sexta-feira, 6 de julho de 2012

Textos ao (es)correr da pena e do olhar (1) por Victor Nogueira


 a Quinta-feira, 5 de Julho de 2012 às 2:58 ·
* Victor Nogueira 


A vida flui e cada instante é diferente do anterior; nada  na vida se repete. Ambos somos hoje diferentes, porque noutra situação. Amanhã, mudando-se as circunstâncias, mudaremos, bem como aquilo que cada um de nós espera do outro. (...) Encontrámo-nos a uma esquina da vida, por acaso e com naturalidade, porque somos pessoas que se reconheceram nalguma coisa e que, por isso, se tornaram amigas. Mas não nos conhecemos o suficiente para que possamos hoje dizer se seremos algo mais que isso.

(..) É quase uma da manhã e o silêncio invade a casa, quebrado apenas pelo matraquear da máquina, terminado que foi o disco das marchas militares. (Setúbal, 1986.02.06)

O sol já desapareceu e dele há apenas no horizonte, debruando as colinas, uma faixa vermelho-alaranjado. Ali á direita, a estrada para Porto Salvo, polvilhada de casario que vai substituindo os campos onde ainda se pratica a agricultura, agora secos. Ao longe um cão ladra e lá do fundo da casa vem o barulho da televisão. O mundo parece de brinquedo, assim, visto dum nono andar. 

(...) Levantei-me para acender a luz, já necessária neste fim de dia,  neste crepúsculo que o meu ânimo "melancoliza". Porque estou triste - porque não dizê-lo? - e não só, como quem  está na ressaca duma grande sova e calca os sentimentos e os rios de lágrimas muito bem calcados, para que só apareça uma face impassível e serena.

Tenho esperado pela Maria do Mar muitas vezes - talvez demasiado, talvez equivocado. Tenho esperado as suas notícias, a sua  voz, o seu sorriso, a sua companhia, a sua presença e, porque não dizê-lo, a sua ternura. E rio-me (...) de mim. Porque, ao contrário dela, não faço grandes discursos sobre a amizade e a franqueza pessoal, porque são apenas palavras e poeira aqueles que não têm correspondência nos actos. (...)

Olho para a bonita caneta que ela me deu e que os meus colegas elogiam e alguns gostariam de ter. (...) A mim o que me interessa são os vivos e a solidariedade ou o gesto que se não recusa, a liberdade que conseguimos fazer nascer nesta teia de constrangimentos e de embaraços.

(...) Olho novamente pela janela e o céu é agora azul escuro,com um leve debrum alaranjado no horizonte. Piscando, um avião passa além, enquanto lá em baixo fieiras de luzes assinalam as estradas, as casas e os automóveis.

Imagino-a lendo esta carta e   dizendo  ou comentando - "que bem escreve o meu amigo! " ou "que coisas bonitas ele diz !"  ou algo semelhante. E dir-me-à  pelo telefone - se eu lhe telefonar - que gostou de receber as minhas cartas, que as guardará  não sei onde para ler  quando for  velhinha.(...)

Não tenho medo do futuro e do passado guardo a experiência, boa ou má, não para fechar-me em casa, paralizado, mas como orientação na estrada da vida breve para a imensidão do que há para viver e fazer. Mas nem todos são assim !

Acreditei na Maria do Mar, mas talvez me tenha enganado. Todos são meus iguais, todos têm virtudes e defeitos, todos nos completamos uns aos outros. Mas não mendigo amizades nem gosto de sentir-me escorraçado. Gosto dela e tenho pena de não estar com ela. (...) (Mas) não vivo de amizades e de amores platónicos, entendendo que a "masturbação" é um muito pobre sucedâneo para a vida e para o amor.(...)

A continuar assim um dia deixarei de escrever-lhe, telefonar-lhe ou procurá-la. Hoje escrevo-lhe isto e digo-lhe que tenho pena que tal venha a suceder. Mas há jogos que não sei ou não quero jogar, como por exemplo o do gato e do rato.

Estou cansado e triste. Pelo nosso desencontro e porque com ele vem o peso de outros que tive.

