho 28 horas semanais e os cursos gerais e complementares, com alunos e alunas dos 13 aos 27 anos (á noite). Enfim ...Não sei quanto vou receber ao fim do mês. (NSF - 1974.12.09)

Acho que não tenho feitio para professor. Ou será apenas falta de calo? Dar aulas tem um aspecto positivo: permite me ver as lacunas e imprecisões dos meus conhecimentos. Mas falta me (por quanto tempo?) uma certa disciplina na exposição e no estudo. Não sei se as minhas aulas são boas ou não. Dalgumas gosto - penso que consigo interessar os alunos. Outras sinto as como um autêntico fracasso. Ainda ando a tactear, a ver como hei de dá las Tenho de passar a fazer uma exposição prévia - conforme as diversas rubricas do programa - á qual se seguiria um debate - sobre o assunto da exposição ou outros (aqui, pelo menos no princípio, é que a porca torce o rabo, pois um tipo não sabe tudo) Prefiro dar aulas aos miúdos do curso geral do que aos do curso complementar - e ainda menos á noite. Para mim, isto é uma função muito desgastante psiquicamente. Não tenho suficiente frieza emocional e há ocasiões em que não me apetece ir dar aulas. É como se fosse um elástico esticado. Conheço alguns dos professores, que são de duas categorias - jovens ou mães de família. Mas não me sinto muito ligado aos professores; preferia estar do lado dos estudantes. Hoje numa das turmas - a mais sossegada e que me parece esperar algo de mim - disseram me que as aulas deviam ser de diálogo e camaradagem. Mas ... sinto que a aula foi um fracasso. Preciso de preparar melhor as lições e ser mais disciplinado e com maior frieza de espírito, mas falta me muito do material de estudo - parte encaixotado, parte em Lisboa. (MCG - 1974.12.10)

Tenho tido algumas aulas giras, mas noutras é uma frustração. Algumas são muito barulhentas (p'rá semana isto tem de mudar), outras são porreiras. Gosto mais de dar aulas aos gaiatos. (MCG - 1974.12.11)

1 - No princípio este tratamento por senhor doutor incomodava-me deveras. Agora já me habituei e por vezes faz jeito, embora goste mais de ser apenas o Victor Nogueira.

2 - Centro Democrático e Social, Partido Popular Democrático

3 - Recebi anteontem o vencimento; apenas as horas normais, a 60 $ 00 (Não recebi os 4 primeiros dias). Creio que o meu vencimento líquido são 6 700 $ 00, aos quais serão de acrescentar as horas extraordinárias, pagas ... a um preço inferior ás normais! Ah!Ah!Ah! Isto é que o Estado é um bom patrão! As extraordinárias devem ser aí mais uns 1 800 $ 00 a 2 100 $ 00. Quanto a 13º mês ... só para o ano. (MCG - 1974.12.21)

Pena de pato

Há que tempos não escrevo com uma caneta estilo pena de pato, daquelas que temos de molhar frequentemente no tinteiro. Quando eu tinha para aí 7 anos - menino e moço em casa de meus pais - era com uma maquineta destas que se aprendia a escrever. Claro que eram mais os borrões que as palavras. (MCG - 1975.01.28)  

Évora - vista aérea  (22.XII.1974) - Sé, ISESE, Templo romano e Jardim de Diana - Foto VN
Proclamação aprovada em Plenário de Estudantes em 3 Maio 1974 (relator Victor Nogueira) à qual aderiu parte do corpo docente e não aceite pelos restantes professores e pela Direção do ISESE e pelos professores membros da Companhia de Jesus (Jesuítas)
Negociação dos termos da Acta de suspensão das actividades do ISESE
Abandono das Instalações pelos representantes da Compahia de Jesus (Pe, Vaz Pato sj - Director) e da Fundação Eugénio de Almeida (D. Alexandre de Lencastre) - Foto VN
P
Postal sobre as Campanhas de Alfabetização, referido nesta nota

Évora - Convento do Espinheiro  - Foto VN
Évora - túmulo de Garcia de Resende no Convento do Espinheiro - Foto VN

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    • Gloria Oliveira Palavras esfolhadas que fazem história. Palavras vividas, escritas com paixão. Gostei.
      Segunda-feira às 3:14 ·  ·  1 pessoa


