23 de Fevereiro de 2014 às 21:44
José Afonso - Um amigo
* Victor Nogueira.
Para muitos de nós o Zeca foi uma referência e um amigo. Ao vivo, só o vi duas vezes; num dos últimos espectáculos, no Clube Naval Setubalense, quase sempre sentado por causa da doença que o mataria, e outra no meio da multidão num dia normal na Praça do Bocage. O Zeca tinha uma voz rica e era um homem solidário, que os senhores do dinheiro através dos seus tiranetes e marionetas, quiseram calar, maneira eufemística de dizer ASSASSINAR, que é o que decorre da proibição de trabalhar, do activo repúdio do comunismo e doutras formas subversivas que resultam do dia de trabalho à hora, à peça, ou do desemprego, seja ele resultante da informação de bufos e PIDES, seja pela prepotência do patronato, seja este analfabeto ou matarroano ou mal vestido, ou doutorado, bem vestido, bem penteado e escanhoado, para além de perfumado e bem falante.
.Durante o meu «exílio» em Évora, a música foi uma das minhas amizades e companhias. Entre outra, o canto de intervenção, de que destaco três «amigos» - o Zeca, o Adriano e o Joaquin Diaz. Para não falar, noutra onda, no Jacques Brell, no Charles Aznavour, no Gilbert Bécaud e na Edith Piaff.
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Por isso, andando por ali e por aqui, convido-vos a visitar José Afonso. A entrada é aqui -> Maria Faia - José Afonso
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Mas há mais deambulações em Cidade sem muros nem fronteiras e Zeca Afonso: conjugar o verbo ser
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* Victor Nogueira.
Em José Afonso - Um amigo falei das duas únicas vezes em que me lembro de ter visto o Zeca Afonso pessoalmente. Mas já o conhecia de Luanda, duma data, que situa nos anos 60 do milénio passado, quando em casa recebi um telefonema do meu colega do Liceu e amigo Virgílio que me disse um pouco em surdina: «Ouve este disco que acabou de me chegar às mãos». E assim, pelo telefone, ouvi pela 1ª vez o José Afonso, interpretando «Os Vampiros».
Terminado o Liceu, rumei para Economia no Porto, onde apenas estive 15 dias e mudei-me para Económicas em Lisboa e depois para Sociologia em Évora. Esta era uma sociedade muito fechada e nós, os «estrangeiros das colónias», medianamente abonados, formávamos um grupo: o Henrique da Beira, (Moçambique), o Camilo de Benguela e este escriba, de Luanda. Ao nosso grupo reuniram-se os estrangeiros semi-abononados, de fora do Alentejo, o João e a Filomena, de Santarém, o Luís Filipe de Lisboa, o Carlos do Porto, o Valentim, namorado da Domingas, ele de Beja e ela de Évora, a Lúcia de Évora, e um casal de irmãos, salvo erro o Henrique e a Dídia, a Suzete, e dois ou três transmontanos e outros tantos da Beira Interior..Depois havia as aves de arribação de Évora e arredores, que umas vezes se sentavam à nossa mesa, outras no Café Portugal, como o Pingarilho, o Janicas, o Zé Pinto, o Ilhéu, o Custódio, a Lídia, o Tobias e o Carmelo, para além do Cabral que era o único filho de agrário que convivia connosco.
A Lídia e o Tobias, que não estudavam e creio que já trabalhavam, eram os únicos eborenses que conviviam connosco, para além da Lúcia, da Domingas, do Pingarilho e do Custódio. Mais tarde juntou-se-nos a Isabel, de quem já falei noutro post, sobrinha do Conde de Vilalva..Também havia o Aristides, dos Açores, um homem bom, ex-seminarista que tinha já feito a guerra colonial, um «revoltado» que dizia que convivia connosco porque não éramos tão «reaças» como a maior parte dos nossos colegas embora não tão «radicais» como ele, mas enfim, ele tinha de dar-se com alguém, como nos dizia. Os da Beira interior e de Trás os Montes também eram ex-seminaristas que, embora menos abonados, andavam mais ou menos «perdidos» na medievalidade de Évoranoantigamente.