E hoje deixo-a deste modo, sem nenhum gesto, partindo simplesmente. (Paço de Arcos, 1986.08.15)

Gostei que a Maria do Mar me tivesse  telefonado hoje. Foi bom, depois de um fim de semana algo deprimido - ás vezes também me dá a pancada - fim de semana em que saí apenas no sábado (para almoçar na Baixa, ver as montras e dar uma volta pela feira, ainda fechada), assim como no domingo, para comprar os jornais e o frango assado, que "repousa'' no frigorífico, para as emergências ou ataques extemporâneos de apetite. Fora isso, aproveitei para arrumar a minha livralhada toda  (já não era sem tempo ) desde que a Maria Vai Com as Outras, vai para um ano, os retirou da entrada e os descarregou no que foi o quarto da minha sogra. (Setúbal, 1986.07.28)

Fomos ontem tratar da mudança do meu tio para outro lar, ali no caminho para o Alto do Lagoal, numa vivenda a meia-encosta, escondida no arvoredo. Ao chegar lá por um caminho estreito e vicinal, ao sentir aquela quietude, aquele silêncio onde não chegava o bulício das pessoas e da cidade dos homens, uma enorme serenidade tomou posse de mim. Deliciei-me com a bela vista para o estuário do Tejo e para a margem sul, naquela tarde soalheira com o rio azul refulgindo por entre as clareiras do arvoredo. E pensei em como gostaria de mostrar aquele recanto do "paraíso" á Maria do Mar, a ela que um dia destes me mostrou por aquelas bandas e por entre as casas a beleza do mesmo estuário !

Os ricos donos da vivenda deixaram-na e ela é agora uma casa de "repouso" para pessoas idosas e doentes, muitas das quais já não estão em condições de apreciar aquela beleza e quietude nem o frondoso jardim, agora descuidado, com as piscinas vazias e o campo de ténis abandonado! (...)

 (...) Procuro a Maria do Mar porque gosto dela e aprecio a sua amizade e companhia. Isso basta-me (...)  (Paço de Arcos, 1986.08.31)

(...)Está em Setúbal uma linda tarde, cheia de sol. Vim a casa pôr em água um molho de girassóis colhidos ma berma da auto-estrada. (...)

Tenho de ir até à Câmara marcar o ponto, ver o que se passa e, se tiver tempo, preparar a minha habitual reunião das 3as. feiras, escrevendo os artigos que me couberam para o Boletim A Voz do Trabalhador, que nunca mais saíu desde que por ele deixei de ser responsável. (...)  (Setúbal, 1986.12.09)

Posso pois continuar a minha visita á Maria do Mar, enquanto o Rui e a Susana brincam pegados um com o outro, com a exclamação "pai" nos lábios, até que se magoem e gritem a sério, obrigando-me a intervir com bonomia ou zangado, conforme a minha disposição na altura.

(...)Releio o que escrevi, porque esta conversa não passa de imaginação e a Maria do Mar não está aqui, com o seu  jeito gentil, o seu sorriso afectuoso ou levemente trocista, a sua palavra ou o seu gesto amigos. (...) (Setúbal, 1986.12.14)

Estão novamente bonitos dias de sol, embora frios. Tenho de arrumar aqui o "escritório" mas ainda não é desta, pois tenho de ir ao STAL. Ontem também esteve uma tarde bonita, hesitando entre ir até à beira-mar  para ler um livro de contos do Óscar Wilde, que me encanta, passear pela Baixa, vendo o movimento e as montras enquanto não encontrasse alguém conhecido para amena cavaqueira, ou ir ao cinema. Venceu esta última hipótese, pois ao fim da tarde tinha a minha habitual reunião político-partidária das terças-feiras, que se prolongou até às dez da noite, indo depois jantar com um casal amigo, se é que se pode chamar jantar a duas bifanas e dois copos de leite com chocolate, num café barulhento mas cheio de fumo. De modo que fui até ao cinema, após uma longa ausência, desta feita para ver, sózinho e numa sala quase vazia, "Ana e suas Irmãs", uma comédia do Woody Allen,  um autor e actor que aprecio. (...)  (Setúbal, 1986.12.17)

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Estou aqui no meio dos montes verdejantes do Minho e tudo isto é muito lindo, calmo e sossegado. Ontem estivemos ali sentados no quintal, ouvindo os grilos e conversando à luz da lua em quarto minguante, o relógio da torre sineira cantando o tempo que passava. E hoje, hoje quando me levantei, fiquei simplesmente encantado com esta portentosa paisagem. Pena o dia estar nublado, limitando a linha do horizonte e a cadeia de montanhas.

