Por Victor Nogueira a Terça-feira, 5 de Novembro de 2013 às 14:34
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Num repelão
Num repelão
Gesto teatral inautêntico
disse que não almoçava e saí
esperando que me retivessem!
Assim
encontro-me no vozear barulhento do Arcada
onde a porta gira continuamente
"Adeus oh escriturário!"
As primeiras e únicas palavras que alguém me dirige
Alem do "obrigado" do criado, perdão,
do empregado,
quando lhe paguei o garoto claro
e lhe dei cinco tostões.
Mas as palavras do Morte passaram
como a chuva escorrendo pela minha gabardine branco sujo!
Como o Campos
que diz poesia muito bem
e que esteve em Luanda.
A cadeira defronte a mim continua vazia:
apenas ocupada com o "Chamberlain" e a gabardine
... ... ... ... ... ...
Dizem que estou apaixonado
Mas isso não e verdade.
Ou é !?
Estar apaixonado é isto!?
Esta eterna espera pelo incerto?!
Espero -te !
És a voz quente e cordial da Emília
que de repente arrefece e desaparece.
És a Maureen, borboleta esvoaçante e carinhosa.
És a miudinha sorridente da papelaria do Chiado,
essa mesma, que tinha uma covinha no queixo.
Sois todas vós, oh mãos estendidas,
oh lábios sorridentes, oh verdes olhos pretos
ou pretos olhos verdes!
Todas vós.
Ninguém!
Dizem que os livros são os nossos melhores e maiores amigos.
Mas os livros não se sentam á nossa beira,
nem tem olhos, nem sorriem
nem nos abraçam,
nem connosco passeiam pela rua, pelo campo.
Nada podemos dar aos livros
senão as letras dos nossos pensamentos
ou um pouco de nós
para que chegue aos outros.
Os livros têm os olhos que nós temos.
E os seus lábios são os nossos lábios.
Porque se os livros tivessem olhos
e lábios e mãos e dedos
seriam talvez pessoas
mas nunca livros.
Lembras-te do Cunha?
Em Luanda
era um alfarrabista de corpo dolorido e disforme,
a quem os miúdos roubavam e provocavam.
Cria em mim
esperava ainda ver o meu canudo
de senhor doutor.
Dizia ser eu um jovem diferente dos outros
e nunca o consegui convencer do seu erro:
Falávamos de ópera - e ele trauteava as árias.
Falávamos do Camilo e do Zola
e da enorme fortuna que ele teria se os livros em stock fossem libras.
O homem que não conseguiu ser ele mesmo,
condenado a vender a abominável literatura de cordel.
"Escreva-me. Não se esqueça deste pobre velho!"
"Havemos de ver-nos nas Férias Grandes."
O meu postal ficou sem resposta.
O Cunha morreu.
Só.
Abandonado.
Como um cão!
(Eu, que era seu amigo, nunca o convidara para a minha mesa)
E nas tardes quentes e plúmbeas
Mais uma voz silenciou-se.
Os frigoríficos do Pólo Norte
-Frimatic, o Rei dos Frigoríficos -
substituem os livros que nunca foram libras!
16 Março 1969 Évora
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O Cunha havia falecido em fins de 66, princípios de 67. O "Notícias" de Luanda dedicou-lhe umas linhas, lastimando a sua morte e o egoísmo dos homens. Teriam posto em leilão os livros da livraria e a Casa dos Frigoríficos anexou a lojeca, perto da Sé. Ficou deste modo privado do seu único meio de subsistência. O seu sonho era vender tudo e regressar a Portugal (à Metrópole, como então se dizia). Gostaria de ter vendido bons livros, de ter sido um bom alfarrabista. E dizia-me, quando vim para Lisboa: "Escreva me, meu amigo, não se esqueça deste velhote. O senhor há de ser alguém!" (NSF - 1968.08.20)
O profundo desenraizamento e "solidão" numa évoraburgomedieval castradora, opressiva, sexista, repressiva e fechada aos "estrangeiros" [nunca qualquer alentejano ou eborense durante o meu longo exílio de 6 anos me convidou para sua casa, salvo a Lúcia Carmelo e a Margarida Morgado, não obstante o meu quarto na rua do raimundo, ter sido sempre uma praça aberta - talvez o único quarto de hóspedes em évoraburgomedieval onde a malta entrava livremente, incluindo as raparigas que ousavam afrontar a "censura" das pessoas de públicas virtudes e pivados vícios. Era o quarto dos debates culturais e políticos, onde se estava também para estudar, conversar, ouvir a minha discoteca ou ler os livros da minha biblioteca, apesar das censuras e oposição da minha hospedeira. E no entanto, qd frequentei Económicas de 1966 a 68, dava-me com bastantes colegas alentejanos, simpáticos, afáveis e com uma abertura que não vim a encontrar em Évora e na maioria das suas gentes.
Este meu isolamento minorou com a formação daquilo que eu chamo o "grupo" ou a "malta do Arcada", quase todos não alentejanos - a que eu chamaria o "núcleo duro" que o sustentava - o Camilo (Angola), o Lira Fernandes (Moçambique), o Carlos Nunes da Ponte (Porto), o João Garcia (Santarém), o Rocha (transmontano), o Manuel Antunes (Covilhã), o Carlos Mota de Oliveira (Lisboa), entre outros, para além dos alentejanos, como o Vidigal Pereira, o Humberto Valentim, a Domingas Lobato, a Lúcia Carmelo, a Dídia e o irmão, a Suzete Chaveiro, a Margarida Morgado, o Luís Tobias e a Lídia ou o Ilhéu, para além do António Viegas (Manteigas) ou do Victor Gil (Trancoso) ou a Antónia, Para lá do que chamo "núcleo duro", isto é, permanente, outros membros iam saindo qd terminavam o curso ou iama para a tropa ou entretanto iniciavam o seu percurso no ISESE, como o Jacinto Morte e o António Campos e o João Gonçalves ou a Filomena, o Zé Pinto, o Ribeiro, o "Chinês", como se vê seguidamente:
A malta do Arcada III
No Arcada o João [Garcia], Filomena, o Camilo, o Zé Pinto, o Ribeiro, o "Chinês" e o irmão cantavam em coro desde as cantiguinhas da primária ("Ó Rosa, arredonda a saia", "Tia Anica de Loulé"...) às excursionistas ("Santa Catarina", "Rapsódia Portuguesa" ...) passando por cânticos gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da Beira Baixa. Enfim, uma grande audição, no café cheio e entretido com outros assuntos. (1) (MCG - 1974.02.11)
1 - Bem, por vezes dávamos outros espectáculos no café, quando a noite ia adiantada, cujo programa era imitarmos vozes de animais, ao desafio!
A malta do Arcada IV
Passei pelo café onde encontrei o João Luís, a Filomena, o Marçal. Fiquei contente por vê-los mas já não é como antigamente. É como um fósforo que logo se apaga. (...)
Évora é uma cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6 anos) fazem-me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de imaginação. É um encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se pelas paredes, um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita estagnação. (MCG - 1974.11.27)
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)