quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Victor Nogueira ~ Rimance no deserto desertificado

 




 Sete anos andou João
 Vagueando p'lo deserto
 Sem vinho, água ou pão,
 Indo por destino incerto.

 A mingua d'água mirrava
 Sem o frescor duma fonte
 Em fome se esgotava
 Sequioso duma ponte.

 Em tiras estava o fato
 Sem veludo que se visse!
 Descalço o pé, sem sapato,
 A vida era uma sandice.

 Fizera grande viagem
 Com o coração cinzento
 Sem escudeiro nem pagem
 Ou pedra que fosse assento.

 Pela areia caminhava
 Joelho aqui, pé além.
 Na jornada trauteava
 Sem saber o que lá vem!

 Seu coração era grande
 Para quem lá coubesse
 Cantando mui radiante
 Como se mal não houvesse,

 Seu cavalo não era novo
 Cansado da caminhada
 De Luanda a Porto Covo
 Por terra já navegada,

 Que buscava não dizia
 Calado com seu segredo
 Por ver que não merecia
 Ser mal preso, em degredo.

 Seu caderno era escrito
 Com tinteiro invisível,
 Silencioso, sem grito,
 Em novela incredível.

 Então que é feito bela
 Deste rimance heroina,
 Personagem da novela,
 Tão certa como haver sina?

 Assim perguntava arraia
 Miúda como convém,
 Atenta ao rolar da saia
 Que na cintura mantém.

 Bem pesado é o fado
 De quem quer algo inovar
 Logo está ameaçado
 De não poder inventar!

 Não há princesa no conto
 Assim quero, pois então!
 Por isso aqui aponto
 0 que tenho na razão.

 Bem podeis vociferar
 0 cavaleiro vai sozinho
 Não tem quem acompanhar
 Indo só pelo caminho.

 "Sete anos serviu Labão ..."
 Assim Camões escreveu
 Mas não tem dona João
 Por nenhuma ensandeceu.

 Esta vida é um novelo
 Numa roca a girar
 Sem forma nem modelo
 Nunca para de rodar.

 Aqui nesta lazeira
 Em remanso vai surgindo
 Uma grande cantareira
 Verso a verso subindo.

 Deixemos o cavaleiro
 Seguindo a sua jornada,
 A caneta no tinteiro:
 Até 'manhã, camarada!



1991.06.20
SETUBAL



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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)