A TV não fala senão no despiste e no incêndio dum camião cisterna com 27 000 litros de gasolina e gasóleo, por alturas da cidade de Santa Maria da Feira.

Quando não está com a telha a Joana Com Sabor a Cravo e Canela é linda, encantadora, elegante e simpática. É pena por vezes ser tão embirrante e deslizante. (Salvador, na Serra do Soajo, 1989.08.22)

Eu e a Joana Princesa passámos  as férias lá para o Norte, para as bandas do berço da nacionalidade, visitando o castelo de Guimarães; igrejas românicas e citâneas celtibéricas, como Sanfins  e Briteiros.

Uma aventura andar a conduzir naquelas estreitas e  sinuosas veredas, mal sinalizadas, com pessoas simpáticas que se  metem no carro para nos indicarem o caminho, quando não nos dizem que é já ali à direita enquanto apontam a esquerda, já  ali a dois quilómetros, que não pertencem ao sistema métrico do contador do Renault 5, que os multiplica sempre por quatro ou cinco. Mas outro factor de aventura resulta de possuírem outro código de estrada: não abrandam nas cruzamentos, mesmo que se apresentem pela esquerda, o STOP e o vermelho dos semáforos não existem, naõ existe direita ou esquerda nas estradas e ruas, apenas o centro,  os motociclistas não usam capacete e entram nas curvas a cortar a direito, os peões ficam aparvalhados à beira da passadeira quando paramos para lhes dar passagem, pois lá para o Norte o peão não existe, direitos apenas para os automobilistas, enquanto estes não facilitam mesmo nada para entrarmos na "corrente".

Mas aventura também porque assim, deste modo, não há programa que resista, chegando a noite sem o  cumprimento dos objectivos fixados de véspera, na mesa, debruçado sobre o mapa e o guia turístico das preciosidades a visitar ou a vislumbrar. Assim ainda não foi desta que fui ao Gerês, a Trás-os-Montes ou bordejando a margem norte do Rio Douro, para montante.

Mas o Norte está diferente e poucos troços verdejantes se encontram ao longo dos caminhos ou pelos atalhos. Casas, muitas casas,  sejam ou não "maisons" dos "avec" que irrompem agressivamente na  paisagem, numa fúria de "apagar" o passado, sejam ou não melhoradas as  condições de habitabilídade; os campos e as povoações já  não ostentam aquele equilíbrio entre o "natural" e o humanizado.

No Mindelo, onde os meus pais herdaram a casa  de verão do meu avô materno, já pouco resta do antigamente, havendo um contraste nítido entre o coração do povoado inicial e as "cogumélicas"casas de grandes ou menos grandes e cuidados jardins que nascem à beira-mar duma praia rochosa e arenosa que cheira a iodo. Das casas  do Zé Povinho, persistem algumas poucas e arruinadas, de granito, que desta feita a máquina fotográfica registou.

Mas, passado o Verão, o Mindelo e a Póvoa de Varzirn retomam a calma e pasmaceira que os "turistas" quebram com o seu "cosmopolitismo" e juventude. Já em Vila do Conde, onde ainda se mantém o ar antigo e uma ou duas  ruas manuelinas; (com mais janelas e portas do que em Setúbal), o equilíbrio e o sossego mantém-se pelo ano inteiro.

