segunda-feira, 16 de junho de 2014

entre eros e afrodite 17 - cartas a penélope 03




Que destino terão estas cartas não sei, vendidas a peso a um qualquer trapeiro ou desgarradas  numa feira de velharias ou usadas para acender o lume ou a  braseira no inverno. Livres do seu envelope estampilhado que as resguardava, quem por ventura ou azar as ler não saberá se são realidade ou mera efabulação em folhas sem linhas arrancadas a um caderno, a letra corrida no papel em  finos arabescos.

* Victor Nogueira

Esta foi uma noite mal dormida, assombrada. Se dos sonhos ou pesadelos me lembrasse seriam de realismo fantástico os meus escritos. Mas com o despertar é como se a mulher-falcão e o lobo fossem, amaldiçoados e condenados a verem a sua humanidade apenas  no brevíssimo instante do nascer do sol, entre a noite cerrada e o claro dia. Assomando à janela o céu estava acastelado de cinza, o ar carregado de electricidade, até que repentinamente as nuvens verteram caudalosos rios de água, por entre o relampejar da trovoada. Apanhados de surpresa, os raros transeuntes a hora tão matutina corriam em todos os sentidos, encharcados até à medula, inúteis, empapados e em tiras os jornais com que tenteavam substituir os guarda-chuvas, os sapatos atolados nas águas que varriam e lavavam os passeios, as ruas …

O fresco e a leve brisa que se seguiram eram uma carícia, como se fossem um caleidoscópio de sentires;  da voz o veludo, do sorriso  o calor,  do olhar  a fragrância, da alegria o encanto,  libertando  os gestos, o silêncio, o riso, as lágrimas ….

Pior que aquilo que se não tem, que está "arrumado", é aquilo que se deseja mas não se alcança, com inquietação, nestes dias estivais que exacerbam o desejo até à loucura. Esta ânsia, esta necessidade de abrir as portas e  janelas desassombradamente, de ir em busca de nós como rio para o mar, este sentido de fragilidade, que significam?

Em pensamento liberto as palavras e na madrugada dum novo dia murmuro: "amo te", mas os nossos lábios e os nossos dedos encontram apenas um lugar vazio. Olho para a tua fotografia e o teu sorriso dói-me porque é apenas um jogo de cores fixas no papel, que só tem a vida que a minha imaginação lhe der. Como é difícil a felicidade nos tempos que correm, sem entusiasmo, exilado da minha Pátria, no quotidiano que mata, aniquila e destrói as pessoas.

Imagino um outro tempo, esse tempo, como uma certa calma bondosa, repassado embora de um certo cepticismo, como um encolher de ombros ou um leve sorriso com rugas de cansaço nos olhos levemente sorridentes. Esta era a imagem que faltava e não encontrei da última vez em que juntos estivemos, no cimo das ruinas do castelo (grandes conversas temos no cimo das muralhas!). Entretanto o tempo passou e andamos horas fora de nós, umas vezes (poucas) juntos, outras (muitas) separados, pelos lugares, pelas pessoas, pela minha ironia e (aparente) falta de atenção, pela tua reserva!

O sossego desta tarde apenas é quebrado pelos pássaros trinando nas árvores que o vento agita suavemente. Uma tarde estival, quente e luminosa, aqui num banco do jardim Os carros passam velozmente além na marginal, e o rio é azul. As crianças correm e brincam pelas áleas e vêm-se muitos triciclos e bicicletazinhas, uma azáfama em rodopio no parque infantil, o coreto com as cadeiras para a banda que daqui a pouco tocará para os passantes e mirones. A esplanada está cheia de gente que conversa. Além á esquerda vejo o barracão feio do cinema da vilória: apenas 3 sessões semanais no verão: terças, sábados e domingos.

Levanto o olhar e o céu está dum azul claro, esbranquiçado, translúcido. Quando vieres neste fim-de-semana poderíamos ir até á Serra e almoçar na Aldeia do Monte, num dos restaurantes de caramanchão, longe deste bulício; dali do café e da esplanada vem um zum-zum de vozes e de louça e de máquinas e de cadeiras atiradas. Na esplanada um grupo que destoa, de fatiota escura, escarranchados nas cadeiras e à mesa, solidamente instalados, o chapéu na cabeça atirado para trás.

Dobro estas folhas e vou até ao quiosque comprar os jornais,que lerei folheando e ouvindo o rumorejar do virar as páginas.

João Bimbelo

foto Victor Nogueira e gravura de autor não identificado

vem de entre eros e afrodite 16 - cartas a penélope 02
 https://www.facebook.com/notes/victor-nogueira/entre-eros-e-afrodite-16-cartas-a-pen%C3%A9lope-02/10152223584999436

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)