19 de Junho de 2014 às 23:50
«Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.» (Bernardim Ribeiro)
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entre o maço de papéis amarelecidos pelo tempo estavam alguns poemas, que se transcrevem a seguir a mais uma carta não datada, o que dificulta o eventual estudo destas resmas, por se desconhecer a sua sequência, assim tornada arbitrária
* Victor Nogueira
Simpático e caloroso foi o acolhimento que me fizeram e a reunião participada e mais longa que o habitual, mas não tão longa que nestes dias de quase verão impedissem a subida ao cimo do arco da rua augusta. Morosa fora a reconstrução do Terreiro do Paço, rebaptizado como Praça do Comércio pelo Marquês de Pombal e Conde de Oeiras, que de Soure teria vindo. Mais demorada, contudo, fora a edificação do arco triunfal como majestoso portal ligando o antigo terreiro ao antigo rossio, cuja história é relatada na sala do relógio. Um elevador leva os visitantes a esta sala com dois varandins. Por uma estreita escadaria helicoidal acede-se ao terraço superior onde, voltadas para o rio, se encontram as gigantescas esculturas de Célestin Anatole Calmels representando a Glória, coroando o Génio e o Valor.
A vista não é fabulosa e há muitos outros miradouros muito mais deslumbrantes em Lisboa, como o do jardim de S. Pedro de Alcântara, o de Santa Luzia junto à Catedral ou Igreja de Santa Maria Maior, o do elevador de Santa Justa ou as vistas a partir do Castelo de S. Jorge, entre muitas outras. Telhados ensombram a Sé, o recticulado da baixa pombalina no seu todo é inacessível e o castelo está demasiado longe. Desafogada apenas a panorâmica da enorme praça daqui miniaturizada com a minúscula estátua equestre e o rio tejo, com a ponte 25 de abril para jusante. Como pequeníssimas parecem as arcadas dos edifícios em cujos corredores larguíssimos, por onde já deambulei noutra era, cabe à vontade uma carruagem do século XVIII, e do exterior não se vêm os claustros. Toda a praça é hoje pedonal, fechada ao trânsito automóvel salvo nos topos norte e sul, já não enorme parque de estacionamento a céu aberto. Nela vi em tempos uma exposição de enormes estátuas de Botero. Nos edifícios da fachada norte do Terreiro se projectam por vezes e à noite deslumbrantes espectáculos animados de luz e cor, de temática vária, como o que abaixo se indica, a um dos quais assistimos, relatando a história de Portugal, incluindo o terramoto de 1755. (1)
Nesta tarde, apesar da claridade, uma breve neblina cobre o horizonte e a minha memória de ti é nítida: os teus cabelos fulvos esvoaçando ao entardecer, em contra-luz e filigrana, o teu sorriso, o encanto da tua voz como se tágide fosses, as finas rugas do teu olhar, o teu ar de menina e moça, o breve beijo quase sempre ridente e luminoso no princípio e no fim de cada encontro, a ternura que em mim despertas, contida em mim pela tua reserva, o teu breve aceno à partida, a separação cada vez mais um aperto no meu coração.
Nestes dias quentes e plúmbeos que abafadamente se repetem, é em vão que venho em busca de ti; pelo menos assim me parece, face ao teu silêncio e à tua reserva, como se estéreis fossem os meus gestos e arenosas as minhas palavras. Sei que não virás no domingo e as gaivotas cegas e loucas esvoaçam como pássaros de asas cortadas num rio que não corre para o mar. “Menino e moço me levei de casa de meus pais para longes terras … “ onde nos encontrámos não sei já bem em que tempos! E cada vez mais separados que estamos, bem longas e areentas são as mil horas sem ti.
João Baptista
01.
está penélope
nos braços de calíope recostada
muda no túrgido seio
e
no passeio jaz
prometeu sem ela
nem palma na arte de talma
no jogo
vulcano sem fogo
02.
Não é de Ulisses
a história dela
mas de João Baptista
escribador sem pão
sem andor
nem ardor
Não era João rei de Ítaca
aquele cujas narrativas eram escritas a golpes de espada,
sem pena nem medo
Era João simples aedo
peregrino
não de Compostela
não da estrada de santiago
mas filho do diabo
baptista sem alpista
como fernão mendes não minto
em suas narrativas
Não estava João liberto
mas sem o canto de Calíope
indiferente
Penélope
no encanto irresistível
de Circe
surda e muda
ao marinheiro
do navio fantasma
aventesma
(1) Espectáculo multimedia de luz e som
vem de entre eros e afrodite 18 - cartas a Penélope 04
continua em entre eros e afrodite 20 - cartas a Penélope 06
mais informação sobre o arco da Rua Augusta ver
Terreiro do Paço - Óleo s/ tela Dirk Stoop, Londres, 1662.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)