(...) Já o sol e a lua se puseram desde que. as linhas anteriores foram escritas, o que significa que este é um novo dia, oscilando entre o sol quente e o cinzento nublado ameaçador de chuva. (Setubal 1990.09.19)

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Eis-me de novo regressado a Setúbal City, sentado aqui defronte ao computador que vai registando os meus escritos, quando me não auxilia noutras tarefas ou é meu companheiro de jogos, os mais variados. Às vezes, nalguns programas,  fala comigo, em inglês. De qualquer modo não substitui um livro, que nos acompanha para qualquer lado, debaixo do braço, na pasta ou dentro dum bolso que não seja ... bolsinho, nem substitui o prazer de sentir no ar e na pele a presença de outrem.

Eis-me pois regressado de novo a Setúbal, sentado aqui no meu "escritório-biblioteca-armazém", ouvindo o eterno bater da janela nas calhas e os ruídos das obras nos prédios que estão construindo aqui ao lado e que tiraram a vista para o Jardim da Lanchoa ao pessoal que mora até ao 5º andar. O que não é o meu caso, alcandorado que estou neste 9º andar, dos últimos lugares do lugarejo a ser submerso se algum dilúvio acontecesse.

De que falar mais? Em Setúbal é tempo da Feira de Santiago, onde fui duas ou três vezes e onde sempre vou encontrando gente conhecida para dois dedos de conversa. Este ano há apenas uma exposição dedicada a uma das celebridades desta terra, que foi a cantora lírica Luísa Todi. Falta-me ver a parte da cerâmica e olaria, embora este ano já tenha comprado o recuerdo, cerâmica dum país andino ou como tal vendida. Mais uma bonecada ali para uma das estantes, para dificultar a limpeza do malfadado pó que mal acabado de limpar logo renasce dum modo que faria inveja à capacidade reprodutora dos coelhos !

Na 2ª e na 3ª tive reuniões em Lisboa, mas hoje lá estava de novo no meu posto de trabalho, que os meus chefes me têm transformado em posto de ... descanso, contra o meu gosto e vontade. Está quase todo o pessoal de férias, de modo que aquilo é um silêncio temperado pela frescura do ar condicionado, em alternativa ao braseiro da rua! Hoje não pude trabalhar no computador do serviço, com o qual vou preenchendo o tempo, aprendendo ou inventando trabalhos, pois um dos meus colegas precisou dele para cálculos de engenharia. Mais ninguém utiliza computadores no Urbanismo, só ele e  eu. O resto foge deles como o diabo da cruz.

Fiquei muito contente com o postal da Maria do Mar. Depois, ela até tem graça e expressividade nalgumas coisas que me tem escrito e deveria desenvolver essa sua faceta. Quem sabe se  não se tornaria uma escritora de nomeada, mundialmente reconhecida e consagrada. Afinal o José Saramago só começou a escrever aos 60 anos de idade! Para não falar de mim, que mudei a escrita depois dos quarenta, embora nem de perto nem de longe lhe faça sombra !

Enviei-lhe alguns livros, que espero aprecie. Tenho procurado que sejam humoristícos, salvo o da Agatha Cristhie, que ela aprecia, por conter no fim uma relação das suas obras publicadas em português. Dos seus detectives apenas gosto da Miss Marple, embora também tenha apreciado o da série televisiva dedicada ao Poirot, por causa do actor-intérprete, tal como o imagino, embora não aprecie muito os romances escritos em que ele é personagem. O Sherlock Holmes foi outro detective que me pareceu muito conseguido na versão televisiva. Creio que presentemente estão a passar num dos canais outra série baseada em romances da Agatha, uma cuja heroína, se não me engano, é a Tupence.

Quanto ao Rantanplan é um cão muito inteligente, tanto ou mais quanto o mais alto dos irmãos Dalton. No entanto costumo comprar ali na tabacaria uma revista cujo herói é um guerreiro chamado Groo, que a páginas tantas arranjou um cão, o Ruperto, não ficando qualquer deles atrás do Rantanplan em termos de perspicácia. Nada que se compare à Milou, fiel acompanhante do Tintin.

