quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Os dias da (pré) Revolução (4) por Victor Nogueira


 


a Quarta-feira, 21 de Setembro de 2011 às 23:43

* Victor Nogueira

(...) São quase 13 h 30 m e tenho o estômago colado às costas; os empregados dos cafés e restaurantes estão em greve por causa do contrato colectivo de trabalho. É uma greve alternada: hoje há jantar e almoço amanhã; nesse mesmo dia não haverá jantar bem como nenhuma refeição na 4ª feira. (MCG - 1975.05.05)
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É já noite, durante o jantar, aqui no poiso habitual que é o  "Manuel Iglésias". Choveu todo o dia, por vezes a cântaros, e esteve um frio desagradável. (MCG - 1975.02.11)
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Embora me aborreça o gigantismo de Lisboa, obrigando a perder imenso tempo em percursos, a verdade é que o contraste entre os montes de malta amiga ou simplesmente conhecida de Lisboa e a pacatez sorna de Évora fazem-me detestar toda a vida estúpida de Évora. (MCG - 1975.01.02)
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A propósito de calor... parece que o ambiente "aquece". Manifestações, contra-manifestações em Lisboa, ameaça de golpes em Luanda, manobras da NATO (organização anticomunista) em Portugal... Entretanto os rurais do Baixo Alentejo iniciaram a ocupação das terras, organizando milícias populares armadas. Enquanto isso a Emissora Nacional vai falando cada vez mais "revolucionariamente", enquanto por essa Europa fora, aproveitando-se do boicote ao comício do CDS (no Porto), os partidos burgueses se preocupam muito com [...]  a "ditadura" das esquerdas, eles que nunca se preocuparam com a ditadura fascista. As ocasiões definem os amigos (MCG - 1975.01.30)
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Hoje fui até uma herdade aí para a Estrada de Arraiolos, que os trabalhadores ocuparam. Agora é que os latifundiários começam a não gostar. (MCG - 1975.02.03)
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Chove, nesta tarde de inverno. Rápido, o matraquear da máquina deixa atrás de si um rasto de letras. O céu está cinzento, a soleira da porta alagada. Ouvem-se as bátegas da chuva no lajedo da calçada, enquanto o Olímpio e outro camarada assobiam, por entre o tac-tac ensurdecedor que atroa a sala da Associação dos Estudantes. (...)  Entretanto o ambiente aquece aqui na sala com o "revolucionarismo" do Carrageta que quer destruir - verbalmente - o poder burguês! Rajadas de palavras cruzam o ar, por causa do colectivismo e da anarquia! (...) Bem, vou tomar ar para outra freguesia: ler o jornal, lanchar e espairecer.
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O Carrageta continua ao ataque, contra a escola burguesa, contra os professores, pela escola anarquista, com intervenções verdadeiramente revolucionárias, que não devam nada à burguesia e à sociedade de consumo. "Destruamos a civilização, contra os autoritários que não querem destruir as instituições mas reformá-las. A prática quotidiana dirá o que surgirá dos escombros das instituições burguesas destruídas pelos anti-autoritários."
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Terminada a "Revolução Carragetiana", há um intervalo para um bagacinho. Mas o bar está fechado e o Carrageta sobe ao balcão e num brilhante improviso convoca os presentes para se juntarem à classe operária pela destruição do capitalismo com a Manuela a fornecer as balas para a G 3, porque "a Revolução não está no verbalismo pequeno-burguês mas na ponta duma espingarda". O ambiente aquece à medida que se aproxima a hora da revolução, perdão,... da avaliação. (MCG - 1975.02.08).
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Safa, que a barulheira aqui no café repentinamente tornou se incomodativa, especialmente com a gritaria das crianças e o velho aqui atrás de mim tamborilando com a moeda no tampo da mesa.
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Lá fora chove a cântaros e um cartaz anuncia "Pides na Grelha", brevemente nesta terra. As pessoas passam enfiadas debaixo dos guarda chuva e de vez em quando uma lufada de ar frio invade o café, quando alguém empurra a portaDe hoje a dois meses, segundo o Costa Gomes (1) haverá eleições [para a Assembleia Constituinte]. "O voto é a arma do povo" , só que o povo deve andar muito... desarmado. (...) É Carnaval, mas não parece, salvo um ou outro mascarado pelas ruas e uma ou outra criancinha. O tempo não está para folguedos, salvo em Lisboa, onde cerca de 20 000 a 40 000 organizaram uma manifestação contra o desemprego e contra o imperialismo e a NATO. (...)
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Évora agora "civiliza se": teatro, cinema, concertos... Bem, cinema é como quem diz. A maior parte dos filmes nada vale, segundo o meu critério. 5ª feira vai um, filme que gostaria de ver: "Ferido na Honra" mas... tenho aulas. Na 6ª devo ir ver um filme do Jerry Lewis, "Uma Poltrona para Três", salvo se ainda houver ballet russo a preços (pouco) populares - 60 palhaços.
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Vou alugar a casa da Tapada (Quinta de Santa Catarina), com o João Luís e a Filomena, que se separaram. São 1 500 $ 00 a cada um. (MCG - 1975.02.13)
