27 de Junho de 2014 às 12:43
* Victor Nogueira
Pantanosos, sem história ou grandes emoções, estes dias de verão sucedem-se, com o sol, a lua, as nuvens, as estrelas, límpidos ou sombrios na nebulosa sem cometas no horizonte. Olhando à minha direita, pelo canto do olho e para lá da janela, seja de noite ou de dia, vejo passar o “elefante branco” que é a minúscula carruagem que em cadência regular liga o centro da vila e a estação ferroviária da Linha do Estoril ao Oeiras Parque, um aborto paisagístico que ensombra torres e vivendas. De um andar de cima e desde há dias, de tarde pela noite dentro, chega o som ora grave ora suavemente cristalino mas balbuciante dum piano, teclado por quem parece ser aprendiz de pianista, ainda sem grandes voos e variações, meros exercícios, aprendizando o encadear das notas e tonalidades, para exibições a solo, para a família ou para orquestras de tímbales e trombones.
Prosseguem as grandes manobras e as sagas de entretenimento. Com salerosos e estonteantes passes de coelho por lebre à costa e contra o patinho feio surge na arena (mais) um candidato a salvador da Pátria e sobretudo das ma$$a$, em pífios duelos em que vale tudo, com especial realce para as nuvens de poeira e fumaça, enquanto os banqueiros do Espírito Santo se degladiam e colapsou a marcha triunfal e mundial do pé na bola na Praça da Alegria. O pagode deslumbrado com estas telenovelas de faca e alguidar e de sócretinas narrativas das aventuras e desventuras do príncipe Rolnado Bento de La Coste e da Princesa de Ricciardi Salgad’eau in Securitas y in Vino Veritas, entretido com festas e touradas de arromba, papas e bolos, descuida a bolsa enquanto lhe esvaziam os bolsos e embolsam os suspeitos nos sítios do costume,
Se a Santíssima Trindade protege a Confraria e as Irmandades, para que tudo fique na mesma, algum peixe miúdo fica enleado na rede, em cavacos e com fanicos, com limas rombas no jardim das oliveiras e dos loureiros com flores de laranjeira e licores de amêndoa amarga ou de ginjas com elas e pastéis de nata em Belém. Em liberdade condicional, sem pulseira electrónica e com liberdade de movimentos pelo Continente, seja ou não pelo Oeiras Park, I-Soltinho com murais é de soltura, elegante, bronzeado, ar saudável por todos os poros, com barba branca de neve, bem aparada, arrastando o seu espólio prisional em negro saco daqueles em que se transportam resíduos sólidos a caminho dos ecopontos e da reciclagem.
Hereticamente e lá em baixo na vila comento o porquê daquela encenação, porque não usou ele um saco ou mala, ele um homem que prezava a sua imagem “populista” acenando a meio mundo pelas ruas, cafés, festividades e feiras dos povoados. Como afavelmente me acenava, apesar de nos conhecermos em parte alguma. E logo a senhora idosa dona da pequena loja de comércio me replica que lhe tiraram tudo quando entrou na prisão. Treplico que não entrou com saco preto do lixo ou dos resíduos sólidos, mas com sacos ou mala, que lhe seriam devolvidos à saída. Que não, que tiraram tudo quando entrou na prisão, que não deixavam que nada entrasse, até a comida cortavam aos pedacinhos. Eis pois o “Homem”, mais outro Ecce Homo, mais outro em narrativas de "injustiçados" que deu à costa ribeirinha, que, com ou sem véstias, é benevolentemente elogiado, Pois 'Vox populi, vox Dei", isto é, "a voz do Povo é a voz de Deus", dizem, sobretudo se for em primárias directas, números circenses de farsolas, equilibristas de alto gabarito, e não nas tortuosas veredas da democracia, da res publica. Malandros são os outros, os comunistas, os funcionários públicos, os médicos, os professores, as cabeleireiras, os biscateiros de vão-de-escada,os doentes, os desempregados, os pequenos merceeiros, os juízes, sejam ou não os do Tribunal Constitucional.
Ecce Homo, "eis o Homem", de quem as esclarecidas massas dizem “Roubou mas fez obra”, “deu-me uma casinha”, “deu-me um cartão de idoso/a, com descontos na farmácia”, ”fez o SADU”. “Especulação imobiliária?” Que é isso? perguntar-me-iam se prosseguisse a conversa contra a narrativa dominante: “Roubou, mas fez obra”. Na Tríade do Espírito Santo, Pais & Filhos, há também padrinhos, enteados e ... desvalidos.
Sei que pareço um ladrão...
Mas há muitos que eu conheço
Que não parecendo o que são,
São aquilo que eu pareço. (António Aleixo)
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BREVE CRÓNICA DAS VENTURAS, DESVENTURAS E AVENTURAS QUE ENVOLVEM JOÃO DO MAU TROVEJAR E A SENHORA RAINHA D.URRACA DA PERDIÇÃO OU DE COMO AS APARUDÊNCIAS PODEM (DES)ILUDIR COMO SE VERÁ SE PACIÊNCIA E JEITO HOUVER.
E a primeira aparudência, disse o contador de histórias, é mesmo esta, pois trata-se dum relato que envolve outras personagens que são o João Bimbelo também conhecido por João Baptista Cansado da Guerra e a Sedutoramente Inominável Princesa do Meio Caminho (Des)Andado Com Sabor a Cravo e Canela, da Pele Doce e Mais Repousante Que Mil Calmantes, Mais Bela e Sedutora Que Mil Sóis Para Lá das Luas. E o contador de histórias fez uma vénia ao público que enchia a praça, o barrete varrendo o chão antes de se atirar ao ar para dar cinco rápidas piruetas, até que ficou nova mente em pé prosseguindo sentado no fosso da orquestra:
A peça que hoje ides ver conta-vos sobre dois complicadinhos, que andam por aqui às voltas, às voltas, deixando correr o tempo como a água por uma vasilha furada. E dizendo isto o narrador de histórias sumiu-se, dando lugar a uma cena toda imaginada.