Bem, tenho de interromper esta escribadura, para fazer o jantar que o micro-ondas ainda não trabalha sózinho, para além de hesitar entre ver o programa do Carlos Cruz ou  um filme sobre a Guerra da Independência dos Estados Unidos, com o Al Pacino e a Michele Pfeiffer, dois actores que aprecio. Possívelmente verei o Cruz e gravarei o filme, até ter ocasião de vê-lo se entretanto não gravar outro por cima, o que sucede por vezes. Aprecio o modo como o Carlos Cruz conduz as suas entrevistas. (Setúbal, 1993.08.03)

Está uma bonita tarde de Verão, soalheira e cheia de luminosidade. Ao contrário de anteontem, quando o dia amanheceu frio e nublado, tal como acontece no final de Agosto, lá no Mindelo, perto de Vila do Conde, onde nos últimos anos tenho passado as férias, férias que este ano começarei  na segunda quinzena deste mês, com as minhas criancinhas, embora ainda não tenha decidido se vou para o Norte, como nos anos anteriores, ou se fico por Setúbal.  (Setúbal, 1993.08.07 )

Estive há pouco a regar as plantas e gosto muito do cheiro da terra seca depois de molhada. Olho pela janela e verifico que as vidraças estão precisando duma limpeza. É estranho, pois morando num sítio tão alto, não consigo livrar-me da poeira. Quando estreamos esta casa nas varandas havia montículos de terra, possívelmente trazidos pelas correntes de ar ascendentes.

Olhando pela janela vejo os campos ao longe, lá embaixo, cada vez mais afastados pelas casas que se vão construindo; daqui a uns tempos deixarei de morar no limite oriental da cidade. Mas no Verão o único verde é o dos aglomerados de árvores (sobreiros e azinheiras ?), pois a terra ressequida é simplesmente castanha. E á noite, em qualquer altura, a vista é encantadora, com a claridade da iluminação das ruas, das casas e, quase no horizonte, das fábricas da zona industrial da Mitrena, para além do luzeiro cintilante das luzes das povoações dos arredores.

Como sempre o vento faz vibrar as janelas nas calhas, dum modo monótono, mesmo irritante por vezes. "Música" á qual um dia destes tenho de pôr fim. Para além disso tenho por vezes o acompanhamento da voz esganiçada do cão aqui do vizinho do andar de baixo. Para lá da janela, quando aberta, chega o ruído dos carros que passam  lá em baixo na avenida, conjuntamente com o falar das pessoas ali no Parque da Lanchoa, cavaqueando em noites frescas até altas horas da matina. O cãozinho recomeçou os seus latidos; ao menos, eu  não incomodo a vizinhança quando não estou em casa. Mas o cãozinho, ah! o cãozinho ... esse ladra ... quando os donos estão ausentes. !

Embora  esteja calor,  aqui em casa está um pouco mais fresco do que durante o dia na rua. Últimamente a rua parece um forno, como se estivéssemos no Alentejo, com uma brisa sufocante e uma luminosidade que fere o olhar. De resto não sei se tenho a vista mais sensível, mas a verdade é que há dias em que o brilho do ar é tão intenso que não consigo ler o jornal ao fim de semana além no cimo das escarpas de S.Nicolau., com o estuário do Sado ao fundo e a Serra da Arrábida à direita.  Mas aqui á noite, na varanda da sala, corre uma brisa acariciante, conjuntamente com o cheiro da terra molhada de que falei.

Hoje estou  novamente com este enorme casarão por minha conta. A minha mãe esteve a passar uns dias em Setúbal., mas já regressou a Paço de Arcos. Apesar dos nossos "desentendimentos" a casa ficou vazia, aliás como sucede quando o Rui e a Susana se vão embora, especialmente após estadias mais prolongadas. Quando me dá a "pancada" normalmente vou sair,  andando por aí. Ou telefono ás pessoas conhecidas. Mas hoje nada disso fiz. (Setúbal, 1993.08.10)

Acabei de temperar o frango para o jantar: sal, como não podia deixar de ser, pimentão doce ou colorau (embora também goste de paprika ou de piripiri), molho de soja e aguardente.

 Fora isso continuei a reler os livros do Asterix, que já havia esquecido, e me fazem rir a bandeiras despregadas, sobretudo pela análise de algumas tiras.

Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar comigo e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser cigano, pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.

Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui  e para as quais me vem chamar a atenção com frequência.

Nem parece que houve fim de semana. Estou  muito cansado e dormi à tarde (coisa rara), até ser acordado pelo telefonema da Christine, uma colega e amiga  da Susana. 

Um certo pudor ou receio de expressar os meus sentimentos é que me impede de dizer "Estou triste",  (ou "Estou vazio" o que seria imagem mais apropriada) embora procure que a minha voz e conversa o não demonstrem. 

É meia-noite e o silêncio da madrugada, que apenas começa, só é perturbado pelo suave ruído das ventoinhas do quarto e do ventilador do computador, para além do matraquear das teclas que permitem a fixação deste texto. Quando paro para pensar ou refazer o que escrevo ouço um leve barulho da televisão que o Rui e a Susana vêm, entremeado com a conversa deles, lá ao fundo na sala. (Setúbal 1993.08.15)

Eis-me finalmente em Paço de Arcos, onde cheguei á hora de almoço. Está muito calor e por pouco ao fim da tarde não fiquei molhado pela chuvada estilo tropical que então repentinamente desabou.

De modo que me sentei aqui no quarto do meu tio José João para ocupar o tempo a escrever  enquanto ele assiste a um desafio de futebol transmitido pela TV; a minha tia Maria Luísa lá ao fundo, na sala, assiste a outro programa com a Alexandrina, a viúva do meu avô Zé Luís. Quanto ao Rui e à Susana foram para a cozinha especar-se frente a um terceiro televisor, para ver um filme com o Robert De Niro e o Robert Duvall. Televisores não faltam e é difícil haver guerras por causa dos programas (ainda há um quarto aparelho, que está desligado). A contrapartida é que está cada um silencioso para seu lado, o que tem vantagens ou desvantagens conforme as circunstâncias.

Antigamente as pessoas escreviam muito e as cartas eram meio de transmitir notícias e muitas delas, com maior ou menor valor literário, tornaram-se testemunho dos factos, acontecimentos, ideias e sentimentos. Mas hoje, hoje as pessoas telefonam  ou encontram-se, devido à facilidade e rapidez dos transportes e das comunicações, e o tempo é pouco, paradoxalmente, devido à sobrecarga do que se gasta em transportes, sentado frente à TV ou em tarefas domésticas.

O mesmo sucede com o convívio e a conversação: por vários motivos os cafés e as tertúlias desaparecem, só se conhece o vizinho da frente ou do lado, quando se conhece, e as pessoas metem-se na sua concha, casulo, carapaça ou buraco. Muita gente junta, ao alcance da mão ou da voz , não significa que estejamos mais acompanhados e humanizados.

 Lembro-me das Sexualidades, um programa televisivo do Julio Machado Vaz. Um deles, em determinada altura, girou em torno da expressão Se não podes estar com a pessoa de quem gostas, gosta da pessoa com quem estás.

E sobre o sentido desta expressão foram interrogadas vários indivíduos na rua, havendo múltiplas interpretações, embora me pareça que ninguém lhe tivesse dado a minha, isto é, que devemos procurar na(s) pessoa(s) com quem estamos aquilo que nela(s) nos é comum ou nos atrai e não aquilo que nos afasta ou separa. O que de resto é um princípio que genéricamente procuro aplicar, embora nem sempre com êxito e muito menos com os meus inimigos ou adversários de morte. De qualquer modo a maioria dos entrevistados reduziu o assunto às relações conjugais para a partir daí discordar da referida expressão, concluindo que não devemos gostar ou conviver forçadamente com a pessoa com quem estamos quando a detestamos ou quando com ela nada temos em comum.

Mas, voltando atrás, por vezes é difícil gostarmos da(s) pessoa(s) com quem estamos se não estamos com a(s) pessoa(s) de quem gostamos, incluindo naquele gostar o ser atencioso, compreensivo, tolerante.  [Paço de Arcos, 1993.08.18  (4ª feira)]

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)