* Victor Nogueira (texto e fotos)
Ninguém to dirá. Por ti terás de saber o caminho para sairés do flutuar amniótico; uma estreita passagem que alargarás e depois duas secas pancadas e o choro. Mas a saída poderá não ser tão linear e muito mais desagradável, talvez o sufoco de maior ou menor brevidade, as sequelas De nada terás consciência ainda, num mundo estranho, agreste e desagradável. Aos poucos desbravarás a semiótica, irás juntando os sons, os ruídos, as palavras, o claro/escuro, as cores, as luminosidades, os clarões relampejantes e cintilantes ou a escuridão, os cheiros, inventando e descobrindo códigos de comunicação e de compreensão, veredas largas ou barreiras.
Perante ti vários caminhos se abrem, uns largos e frondosos, outros pedregosos, sinuosos, de pequenos horizontes, inóspitos, áridos. Á maioria dos viandantes cabem estes, dos quais é difícil transitar para os primeiros, enquanto a permanência nos frondosos é feita à custa de sofrimento dos que não são a escassíssima minoria. Encontrarás na jornada o campo seco ou verdejante, a suave brisa, a tempestade tempestuosa, o mar oceano, os astros.
A sabedoria está na resposta aos enigmas, no saber quando ser forte como um roble ou flexível como o canavial, conforme a força da tempestade e o fragor do vento, na atenção e na clarividência nos jogos simultâneos em vários e díspares tabuleiros ou tablados, distinguindo em cada momento o fugaz, o efémero, a essência para lá das aparências.
No mar alto ou bordejando a costa, verás luzeiros, fogos de santelmo, a estrada de santiago, guaritas, sentinelas, atalaias, muitos homens e mulheres, com áspera voz, temível vozeirão, doce trinado. Uns seguirão pela sombra mas tu tomarás sempre o caminho soalheiro, o do sol em brasa, subirás a pulso a torre de menagem do castelo em ruínas, sentirás o bafo do vento suão, aquele que anda e ciranda, esfarelando os ossos e minguando a alma. Não há escadas, apenas pedras soltas e as raízes das oliveiras milenares, esquálidas, a candeia acesa, os sobreiros como se carvalhos fossem esmagando e poeirando a rocha, como cupim roendo a madeira, invólucro enganador de oco miolo. Passarás por povoados fortemente muralhados e por cidades sem muros nem ameias.
Dir-te-ão que busques a princesa e no reino dos encantos terás de encontrar o norte, tecer a teia, gravar o bronze, cinzelar a pedra, esculpir a tela, compor a sinfonia, entre a maria papoila e a do meio caminho andado, entre a maria dos mil sóis rendilhados e penélope, entre a mana clarisse e a maria do mar ou flor do mar sem guarida, entre a madre abadessa diabinho diabeza em melopeia sem teia que ateie. ..
Por mais atalhos e veredas ou avenidas largas que sigas, o caminho é sempre em frente, qualquer que seja a rosa-dos-ventos, agulha de marear. É ilusão que possas voltar sobre os teus passos, regressar à encruzilhada, seguir outra carreira ou refazer as palavras. Terás de saber a declinação magnética e no deserto evitar andar aos círculos, encadeado pela luminosidade do sol e alquebrado pelo seu calor ou tolhido pela nocturna frialdade. Se a agulha louca ficar terás de saber ler outros sinais, o musgo nas árvores, a sombra do sol, ou buscando a estrela polar ou o cruzeiro do sul. Cada passo que dês será pujante no início e em regra cada vez mais quebradiço na dobadoira dos tempos.
Não te inibas de perguntar, de perscrutar os rostos, de ler nas rugas, de ouvir os sinais. Cuidar-te-ás sobretudo dss comadres na calhandrice, da velhice do restelo, de jovens na estouvanice, homens ou mulheres, moços ou raparigas. Peneira e joeira as respostas e lança as sementes à terra ou num sopro na rampa da palma da mão, os dedos unidos, lança-te ao vento como ave liberta, entre as culminâncias da águia e os saltaricos dos pardais. Encontrarás laranjais com ais, uvas capitosas, maçãs sumarentas, figueiras e amendoeiras, fruta doce, azeda ou amarga. E animais, sejam raposas, sejam gazelas, lobos ou tigres, mais ou menos felinos, araras e tubarões, formiguinhas e abelhas, e maior ou menor arte e manha. Perguntarás e dir-te-ão onde estão o almofariz, o alambique, o arado, o forno, o veio de água, o engenho … Aprenderás a decifrar as sombras, seja na brancura das paredes, seja nas pedras da calçada, seja na areia sob os teus passos.
Dir-te-ão que as caras nem sempre correspondem aos corações, que o brilho do olhar ou a sedução da voz e a doçura do sorriso poderão ser máscaras por detrás das quais se encontram precipícios, lamaçais, viscosidades e que na concha das palavras caberá tudo o que cada um/a lá colocar e tu souberes ler/decifrar. Cuidar-te-ás de quem no peito bata e te diga “eu sou pão-pão, queijo-queijo”, “a extrema sinceridade é o meu lema”, “a resposta é sim-sim, não-não.” Porque muitas vezes não passam de sons sem correspondência na realidade do dia-a-dia, fogos fátuos, remoinhos de areia, foguetes sem cana.
Nos dias de calor infernal ou de gélidos frios, glaciáticos, buscarás a sombra ardente e fulva do olhar, a planície, o moreno vale, o outeiro das oliveiras, o desfiladeiro e cuidarás da bainha. Matarás a sede no refrigério inebriante da cisterna, seara ondulante do trigo em flor.
E acordarás, pois são horas de fazer o jantar, ontem caldeirada com lulas, ovas, choquinhos e camarões, com picante à maneira. Estava saboroso, como o almoço, coelho estufado com o tal arroz que ontem acompanhava o frango, afinal e no dia seguinte apetitoso. Mais vão sendo horas de ir preparar a bruta omelete recheada. Com quê ? perguntar-me-ão. Essa resposta só a terá quem se sentar comigo à mesa para compartilhar a refeição. Porque largos são os apelos, as janelas e portas escancaradas ao sol, ao sopro de Eolo, ao mar ... mas no refluir das ondas avistam-se quase sempre e apenas destroços, meias-águas paradas, ares de calmaria em naufrágio das aves sem o gosto e o sabor d'a-ventura! Passem bem !
Mas, mas, mas … Ah! A Penélope ? Está em banho-maria, enleada sabe Deus porque filigranas, enredada no silêncio e na lonjura. Bye Bye!
quem me quer não quero eu
quem eu quero não me quer
assim no banco, de breu,
fica jogo por fazer
eu sem sumo assumo:
em branco, tu somas, somes,
e eu no mar sem tua rima,
nu cant'o desconto, canto ...
... e o desencanto conto:
a vera fera o ferro ferra
... em fuga seu encanto
de mim, mal conto e erro
muito pouco nada
João Bimbelo
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)