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A porta vai e vem, as pessoas passam na rua, cartazes continuam anunciando realizações já efectuadas: comícios da FREP (Frente Revolucionária dos Estudantes Portugueses), no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, a 24 de Janeiro, do PS (que foi lá em baixo na Praça de Touros), do MES (uma "barracada") no [Teatro] Garcia de Resende) (2)
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São 10 h 25 m dum sábado do meu 29º ano de existência. Na mesa, os restos do pequeno almoço: o bule vazio de chá. um bocadito de pão ainda com manteiga, restos do pacote de açúcar. Uma natureza morta! (MCG - 1975.02.17)
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O movimento grevista do ensino secundário alastra se a todo o País. O Liceu de Évora está ocupado desde o fim de semana passado, por tempo indeterminado. Na Escola Industrial os cursos complementares declararam greve desde ontem às 14 horas. À tarde aperceberam se que tinham faltas - porque os professores as marcavam - e deliberaram apoderar se do livro de ponto, o que fizeram num ápice. (MCG - 1975.02.25)
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No Liceu há uma RGA: não sei se abolirão ou não a greve. [Terminaram a greve] Na Escola, os alunos estão despolitizados. No fundo são... "bons rapazinhos" (ou rapariguinhas) (MCG - 1975.03.06)
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São 17:15. Os alto falantes transmitem canções de luta e apelos à vigilância revolucionária. De regresso do almoço um aluno entregou me um comunicado do PCP relatando o ataque ao RAL 1, em Lisboa. As ruas estão cheias de gente - os empregos fecharam. Não sei ainda o que isto vai dar: ou avança... ou recua. (...) Um outro comunicado há pouco transmitido inclui entre os implicados na intentona os generais Spínola  e Galvão de Melo, que já teriam "cavado". (MCG - 1975.MARÇO.11)
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Os dias estão maravilhosos e cheios de sol. As andorinhas enchem a Praça do Giraldo com os seus chilreios. (...) Está um domingo maravilhoso, daqueles que convidam à camaradagem e alegria. (data?)
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(...) Está uma tarde maravilhosa: uma tarde verdadeiramente primaveril [quinta feira da espiga]A "malta" foi para o campo; a mim também me apetecia ir, mas ir com eles todos era quase o mesmo que ir sózinho. A primavera é para o namoro e a camaradagem. Assim... vim para casa, lavei a roupa e sentei-me aqui à mesa a estudar: os primórdios do capitalismo e as ideias liberais. Cá recebi os teus "conselhos" para a lavagem da roupa. (MCG - 1975.03.20)
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Começou ontem a feira eleitoral. À meia noite o PPD colocava cartazes, com a ajuda dum escadote. Hoje, chegou a vez do PCP, nas colunas dos arcos. Por seu turno o PS, na Escola, distribui autocolantes "Vota no PS" e sacos de plástico (MCG - 1975.04.02)
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Depois da revolução dos cravos... a guerra dos cartazes e das pinturas. Évora está uma autêntica batalha mural, quase parecendo uma velharia - no fundo o que a cidade sempre foi e a caiação escondia. (MCG - 1975.04.03)
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Uma flor - a primeira - nasce lá no quintal. Mas as outras ainda não deram sinal de si (...) 2ª houve um comício do PPD no Garcia de Resende que foi boicotado por todos os partidos de esquerda, incluindo o PS e o PC. Mas eles conseguiram levá -lo até ao fim. (MCG - 1975.04.11)
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Ontem fui à espiga, com uma das minhas turmas. (MCG - 1975.05.09)
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Acabei de jantar aqui no "Manuel Iglésias". São 21 horas e não me apetece ir para casa. Gosto do convívio social e de estar com as pessoas. Mais um dia de aulas! (...) Ontem foi o último dia de cinema, que só reabrirá lá para o mês de Julho. Até lá teremos a Feira de S. João. Vamos lá ver se continua em decadência. (MCG - 1975.06.16)
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Já recebi o ordenado. (Agora são, líquidos, 8025 $ 00, descontando uns 675 $ 00. (Para quê, não sei) (MCG - 1975.07.25)
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O rádio transmite canções sobre o campo, a música "revolucionária" que o tempo permite. "Ceifa, ceifeira, ceifa, enche o celeiro da cooperativa". reforma agrária vai andando. Há problemas por causa da vigilância das searas, receando -se que os agrários e seus lacaios lhes lancem fogo. Isto para além de problemas que surgem devido à falta de silos para armazenagem dos cereais, de máquinas para a ceifa (pelo que o trabalho terá que ser feito à mão) e de crédito para os trabalhos do próximo ano. Enfim, é preciso coragem e determinação. (MEB - 1976.06.01)
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Os campos agora estão ressequidos e o calor aperta. Só à tardinha e à noite apetece sair. (MEB - 1976.06.15)
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Safa, isto hoje é chuva sobre chuva! Já aborrece tanta água. Estou aqui num café ao fundo da Rua Serpa Pinto, para alinhavar estas linhas. Passei agora pelo Sindicato (dos trabalhadores rurais) onde arranjei uma colecção das teses da Conferência da Reforma Agrária 1976.11.11)
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1 - Presidente da República, nomeado pelo Movimento das Forças Armadas.

