* Victor Nogueira
Está pois Penélope sentada defronte de João Batista Cansado da Guerra, os cabelos matizados, lenço azul ao pescoço. por vezes ausente. Estendem-se as palavras entre eles, mas as palavras .. Ah as palavras, são uma rede de dois gumes, com tantos ou múltiplos significados, umas vezes véu ou pesado reposteiro entre ambos, outras fonte de água fresca, suave riacho, outras tumultuoso rio, que tudo arrasta e confunde, derrubando as pontes e erguendo muros, pesadas muralhas que desertificam João Bimbelo e enchem a planura de sinuosidades, de flores desfeitas, como seco e frágil canavial, entre o encontro/encanto e o desencontro.
Tão assertiva é por vezes Penélope, tão directiva, tão impaciente, tão segura das suas interpretações, fazendo João regressar ao passado em vez de se lançar o futuro, as pontes e a fonte límpida e serena que para ele Penélope seria e que ele nela busca e gostaria de encontrar. Mais do que mil por vezes enredadas palavras vale o gesto físico, o toque na face, o afagar dos cabelos, a mão no ombro, o abraço que tudo serenam e apazigua. Não vive João no passado, não está dele prisionero. Do passado conserva o que de bom nele houve, não vive João receoso do futuro, de buscar novos portos e marés, antes procura no presente abrir a estrada e os caminhos para os dias vindouros, caminhos que não sejam sinuosas veredas.
Ciranda pois Penelope, tão sedutora, como Circe enredando Ulisses, na ilha luminosa e bela em que estão, tão plena de tesouros e formosura: os quadros, as miniaturas tão delicadas, o pequeno e saboroso banquete, o bosque que se avista da janela do paço, o humor de Mordillo, o sorriso e a voz cristalina com timbre juvenil, tão doce, atenta e melodiosa, mas nem sempre. Talvez não esteja Penélope zangada, mas parece, talvez o sorriso de João não seja trocista ou irónico que quem não o conhece mal interpreta. Tão mal se conhecem ainda um ao outro !
Mas a ilha fica para trás, bem gostaria João de nela ficar, mas no Fiesta com Penélope no pensamento e no sentir, no banco vazio a seu lado, está João só, timoneiro ao leme conduzindo uma barca mal aparelhada, em mar de calmaria onde a brisa não corre na tarde abafadiça, embora luminosa, soalheira, outonal.
Gravuras - excerto dum poema de Almeida Garret
Cartoon de Modillo
Cartoon de Modillo
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)