* Victor Nogueira
Também havia e alguns foram meus professores, docentes arrogantes, para quem os estudantes não contavam, meros degraus para ascender à cátedra, ou exibicionistas, apesar de competentes, ou duma incapacidade pedagógica atroz, Também os havia e alguns foram meus professores no então denominado Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, na Universidade Técnica de Lisboa.
Para salvaguarda e para sossego de antigos colegas meus, então estudantes, arvorados sem mandato outorgado em defensores do Templo, detentores inquestionáveis da Verdade, a Única, a Deles, esclareço que a maioria dos professores do ISESE (Instituto Superior Económico e Social de Évora) eram pessoas minimamente competentes, muitos excelentes docentes, sem juízo de valor sobre o conteúdo e programas das matérias que leccionavam. Reconhecidamente incompetentes eram o professor de Direito Natural e de Psicologia Social, bem como dois dos três ligados ao regime - um, deputado à Assembleia Nacional, outro delegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência Social, apesar de pessoalmente considerar este último uma boa pessoa. E havia outro que não o considerando incompetente, dava as aulas de Doutrinas Sociais duma forma completamente aberrante e contraproducente do ponto de vista que eu supunha e continuo a supor fosse a que pretendia a Direcção do ISESE. Porque em todas as aulas lecionadas pelos sacerdotes da Companhia de Jesus e pela maioria dos professores leigos, incluindo o delegado do INTP, havia abertura, tolerância e apresentavam-se e/ou permitiam-se outras perspectivas ou formas distintas de interpretar a realidade, sem que alguma vez me tivesse sentido prejudicado por questionar ou discordar mais ou menos abertamente a linha "oficial", nas aulas, nos exames e nos trabalhos escolares.
Também havia um cuja sebenta de Estatística era uma cópia mal plagiada e incompreensível da que eu tivera no ISCEF, para azar dele e sorte minha, e que eu levava para as aulas de Estatística e nelas a consultava em vez da dele.
Percebo porque eram admitidos e tolerados professores incompetentes abertamente ligados ao regime, uma minoria minoritária, mas sobre os quais a contestação estudantil não assumiu a radicalidade e conflito das do professor de Direito Natural , sobre cujas aulas a Direcção da Associação dos Estudantes presidida pelo João Lucas, em 1968/69, havia lançado um inquérito anónimo aos estudantes cujos resultados foram francamente desfavoráveis ao personagem e comunicados por escrito à Direcção do ISESE sem que esta retirasse do seu quadro de docentes quem manifestamente não prestigiava o Instituto.
Quanto ao professor de Doutrinas Socias, pessoa que não considero fosse intolerante ou soberbo, admito que a forma que as suas aulas assumiam seria uma atitude errada ou inábil de auto-defesa para esconder a insegurança quanto ao papel que lhe fora atribuído.
As aulas de Direito Natural [e as de Psicologia Social]
1968/1969
Daqui irei até ao correio e depois para o "colégio" da Sé, ler mais umas coisas de Direito Natural, esse Direito cuja razão de ser ainda não encontrei; razão de ser como disciplina autónoma da Moral e oposta à Filosofia do Direito, dos tão negregados (pelo prof.) civilistas.
Este é o protótipo do professor cheio da sua sabedoria, vendendo banha da cobra que só é comprada por quem come tudo o que lhe ponhem à frente ou é obrigado a fazê-lo! Que pensar dum professor de Direito Natural, sacerdote católico [não membro da Companhia de Jesus] , que usa expressões como "a estúpida moral protestante", "esses malditos ingleses", "os generalecos comunistóides", que aproveita as aulas para fazer a sua propagandazinha facciosa e proclamar as suas ideias e convicções ultrapassadas, convicto da sua superioridade e da inferioridade dos alunos, que achincalha se ousam fazer-lhe frente?! (1)
Que me diz em plena aula que a missão dos alunos é comer e calar (para mais não têm capacidade) e riposta que as dúvidas proponhem-se e tiram-se no exame? Parece-me que em cinco anos do Instituto fui o único aluno a fazer-lhe frente abertamente nas aulas e (facto inédito) a abandonar uma aula depois do professor se recusar a responder directamente à questão proposta, não encontrando melhor argumento que mandar-me calar.
Esta é a história das pegas entre mim e o Rola. Vamos ver quem será colhido dentro de dias! (2) (NSM - 1969 ?)
1 - Este professor era um poço de pedantismo e soberba. Leccionava também Psicologia Social com absoluta incompetência. O que nos valia eram os livros base, do Stoetzel e do Klineberg.
