O meu olhar previsional diz-me que estas cartas são um flop, um anti-blockbuster, lidas talvez com olhar contrafeito, com pinças e sem grandes exclamações e andores. Pelo que hoje Penélope é arredada do palco para os camarins, saindo da boca da cena ou proscénio.
* Victor Nogueira
Aproximam-se as festas solsticiais do paganismo cristianizado e daqui até finais de agosto as romarias, as marchas, os mastros engalanados, os bailaricos, as sardinhas assadas ou o pão com chouriço odorificam os ares, alimentando as pituitárias, lubrificadas as goelas com cerveja e vinho verde ou carrascão.
O mesmo sucede aqui no amplo rossio da vilória, onde as ruas estão engalanadas por causa dos festejos e muitas das casas, caiadas de branco, têm barras azuis como as do Alentejo, embora dum tom mais claro. Aliás há muitas moradias assim nos povoados circunvizinhos.
Uma música alegre, ao chegar, faz-me pensar que se trata duma festa religiosa, das muitas que enxameiam o país de Norte a Sul. Num pavilhão municipal está representada uma aldeia em labirinto que pretende preservar a memória da região saloia: o castelo, a capelinha de Santo António e as caixas das esmolas dos Santos Populares, o largo com o seu coreto, a nora e a cegonha para extraírem água do poço, e as casinhas das profissões: à entrada o moleiro, o sapateiro, o alfaiate, o barbeiro‑dentista, cada uma delas com os respectivos instrumentos e objectos de trabalho e adereços. Tal como outras casas, pelas ruas, como as do relojoeiro, da curandeira, do albardeiro, do boticário, do oleiro, entre outras. Uma cozinha, uma adega, onde se pode beber à borla um minúsculo copo de vinho, a escola primária, a casa da Música, um quarto de dormir, o alpendre onde se guardam as carroças de trabalho ou de passeio, a casa do cão, a casa do porco, testemunham tempos passados.
O quarto de dormir é parecido com aquele em que ficava na Amareleja, em casa do Senhor Cachopo, o da mercearia, cama de ferro e manta de papa ou coberta de chita, colchão com folhelo de milho, mais o menos grumoso, enquanto de madrugada, regressado eu do largo do regato e eles da taberna ou da sociedade recreativa dos pobres, os ranchos mais ou menos desafinados atroavam os ares do largo com a majestade do seu cante alentejano e o compasso dos pés na gravilha.
Por toda a "aldeia", uma outra curiosidade: em miniaturas, como as cascatas dos Santos ou Presépios Populares, uma aldeia, a beira-mar, o campo e outros, onde correm águas e existem alguns bonecos animados: os dançarinos, a lavadeira, os lenhadores, o pescador, entre outros.
.Nas muralhas do "castelo" um sino toca mais ou menos continuamente, agitado pela pequenada, para quem também há um pequeno parque infantil junto ao edifício da "escola" primária. A música alegre e saltitante dum bailinho saloio ou minhoto ouve-se continuamente, numa toada em circuito fechado que o correr do tempo torna exasperante.
A noite estava fresca e agradável e muitos os divertimentos e as tentaçõesPassear por aqui é mergulhar num mundo de sons. de vozes, de cheiros, de luminosidades. num festival e numa sinfonia por vezes cacofónicos, dissonantes.
As tendas de pronto-a-vestir, de cassetes e dvd's, com música ou filmes, a maioria de contrafacção, estendem-se pela feira. Sem esquecer o mobiliário, o vestuário e calçado, os objectos de verga, de cerâmica, de louça … Num camião um homem de megafone roufenho encena a sua “perdição” e a sua “generosidade” perante o “desespero” da sua companheira, afirmando não estar ali para enganar quem quer seja, a mercadoria amontoada atrás e os fardos desembrulhados, múltiplas peças vendidas ao preço de uma e expostas aos basbaques, uma toalha e mais um par de lençóis de cama e um edredon e é só hoje … juntando um jogo de toalhas de banho … tudo ao preço da uva mijona, até que na multidão um braço se levanta e outro e mais outro, as notas nas mão erguidas e passadas numa troca rápida, numa aparente jogo de pechinchas. de quem engana quem!