    • Alice Coelho Mais um excelente texto que sempre leio, não com a mesma paixão com que é escrito...mas com toda a atenção que ele merece...bj grande
      Segunda-feira às 4:12 ·  ·  1 pessoa


    • Antonio Garrochinho trabalho de muita dedicação para honrar a nossa história. Excelente Vitor. Mais um dos teus trabalhos que vou arquivar com muita satisfação ! abraço !
      Segunda-feira às 7:53 ·  ·  1 pessoa


    • Lurdes Martins Bom trabalho! Abreijos, amigo "vizinho"...:-)
      Segunda-feira às 9:51 ·  ·  1 pessoa


    • Aristides Silva 
      Gostei muito de mais este teu trabalho, sobretudo porque nessa altura eu já estava a viver no Porto, completamente dedicado à militância politica. Nesta altura, anos 74 e 75, as lutas de 
      estudantes já nada me diziam. A conjuntura era outra, mas gostei de saber o que vocês tentaram fazer na altura. Foi no nosso curso que apareceram os primeiros «contestatários» do sistema. Até aí os jesuítas navegaram a seu belo prazer. Mas agora estou a ver, que vieram todos embora mas ficou ainda lá o Vitor.
      Segunda-feira às 12:06 ·  ·  2 pessoas

    • Victor Nogueira Olá Aristides :-)
      Segunda-feira às 12:22 · 


    • Carmen Montesino Plenamente de acordo: fora com o calor, já!!! Grata pelos testemunhos!
      Segunda-feira às 13:46 ·  ·  1 pessoa


    • Belaminda Silva Victor, obrigada por esta linda partilha da nossa história é com grande prazer que leio e fico saber o que se passou nestes tempos. Beijinhos e um bom inicio de semana:))
      Segunda-feira às 14:30 ·  ·  1 pessoa


    • João Gonçalves Muito obrigado pela tua descrição destes anos. Já estava no serviço militar andando por Mafra, Lamego e depois Chaves aonde fiz o 25 de Abril. Bons tempos de esperança que se foram com estes oportunistas a que assistimos no dia a dia. Um grande abraço.
      Segunda-feira às 18:51 ·  ·  1 pessoa

    • Victor Nogueira Olá, João. Lamego e Chaves são duas das terras pelas quais fiquei apaixonado como turista e caminheiro :-)
      Segunda-feira às 19:45 ·  ·  1 pessoa


    • Isabel Magalhães Bom trabalho. Com a trapalhada que para ai vai, sabe bem rememorar testemunhos do 25 Abril.Bj
      Segunda-feira às 20:35 ·  ·  2 pessoas


    • Lia Branco Obrigada, amigo e camarada. tenho andado desaparecida :))) Um beijo
      há 16 horas ·  ·  1 pessoa


    • Yolanda Botelho muito obrigada Lia,beijinhos
      há 9 horas ·  ·  1 pessoa


    • Jose Eliseu Pinto 
      Obrigado, Victor, pela oportunidade de reviver alguns episódios de um passado comum, lembrar amigos - alguns já desaparecidos, como é o caso do Aníbal Queiroga, que aparece na fotografia do "armistício" a representar-nos - e inimigos, também.

      Tu, em particular, desempenhaste um papel importante no "meu" 25 de Abril. Provavelmente não te lembrarás, mas foste tu quem levou a notícia ao meu curso, quando irrompeste pela aula de Economia Política, do Padre Borges, anunciando o golpe de Estado por cuja clarificação ainda esperámos, angustiadamente, algum tempo, já que havia insistentes rumores de que a sublevação militar poderia ter uma orientação política da extrema-direita do Kaulza de Arriaga.

      É uma viagem pela avenida da memória, devidamente assessorada por um guia de competência irrepreensível.

      há 11 horas ·  ·  1 pessoa


    • Jose Eliseu Pinto Bateu forte a fotografia da negociação dos termos da desocupação. Nela consigo identificar o Aníbal Queiroga, o Ramalho, a Benvinda Cágado, o Aranha. Na sequência do acordo a que se chegou, viria a ser constituída uma "Comissão Paritária", responsável pela gestão partilhada do ISESE, na sua transição para a ESESE-Bento de Jesus Caraça, na qual eu viria a ter assento, em representação dos estudantes do meu curso.
      há 11 horas ·  ·  1 pessoa

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)