quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

elegia


26 de Fevereiro de 2014 às 0:39

* Victor Nogueira.


1. - À mana que nunca tive e gostaria de ter tido.

À minha outra mana inventada, de Moçambique e da Casa de Aguiar e Belmonte, sempre ocupada com o trabalho, mas sempre atenciosa e carinhosa e de quem gosto muito, muito, mesmo muito, que me pergunta sempre pelos sobrinhos e que aprecia imenso o meu filho Rui Pedro e cujos filhos me atendem sempre com simpatia ao telefone.

Ao meu único irmão, de verdade, Zé Luís, morto de morte matada por ele próprio e por muitos outros no tempo que para ele terminou
naquela tarde de 26 de Fevereiro de 1987 ............................. ).

2. - Ao meu irmão que adorava o mano, a cunhada e os sobrinhos.

Ao meu irmão, que não morreu na Guerra Colonial, apesar de ter estado em zonas de combate como furriel miliciano enfermeiro, na nossa terra, Angola, incorporado obrigatoriamente e a lutar no Exército Português de ocupação contra os manos dele e meus, do MPLA ou não, e a tentar salvar a vida aos «camaradas» de armas ou vê-los regressar mortos, ensanguentados e desfeitos. Mas morreu depois, 13 anos depois, encerrado em si mesmo, sem concluir o curso de Medicina, por causa da guerra que o marcou para sempre. E que não continuou em Angola, apesar dos convites do MPLA, porque, após a independência do nosso País, de novo incorporado obrigatoriamente como cidadão angolano, veio para um país estrangeiro porque já lhe bastara o horror duma guerra. (1).

(1) - Luanda, 29 de Maio de 1951 - Paço de Arcos, 26 de Fevereiro de 1987 - O nome dele, como o de muitos outros que morreram depois de terminada a guerra mas por causa dela, não figura em nenhum monumento aos mortos em combate ! É um dos soldados desconhecidos, morto em vida, na terra de ninguém ! 

3. - À minha mãe, que ao chegar a casa encontrou o filho morto de morte matada por ele próprio, que resistiu e não enlouqueceu mas entristeceu com uma tristeza funda e sem fim, ficando para sempre marcada.

4. - Não sei se foi após a morte do meu irmão que assumi definitivamente que o nascimento marca o início da caminhada para a morte, que a morte de quem quer que seja, incluindo a minha, é um dado adquirido e inelutável. Embora face à constante preocupação da minha mãe se eu me atrasava lhe dissesse, meio a sério, meio a brincar: "Mãe, eu sou imortal, não te  preocupes quando me atraso !".


ECCE HOMO (1)

Era o dia 26 de Fevereiro
O Pituca morreu!
Encerrado em si
hirto no seu pijama azul
as mãos bonitas e o rosto frio
um vergão em torno do pescoço
o rosto violáceo
o ar sereno.
.
Longe vai o tempo da minha alegria
das nossas brigas
da nossa amizade
.......................silenciosa
.......................tímida
.......................desajeitada.
Fica-me no pensamento
a lembrança de ti
nas coisas que me deste
.......................os livros os posters
.......................os bibelots as estatuetas
.......................africanas as tuas pinturas
.......................a Marilyn e o Pato Donald
.......................os discos e as cassetes.
Memória da infância perdida
nas palavras silenciadas
Meu irmão!
.
.
1987.Dezembro.22 (1989.Março.10) - Setúbal
.
.
É TEMPO DE CHORAR
.
É tempo de chorar
silenciosamente
os nossos mortos
.
irmãos encerrados
encurralados
.
É tempo de chorar
enquanto
para lá desta hora
a vida se renova
por entre
.............os bosques e
.............os regatos
...................................sussurantes
...................................do imaginar o son (h) o estilhaçado
É tempo de chorar o tempo que voa!
.
...................................(IN MEMORIAM do meu irmão Zé Luis, morto de morte matada
...................................por ele próprio e por muitos outros no tempo
...................................que para ele terminou naquela tarde de
......................................................................26 de Fevereiro de 1987 ............................. )
.
.
 1989.Fevereiro.03 - Setúbal



xilogravura da autoria do Zé Luís


 Luanda 1951

 “Lágrima de preta” de António Gedeão

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio..
  


em Luanda - 1951 ~~~~~ Maria Emília - Porto 1920.01.04 Setúbal 2013.04.19 Manuel - Porto 1921.09.04 Setúbal 2013.06.06 Zé Luís - Luanda 1951.05.29 Paço de Arcos 1987.02.26 Victor Manuel - Luanda 1946.01.05 - .

 

Luanda 1952/53

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)