Dava por exemplo e por vezes as aulas em alemão, indiferente ao facto da totalidade ou da maioria dos alunos não perceber aquele idioma. Em muitas das aulas abordava reacionariamente múltiplas questões [que nada tinham a ver com a matéria do curso]. (...) Uma vez insurgia-se numa aula contra o facto de correr que tinha uma amante. Que não, como podia ele ter uma amante com o ordenado que auferia!?
Numa das aulas de Direito Natural assentava este em Deus. Intervindo, disse que tudo aquilo era muito bonito, mas em que se baseariam as suas normas se Deus não existisse ou se nele não acreditássemos? Cala te, cala-te, Victor! e não valeu a pena insistir. Terminada a aula, chamou-me ao estrado, para me aconselhar: Quando quiseres pôr questões dessas, fá-lo em particular, porque doutro modo estás a desvirtuar os espíritos jovens que estão a ouvir-te! Eu, com 22 anos e que era apenas 2 ou 3 mais velho que a maioria dos meus colegas !
2 - Passei nos exames de Direito Natural e de Psicololgia Social com ... dez valores em cada uma das cadeiras.!
1970 / 1971
Évora e o Poeta
(...) Falei te dum poeta açoriano, admirador do Antero de Quental. É um jovem entusiasta, extremamente emotivo, com os nervos à flor da pele; é um catavento agitado por emoções e sentimentos, para quem Évora é contra indicada. Para ele tudo é extremamente belo e maravilhoso.
Falei também da sua intervenção na ASSEMBLEIA de Dezembro, que sabe, mas não diz, que isto é uma "pileca velha, sarnenta e cheia de moscas." Pois o Carlos M.O. que é um temperamental, não suporta o professor de Direito Natural. Perante uma intervenção daquele, o Rola começou a desviar a conversa e a falar na imaturidadeimpreparação dos estudantes para discutirem, pela falta de visão panorâmica da matéria - blá, blá, o que levou o Carlos M.O. a abandonar pura e simplesmente a aula. Mostrou-me o rascunho da carta [que ia enviar à Direcção do ISESE] mas não consegui convencê-lo a suprimir o final do primeiro período do sexto parágrafo [de A CONSCIÊNCIA]! Não sei o que lhe sucederá ! (1) (NSM - 1971.01.14)
1 - Entretanto o Carlos abandonou o ISESE e nunca mais soube dele. Sei que tem livros de poesia publicados porque os tenho visto em livraria. (1998)
1973 / 1974
Por seu turno, no 1º ano, o curso em peso resolveu começar a aplaudir as "bacoradas" do Rola em Direito Natural e outro dos professores tem crises de nervos nas aulas de Doutrinas Sociais. (MCG - 1974.03.08)
Após o 25 de Abril o Rola foi saneado pelos alunos. Na aula em que os representantes da Associação dos Estudantes lhe comunicaram que os alunos não lhe permitiam que continuasse a dar aulas, conforme decidido em plenário, pretendeu expulsá-los, pelo que tive de retorquir-lhe: Até agora o senhor mandou calar toda a gente, agora o tempo é outro e o senhor senta-se, cala-se, ouve e acata a deliberação dos estudantes. E pronto, lá se calou e não voltou a dar aulas. Desta cena já não me lembrava, mas contou-ma o Gavela anos mais tarde, numa reunião em Lisboa: Lembras-te daquela vez ...?
O professor de Doutrinas Sociais
O Manuel Antunes e o Professor (1) discutem direitos naturais e personalismo - estamos numa aula de Doutrinas Sociais. O resto da malta está-se nas tintas. Um zunzun, denunciador do desinteresse da maioria da malta, percorre a sala. Uns passam a limpo os apontamentos de Contabilidade Industrial. O Aristides tomou me como aparelho receptor das suas habituais críticas a todos estes assuntos. Faltam 8 minutos para tocar para a saída. (...) (NID - 1970.11.03)
1 - Este era utópico e um dos jesuítas não completamente auto-controlado, mas as aulas de Doutrinas Socias eram perfeitamente intragáveis ao contrário do que sucedia noutra das cadeiras que leccionava: Direcção de Empresas I, onde não havia prolemas e a "sebenta" completamente diferente.
Na oral desta última tivemos uma "discussão", porque ele sustentava que o director do Pessoal podia nas empresas tomar o partido dos trabalhadores e da melhoria das condições de trabalho, ao que eu lhe retorqui que o director de pessoal era um simples empregado que ou cumpria as orientações da Administração ou então era despedido. Naturalmente nenhum de nós convenceu o outro! (classificação final de 13 valores)
A sebenta de Doutrinas Sociais era intragável e os exames escritos eram extensos e à base de encornanço e pergunta-resposta: não havia tempo para reflexões. A filosofia da cadeira era: o capitalismo tem algumas coisas más, o socialismo algumas coisas boas, mas a verdade está na Doutrina Social da Igreja. A propósito e a despropósito, página sim, página não, desancava no Marx. Tanto sectarismo fez com que para rebatê-lo, bastantes alunos de Sociologia passassem a estudar e ler os livros de Marx e Engels, existentes na Biblioteca do Instituto, e se politizassem.
