domingo, 30 de novembro de 2014

em évoraburgomedieval - uma sessão cultural no antigamente

* Victor Nogueira

Aqui, espalhados pela mesa, vários recortes de jornais, a maioria deles da Isabel da Nóbrega, que já conheço desde há seis anos pelos artigos que tem publicado no "Diário de Lisboa" e na "Vida Mundial". Actualmente já nem sempre aprecio tanto os seus artigos como outrora: porque ela teria mudado a sua maneira de escrever? Ou eu a minha maneira de ser? Vi-a apenas uma vez (em Évora) há dois anos, num colóquio sobre poesia - o Ary dos Santos - conhecido pelas letras da "Desfolhada" e de "Menina" - declamou - e bem - poemas seus ).
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 A esse colóquio o Ary chegou muito atrasado e já "entornado"  [e pelo desrespeitoso atraso vaiado por parte da assistência] e com uma garrafa de brandy com que ia molhando as goelas ao longo da sessão. Quem costuma andar lá pelas reuniões em Évora, como eu, conhece um certo número de autodidactas, o mais enfadonho dos quais é um tipo de bigode e óculos. Pois esses autodidactas - numa atitude compreensível mas inaceitável - aproveitam estas "manifestações " culturais para botar faladura a propósito e - sobretudo - a despropósito. De modo que para o fim aquilo começou a aquecer - o Ary dos Santos, bêbado, a falar contra a situação, em português vernáculo (e o Presidente da Direcção da Sociedade Operária de Cultura e Recreio Joaquim António de Aguiar  muito aflito, por causa da PIDE e dos castos ouvidos das senhoras presentes) os autodidactas discutindo com a assembleia e a mesa, o Victor Ângelo e outros alimentando a discussão (dessa vez não abri o bico, pois por mim falava o... Ângelo).
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José Saramago e a Isabel da Nóbrega procuravam, em vão, acalmar os ânimos. Apaixonei-me pelo rosto da Isabel. Se a vissem, aqueles olhos grandes, as suas mãos, a atenção e o cuidado para não ferir os autodidactas - vaiados pela assistência! Estou a vê-la sentada, aflita à procura da palavra e do gesto, falando às pessoas, voltada para elas, aflita por não poder falar com os dois campos simultaneamente, um grande respeito pelas pessoas! Entrevi a depois à saída e fiquei algo desiludido: o seu corpo não me pareceu corresponder à nobreza do seu espírito. Pouco sei dela: que tem escrito alguns romances, que terá dois filhos da minha idade.(MCG - 1972.09.02)
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)