Nas cercanias, algumas tendas ou pelo chão, roupa, mas também fardas, sapatos, capacetes de aço e caixas vazias de munições (relíquias da I Guerra Mundial?), malas, sacos, carteiras, “antiguidades”, móveis, moedas, muito ferro velho: dobradiças, fechaduras, chaves enormes, bicos de fogões a gás...... enfim. De tudo o que vi, no entanto, só me interessava um par de candelabros. Mas não cheguei a perguntar o preço. As ciganas vendiam roupa e tinha a sua piada ver as pessoas experimentarem calças por cima das que traziam vestidas. Havia de ser uma grande experimentação!
Na zona do artesanato comprei dois bonecos de barro, Havia lá umas canecas também de barro, em forma de sorridentes e rechonchudos monges (dispunha bem olhar para eles, tinham um ar simpático). Estou arrependido de não ter comprado um. Ficará para a próxima. Aquilo é uma roubalheira. Um tipo tem mesmo de regatear. Chegam a fazer abatimentos de 50 % sobre o preço inicial. Ah! comprei também como "recuerdo", cerâmica dum país andino ou como tal vendida. Mais uma "bonecada" ali para uma das estantes, para o pequeno museu de artesanato com peças de autor que coabita com o do brinquedo, assim se dificultando a limpeza do malfadado pó que mal acabado de limpar logo renasce dum modo que faria inveja à capacidade reprodutora dos coelhos!
Depois, a feira/mercado dos divertimentos, dos feéricos carrinhos de choques, da roda gigante, do enorme carrossel, do poço da morte, da barraca dos tiros, dos beijos, das rifas … E a montanha russa. Não pude deixar de aventurar-me nela, onde apanhei dois valentes sustos, donde saí gelado mas com uma vontade enorme de repetir a proeza. Aquilo é que é emoção! Ao menos enquanto um tipo não se habitua, Duas descidas bruscas (um tipo até trava com os pés, o coração a saltar-lhe pela boca), uma curva a grande velocidade, toda inclinada (e um tipo, esquecendo-se da física e da força centrípeta, agarra -se desnecessariamente para não ser projectado)... Também viajei no outro "comboio fantasma", que afinal nada tinha de especial, salvo os ruídos (bater as portas e chiadeira ou um boneco desengonçado surgindo a nosso lado) e a escuridão. Não tem qualquer emoção.
O circo era pobrezinho, como o de La Strada, de Fellini, patético, já não maravilha, delícia e alegria sempre renovada da infância. Hoje, do circo, gosto dos palhaços e dos ilusionistas, (embora nem sempre), ao contrário do que sucede nos programas que a TV por vezes transmite.
Na zona dos comes e bebes as ruas estavam atravancadas de mesas com barricas cheias de água nunca mudada e onde mergulhavam a louça talheres e copos dum freguês para o outro, os pratos e copos "lavados" engordurados e os talheres com restos de sardinha agarrados. Era fruta demasiada para o meu estômago e sensibilidade pelo que passei fome enquanto o pessoal se divertia e em vão me queria convencer a saborear os "pitéus”: a sardinha e o chouriço assados entre duas fatias de pão grosseiro.
Espalhados pelo recinto vários palcos, com cadeiras defronte, onde em cada noite tocam grupos musicais tradicionais de cada uma das freguesias ou os artistas pimba e da brejeirice um tanto ou quanto grosseira com batida e sonoridade uniformes.
Amanhã e antes da tua vinda terei uma reunião em Lisboa, após rápida viagem pela auto-estrada. Vamos ver se termina a tempo de permitir-me a ida ao Terreiro do Paço e subir ao cimo do Arco da Rua Augusta.
fotos Victor Nogueira, excepto a do "castelo", que é de JJ Castro Ferreira
Sem comentários:
Enviar um comentário
Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)