No ISESE as propinas eram baixas e havia uma boa biblioteca, porque o Instituto era subsidiado pela Fundação Eugénio de Almeida, Conde de Vilalva, engenheiro e proprietário de extensas propriedades agrícolas no Alentejo e do Convento da Cartuxa, de que talvez fale noutro post. Havia um outro grupo, que fazia vida à parte, que não nos passavam cartão nem nós a eles: Champalimaud's e similares, meninos ricos e consequentemente com um alto trem de vida. Eles seriam mais tarde os «patrões» e nós, os que entrássemos nas empresas deles, os quadros superiores de confiança..
Os cafés da malta eram dois, O Portugal, que já fechou, ponto de encontro dos eborenses e da malta do reviralho, e o Arcada, mais fino, também «escandalosamente» frequentado pelas esposas dos alemães da fábrica Siemens e pelas nossas colegas, acima referidas. As outras, ou estavam hospedadas em lares religiosos, em casa dos pais ou em quartos alugados, segregadas dos hóspedes masculinos, e com horas de entrada e saída, atentamente vigiadas pelas «hospedeiras», ciosas do bom nome e reputação das suas casas de hóspedes..Era assim como nas aldeias e vilas alentejanas onde existiam quase sempre duas sociedades recreativas: a dos ricos/agrários e a dos pobres/assalariados rurais, completamente estanques.
No café não era bem assim: tanto se estava num como noutro, mas o Arcada, na Praça do Giraldo, ficava mais perto dos nossos quartos alugados, do Cinema e da Livraria Nazareth, defronte da qual a conversa se prolongava pela madrugada fora, mesmo no pino do inverno e nas noites de chuva, nestas abrigados debaixo das arcadas, após o encerramento dos cafés e «corrida» dos clientes mais relapsos, que normalmente éramos nós.
Quem conheça Évora dirá que os cafés estavam separados apenas por uns longos 100 metros! Não desminto, mas naquele tempo era uma distância enorme, que apenas percorríamos às terças feiras, dia de mercado, quando os agrários, para tratarem dos seus negócios, ocupavam e enchiam o Arcada, transbordando para a Praça do Giraldo. Disso falo num poema da altura, denominado «Évora, natureza-morta».
Deste grupo todo só o Henrique (da Beira) o Cabral e o João tinham carro, este um descapotável de dois lugares, de modo que o núcleo duro (Camilo, Carlos e o presente escriba) corriam o Alentejo de camioneta ou à boleia de alguém que tivesse carro e fosse convencido por nós a acompanhar-nos nas nossas visitas «turísticas». Muitas vezes íamos até Beringel, onde viviam os tios do Camilo, ele médico e ela enfermeira, ambos em Beja..Ah! falta falar de dois miúdos pobres (o Jorge, de quem já falei noutro post, e o Carlos), que se sentavam à nossa mesa e eram os nossos «protegidos», que por isso os empregados não se atreviam a correr com eles do Arcada para fora.
Chegados aqui, quem chegou, dirá «o tipo está a gozar connosco, então o Zeca Afonso desapareceu?». Não, está quase a chegar! Daquele grupo todo os únicos que tinham muitos livros e gira-discos éramos a Guida (que também fazia parte do grupo) e este escriba. A Guida tinha uma grande biblioteca de poesia e um piano, e a sala dela era uma tertúlia mais selecta, com declamação de poemas, normalmente pelo Campos, que já morreu, e pela Guida, vasculho de livros de poesia pelo Camilo, audições de piano proporcionadas pelo Carlos, serenatas à viola pelo Aristides, quando o conseguíamos convencer, pois tinha uma voz muito bonita, mas resmungando sempre contra a «burguesia» e a inutilidade da poesia, pois o que era preciso era varrer a burguesia à metralha.
Naquelas tertúlias era proibido falar da política, mas eu às vezes esquecia-me e a Guida, que era amiga de todos nós, uma espécie de pintainhos debaixo da asa dela, ia aos arames, como descrevo num poema «À Guida sem amor hoje». Também pela nossa mesa do café e pela casa da Guida passavam alguns pintores, como o Chico Belizzi, o Palolo ou o Álvaro Lapa.
