Dou três voltas de carro ao lugar e hesito em parar e entrar. A colega de trabalho que já não via há ano e meio morreu. Subitamente. Um dia diz que estava e no outro já não. Não fomos amigas, mas fomos companheiras. Eu desisto de entrar, volto para casa e vou jantar. Pergunto porquê. Quero ficar com a imagem que tenho dela. A imagem de insubmissa nem sempre simpática. Ela é-me importante pelo que representava. Explico mas não sei se o retrato é o dela ou o meu. Talvez das duas. Sobretudo de um tempo. O das professoras de filosofia. Ela foi uma professora de filosofia das do tempo em que as havia de uma certa forma. Cheias de defeitos seguramente e de inúmeras qualidades. Os professores regra geral ficam no anonimato. Eu quero falar dela anónima agora e da imagem que me deu. O que me desarmava nela era uma lógica imbatível. Desenvolvida em abstracto e pouco aplicada talvez. Mas assim, tal e qual. Do tipo que escreve e-mails sobre questões científicas. Onde é que isso já vai. O cogito em David Hume é uma impressão ou uma ideia? Ela discutia calmamente estas coisas e gostava compulsivamente de cinema. Eu falava com ela. Sugeriu-me um filme japonês sobre a pena de morte. Sugeria-me filmes esquecidos e recentes. Adorava como eu policiais. Ela era inteligente e difícil. Ela morreu mas foi uma daquelas professoras de filosofia que eu admirava por serem do tempo em que a filosofia tinha outra dignidade. Para onde vai esse tempo que foge com estas pessoas? O tempo em que se discutiam realmente coisas nos intervalos. Onde é que isso já vai. O mundo mudou, a escola mudou, eu mudei. Acho que ela não. Para mim, ela fica aqui. Assim.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)