2 - Ontem houve um comício do MES, não sabem falar às massas (ao contrário do PRP e do Miguel Bacelar) e usam uma linguagem abstracta e termos difíceis. Não foi uma grande sessão. (MCG - 1975.01.27)






Soldado Luís - Morto pelas forças spínolistas contra-revolucioárias ao RAL 1 - Lisboa 1975 03 11


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    • Alice Coelho obrigado Victor*** abraço
      há 22 horas ·  ·  1 pessoa



    • Antonio Garrochinho obrigado camarada Vitor ! excelente o teu trabalho, como sempre !
      há 14 horas ·  ·  1 pessoa



    • Belaminda Silva Obrigada por esta partilha Victor, como sempre um trabalho magnifico beijinhos e uma boa quinta feira:))
      há 14 horas ·  ·  1 pessoa



    • Carlos Rodrigues Excelentes documentos e Diário de luta, é bom relembrar, mas para muita gente, estás a falar estrangeiro, está tudo demasiado enublado, hoje em dia, para que se entendam os sonhos de outros. A Utopia ainda anda por aí, mas muito dispersa, eu vou guardando o meu bocadinho, dentro da caixinha do impossível possível. Obrigado, Vitor.
      há 12 horas ·  ·  1 pessoa



    • Carmen Montesino Obrigada, Victor. Um beijinho!
      há 10 horas ·  ·  1 pessoa



    • Cecilia Barata Obrigada pela partilha do teu fabuloso trabalho.Um beijinho.:)))
      há 9 horas ·  ·  1 pessoa

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)