Ao centro, uma mesa com toalha rendada e baixela de prata, iluminada por um candelabro de mil-velas; em surdina uma envolvente e suave música. O ar estava parado, suspenso, e nem uma agulha bulia na quieta melancolia dos pinheiros do caminho, ao longo dos quais (ou do qual?) se avistam dois personagens, um de passada larga e blusão atirado pelosombros, a boca cerrada como lâmina, e outro de passinho lento, com vestes de outro tempo, oscilando entre a seriedade e o riso. De súbito, oh! céus, o ar ficou ainda mais parado quando o olhar de ambos se cruzou, tão parado que ambos levaram a mão ao respectivo pescoço exclamando em uníssono: Oh! minha (oh! meu) que é isto que me trespassa o coração, me cria esta afobação, me provoca esta sufocação, me enche de transpiração, me tira a quietação?!!!
Inquietos e deslumbrados, os nossos personagens entraram numa dança do ora avanço eu, ora recuas tu, ora rio, ora choras, ora apareces tu, ora desapareço eu, enchendo o ar de poeira e levantamento que obscureceram a cena, não obstante a claridade do dia e a beleza da praça.
Vai daí o narrador voltou ao proscénio com um enorme espanejador para pôr tudo nos assentos e os is nas pontas, permitindo o regresso da calmaria, que veio encontrar os nossos personagens sentados no chão, lado a lado ou frente a frente, as pernas cruzadas como os índios quando se sentam em círculo aspirando a fumaça do cachimbo da paz.
Mas não havia paz pois havia demasiada gente à volta, cada um com sua faladura ou com sua ouvidura pelo que os nossos personagens voltaram à cena inicial, em busca da hora bela e serena, à volta da mesa com toalha de linho rendada e baixela de prata. E João Bimbelo acercou-se de Joana Ratinho, inebriado pelo seu perfume. João trazia em suas mãos um alaúde e Joana dedilhava a cítara que havia pertencido a Circe e Vénus, ambos entoando uma cantiga de amigo serena e calma, intitulada PORQUÊ TANTO SILÊNCIO E PALAVRAS?, cujo mote era o seguinte:
Se o ar é tão belo e calmo
E o mar tão verde e sereno
Porquê esconder que te amo
Seduzido girassol moreno?
Era uma canção bela, como belo é o canto da sereia que chama os marinheiros que ousam desbravar os caminhos do mar; era uma canção suave e delicada como delicado é o vento que acaricia o rosto dos viandantes. Era uma canção bela, porque a pergunta, era um casulo, uma crisálida que encerrava em si mil águias como borboletas esvoaçando em torno do arco-íris num campo descoberto. De súbito João e Joana suspenderam o seu canto e fitaram-se como quem descobre a fragilidade do nascer do sol, porque haviam descoberto, nas voltas por vezes ensombrantes, que eram simultaneamente amador e coisa amada.
Deste modo foi desvendado o mistério da princesa, andado que fora o meio caminho que possibilitou que João e Joana saltassem a frágil barreira que os separava na imensidão dos dias, enquanto a música se desenvolvia num crescendo arrebatador que polvilhava o ar de estrelas e o céu de aves onde finalmente a brisa e os regatos corriam livremente.
Para lá do silêncio inominável de Joana, o narrador chegou ao proscénio porque talvez não fosse ainda o tempo dos nossos personagens juntarem sua porta e panela, embora fosse esse o desejo de João. E chegando à boca da cena, narrou João que era chegado o tempo de ambos, ele e ela, se beijarem livremente, porque já era chegado o tempo de juntar a corte de cada um e de, gomo a gomo, desfolharem o cetim aveludado que os envolvia, de procurarem a sombra fulva, ardente e fresca do sol, de buscarem o sabor agridoce e almiscarado da cisterna, de traçarem em seus corpos o mapa do desejo, de encherem o ar com o perfume inebriante do mosto.
E assim modo se apartaram as sombras que ensombravam o caminho e a claridade encheu o mundo na ventura da aventura por eles talhada, porque João e Joana se haviam finalmente encontrado para lá da fragilidade dos seus receios e das suas mágoas, tornando-se cavaleiro e dama um do outro.
Deste modo havia João enviado suas mensagens à Sedutoramente Inominável Princesa e na volta soubera que também ela estava enamorada dele, que era tempo de finalmente descansarem um no outro, pondo termo a uma guerra que durava desde o seu achamento numa curva da estrada, quatro luas atrás.
Por isso o viageiro pegou nas suas histórias e fechou o desencanto porque finalmente João e Joana se haviam encontrado e em si o porto e a maré que cada um deles buscara no outro, enterrando definitivamente o senhorito do Mau Trovagir e a senhora Rainha D. Urraca, personagens embirrantes sem razão de ser.
1989.09.30
SETUBAL
e para animar o baile:
O Senhor Morgado - https://www.youtube.com/watch?v=1bb-g6ns_nI&feature=kp
e Valsa da burguesia - https://www.youtube.com/watch?v=4AcYHxIgNoA&feature=kp
vem de entre eros e afrodite 21 - cartas a Penélope 07
continua em entre eros e afrodite 23 - cartas a Penélope 09
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)