12 de Dezembro de 2013 às 21:49
* Victor Nogueira
Nota prévia – Numa feira de velharias descobri um novo maço de cartas dirigidas a um tal Conde Niño. Cartas em papel já fragilizado e amarelecido, a tinta quase desvanecida, nalguns casos mesmo ilegível. Da autoria de Soror Maria Madalena, cuja existência é perpetuada pela correspondência que dirigiu ao tal Conde, personagem de mistério; tal como as anteriores que publicitei, estas epístolas não estão datadas. Contudo parece-me que este maço corresponderia às primeiras que a freira enclausurada enviou ao “senhor de si”, do seu coração e do seu pensamento. Da correspondência do Conde à sua amadora nada se conhece, nada terá ficado para memória futura. A numeração das cartas de Soror Maria Madalena não segue uma ordem cronológica mas de publicação.
~~~~~~~~~~
6,
Senhor do meu coração e do meu olhar
Há um tempo infindo que enclausurada estou neste convento, isolada do mundo, encerrada entre alvos muros brancos de cal, jazendo em frígida cela, percorrendo sombrios corredores, entre rezas no coro alto ou tecendo doçaria ou cultivando a horta. Aos cânticos no coro-alto prefiro o das avezitas que pululam por entre as laranjeiras e limoeiros dos claustros. Parecem livres as aves, leves como a brisa que agita a folhagem, e com os meus olhos sigo o seu esvoaçar. Ah! Que Deus me perdoe. Mas como invejo a sua liberdade, a vossa liberdade, a liberdade que meus pais e irmãos me tiraram ao encerrarem-me em vida neste convento, contra mim, como se apenas os homens pudessem ter voz e vontade, como se toda a vida desde Adão e Eva tivéssemos de expiar a coragem que no Paraíso tivemos, ao procurar sair da cegueira e da morna mansidão em que Jeová queria encerrar a Humanidade, como se toda a vida tivesse a humanidade de ao futuro preferir o passado e as suas cadeias, por mais aconchegantes e aveludadas que estas sejam ou tenham sido.
.
A nós tiraram-nos o livre-arbítrio que como Lucifer procurámos conquistar logo no início do Verbo. Nós, filhas de Eva, condenadas à sujeição ao homem, e Lúcifer transformado em Anjo da Perdição, quando ele e nós apenas pretendíamos a nossa Liberdade e o Futuro, a Liberdade e o Porvir para os nossos descendentes. Onde a bondade deste Deus cujos seguidores crucificaram Cristo, que Deus este que nos dá o gozo e o prazer que de imediato nos querem tirar, sobretudo a nós, filhas e enteadas de Eva? Que Deus este cujo filho não nasceu da união de homem e mulher, antes o carpinteirou sem ais nem suspiros de prazer e lascívia?
.
De seu filho e contra minha vontade meus pais e irmãos me tornaram noiva, noivas dum Cristo polígamo que nos atormenta em sonhos, entre visões hedonísticas antecâmara das labaredas do inferno que em vida nos consomem, um Cristo senhor de tantas odaliscas e haréns como se de Maomé fosse o seguidor. Dizem meus pais e irmãos, dizem-me a minha mãe e filhas que devemos aceitar tais desígnios. Dizem-nos que devemos ser submissas, que devemos matar a Vida que há em nós, que devemos resignar-nos a ser apenas cálice e não espada e com esse punhal nos matam, aniquilam e submetem.
.
Ano após ano tudo é o silêncio nesta clausura, alheadas do mundo por estes altos muros que nos cercam; do mundo apenas vislumbramos o que nos chega ao parlatório, o que entrevemos para lá das grades da torre onde por vezes estamos apanhando coados e pálidos raios de sol que não tisnam a palidez da nossa pele. São tão pequenas as pessoas que cá do alto lá em baixo avistamos, o ruído e as conversas quase inaudíveis. Inventamos histórias sobre o que se passa lá fora, onde vos avistei, alto e desempenado, belo como um arcanjo, melodiosamente sorridente, dirigindo-vos para a portaria, ouvindo depois a vossa voz ao falardes com a madre-abadessa. Ver-vos e ouvir-vos provocou-me uma tão grande comoção, tal como em meus sonhos são as espadas de fogo que me trespassam o coração, deixando-me numa lânguida e dulcíssima prostração. Talvez seja por isso que nos especializamos em doces, com nomes tão suaves como fidalguinhos, barrigas-de-freira, papos de anjo, charutos de ovos, foguetes, suspiros, toucinho-do-céu, lâminas, ais, bom bocado, travesseiros, marmelada branca, orelhas-de-abade, encharcada, mexericos de freiras, bolo do diabo, hóstias de amêndoa, cornucópias e tortas diversas ... São estas doçuras que sem devassidão nos ligam ao profano mundo
Corro grande perigo ao dizer-vos como desde então é a vossa imagem que ouço, no meio das orações ou dos cânticos, ou quando na cozinha vos afago batendo ovos, claras, a massa, encharcadas em açúcar e frutos silvestres. Se me desvendardes ao mundo ou perante a madre abadessa longos e dolorosos cilícios me aguardam, prostrada no frio lajedo, pisada pelas freiras. Ah! Mas apenas depois de vós o lajedo não me cortará o pensamento! Vinde, Senhor, aplacar meus tormentos e angústias minhas. Não tardeis, que por vós e em nós vos espero!
~~~~~~~~~~
7.
Meu Senhor de mim
Com que ânsias esperei que o moço da jardinagem me trouxesse notícias de vós; foram dias e noites infindáveis, tempos em que a minha alma flutuou entre a alegria e a ansiedade, entre o riso e o desespero. Finalmente chegaram as vossas letras, tão parcas, tão breves, tão vazias do vosso sorriso e calor. Ah! pobre de mim, que em vós pus minha esperança, que de vós esperei o sol e a brisa que afagaram outrora a minha infância a minha juventude. Tão breves e tão secas são as vossas letras que me esvaio e em mim morrem as palavras por vós. Ah! Deus meu, como é trista a sina das mulheres, como é triste a nossa submissão, nós que em nós, em nosso seio, trazemos o futuro e no passado o mantemos e estrangulamos, como estrangulado nas vossas mãos estão o meu coração e os meus sentidos. Em vós me perco e em vós ressuscitarei ? Espero por vós, meu Senhor de mim e dos meus sentidos e pensar.
Cartas de Soror Maria Madalena ao Conde Niño
entre eros e afrodite 09 - (novas cartas de soror maria madalena)
~~~~~~~~~~~
vem de entre eros e afrodite 10 - (os cadernos do vendaval)
Sem comentários:
Enviar um comentário
Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)