De modo que aquilo era uma comunidade, onde cada um partilhava com os outros o que estes não tinham. No meu caso, tinha uma biblioteca e uma discoteca razoáveis, um gira-discos e um quarto enorme. De modo que quando me sabiam em casa aquilo era um corropio, para lerem livros ou os jornais, ouvirem música, conversarmos ou estudarmos. Como aquilo era uma casa de hóspedes eu subverti as regras todas da hospedeira, a D. Vitória, que me dizia que me tinha alugado o quarto a mim e não a um bando de cavalgaduras que passavam o dia escada acima escada abaixo. Outra das regras subvertidas era a das raparigas, as que estavam na mesma casa, iam até lá ouvir música, conversar ou pedir-me livros emprestados, tal como algumas colegas do Instituto. Aquilo então exasperava a D. Vitória: uma vergonha, isto é uma casa de respeito, onde é que já se viu meninas enfiadas nos quartos dos senhores?!
Claro que nunca recebi ordem de despejo. De modo que fiz uma concessão à D. Vitória: quando estivessem as meninas ou senhoras no meu quarto eu deixava a porta aberta.
E aqui voltamos ao gira-discos e ao Zeca. Para além de música clássica, havia livros e discos apreendidos pela PIDE e FORA do MERCADO, sendo crime tê-los em casa. E assim o que sobrava da mesada era para livros e discos, estes comprados por baixo do balcão e vendidos apenas a clientes de confiança. Deste modo, para além de pessoas, acompanhavam-me, para além da música clássica e de ópera, o Luís Góis, o Fernando Machado Soares, o Zeca Afonso, o Adriano, o então Pe. Fanhais, Cantos Revolucionários de Le Chant du Monde, Joaquin Diaz, Luís Cila, Jacques Brell, José Mário Branco, o Manuel Freire. Ary dos Santos e o seguimento quase religioso do Zip-Zip e, quanto a mim, d’ As Conversas em Família do Marcelo Caetano, num outro café mais popular, salvo erro o Alentejano, que comentavam em voz alta e entre si as suas discordâncias com a conversa fiada do Marcello..O televisor era um luxo, embora a preto e branco, e eu cedera à D. Vitória o da minha mãe, que entretanto já regressara á Luanda, terminadas as férias. De modo que quando queria ver algo na TV tinha de ir para o Alentejano, pois o único programa que me interessava e às meninas e senhoras da casa era o Zip-Zip.
Claro que nas aldeias só os ricos tinham televisor, e alguns compartilhavam-no com o povo, colocando-a na janela, virada para a rua, onde se aglomeravam os telespectadores. Em Évora, quando havia desafios de futebol, alguns comerciantes deixavam um televisor da montra ligado para o povo poder assistir aos desafios de futebol..
Aqueles cantores atrás referidos e outros eram os nossos amigos e companheiros, a Voz da Resistência e do Combate, e por isso ouvir hoje essas canções comove-me e simultaneamente melancoliza-me, pela não concretização do Sonho que o 25 de Abril criou, afinal breve esperança que não será concretizada na nossa geração..Mas o capitalismo já leva seiscentos anos de existência e só agora conseguiu criar condições para se estender pelo todo o mundo. Mas a Comuna de Paris durou escasso tempo, as Revoluções de 1848 e de 1918 foram esmagadas de forma cruel e sangrenta, a Revolução de Outubro aguentou-se mais tempo. E como dizia Lincoln ( se entretanto não houver um holocausto nuclear), «pode-se enganar todo o Povo durante algum tempo, pode enganar-se uma parte do Povo todo o tempo, mas não se pode enganar todo o Povo todo o tempo».
[em évoraurgomedieval, no exílio] Hoje é domingo, uma vez mais! O tempo conta‑se pelos domingos, especialmente quando são como este, soalheiros, quentes, e que nos fazem sentir o peso dos 25 anos, praticamente solitários, incomunicáveis, cheios de barreiras entre mim e os outros. Que é daquele tempo em que se cria em alguma coisa, em que se colhiam flores para dar aos entes queridos, cabelos esvoaçantes ao vento? Que é do tempo dos sorrisos, das gargalhadas cristalinas? Que é do tempo deslizando suavemente, das mãos esperançosamente estendidas? O tempo é isto, esta desilusão, este vazio, estas malhas que enredam mais e mais e que angustiosamente procuro afastar. Sou um guerreiro cansado por batalhas inúteis, contra o vento! "Grandes são os desertos e tudo é deserto" ([1])
Como única companhia nesta tarde o José Afonso, melhor, a voz do Zeca Afonso, que sai dos alto‑falantes e enche o quarto, mas não a minha alma, demasiado grande para a minha alma tão pequena. (NSF - 1971.02.28)
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)