Numa aula, perante o desinteresse ostensivo da maioria dos alunos, descontrolou-se, foi para o meio das carteiras de braços abertos clamando: Matem-me! Matem-me! Aproveitando a deixa eu, que era subdelegado do curso eleito por Sociologia, [e nesse ano também Vice-Presidente da Direcção da AE] (1) retorqui-lhe: Ninguém quer matá-lo; só não estamos interessados nas suas aulas. Então que querem que eu faça? perguntou. Que não sejamos obrigados a vir às suas aulas, até ao fim do ano. respondi-lhe. Ah! mas isso não pode ser, por causa do regime de faltas. respondeu. Bem, lá se assentou que no início de cada aula assinaríamos o ponto e quem quisesse poderia ausentar-se sem mais consequências.
E na(s) aula(s) seguinte(s) fazia-se uma bicha enorme no corredor central, assinava-se o ponto e ala que se faz tarde, ficando o curso às moscas, salvo duas ou três engraxadoras e um lambe-botas.
Mas aquilo era um escândalo no Instituto, pelo que entretanto o Piricas afixou um aviso dizendo que a partir da terceira parte do curso, em que seria abordada a Doutrina Social da Igreja, voltava a ser obrigatória a assistência às aulas. Fizeram-se reuniões mas, perante a perspectiva de perder o ano por faltas, a maioria resolveu acatar a determinação,pelo que os recalcitrantes foram obrigados a comparecer às aulas.
Na 1ª aula, levantei-me quando o professor entrou na sala e disse-lhe que ele faltara à combinação com os alunos, pelo que estava ali obrigado, para não perder o ano por faltas, mas que continuava a não estar interessado nas aulas pois não havia modificações. Disse e sentei-me. Sucessivamente, levantam-se o Viegas [também membro da Direcção da AE] e o Pingarilho que declaram: Faço minhas as palavras do Victor! E pronto, acabou a contestação.
Incapaz de encornar a sebenta e não querendo nem sequer tentar nem submeter-me a uma prova pergunta-resposta fui desistindo ou adiando a apresentação a exame de Doutrinas Sociais, até que chegou a altura em que se tornava necessário fazê-lo para terminar o curso. Pelo que me dirigi ao Pe. Augusto da Silva, sj, secretário do Instituto, comunicando-lhe uma vez mais que aquele género de exames eram uma violência e não apuravam conhecimentos, antes mediam apenas a capacidade acrítica de memorização, pelo que em alternativa me propunha apresentar e desenvolver um trabalho e defendê-lo perante o júri, e que se o professor não aceitasse a minha proposta eu não faria a cadeira e ficaria com o curso incompleto. Pelo que se chegou a uma solução de compromisso; exame escrito e trabalho escrito [sem oral e portanto sem qualquer discussão perante o júri], escolhendo eu o tema "A Doutrina Social da Igreja e a Paz no Mundo", em que com base nos documentos do concíílio Vaticano II e na encíclica Populorum Progressio, Desenvolvimento dos Povos, de Paulo VI, defendia o fim da Guerra Colonial.
No dia do exame, em 1973/74, tracei a folha da prova escrita e entreguei em branco, apenas assinada, bem como o trabalho que me propuser fazer. E assim terminei Doutrinas Sociais, com a brilhante classificação final de ... 10 valores.
(1) . No ínicio de cada ano lectivo em cada ano e cursos de Economia e de Sociologia eram eleitos os Delegados e Subdelegados de Curso, que constituiam a Junta dos Delegados de Curso.Naturalmente alguns dos membros das Junta dos Delegados de Curso eram dirigentes eleitos da Associação dos Estudantes.Era através dos Delegados de Curso e da Junta e da Direcção da Associação dos Estudantes que se estabeleciam as relações e ligações com a Direcção do Instituto e desta com os cursos.
A principal tarefa da Junta dos Delegados de Curso, de que sempre fiz parte, era acertar com a Direcção do ISESE os calendários dos exames de frequência e finais. A Associação dos Estudantes, cujos órgãos dirigentes eram eleitos por estes, era autónoma e responsável pela Secção de Papelaria e Editorial (vulgo Folhas), pela exploração do Bar e pelas actividades desportivas e culturais, colaborando também com as Comissões de Festas dos Finalistas e na Recepção aos Novos Alunos. A Associação dos Estudantes mantinha contactos mais ou menos regulares com as outras Associações, nomeadamente as da Academia de Lisboa.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)