sexta-feira, 2 de março de 2018

Marco do Correio - poesia d'outrem 04 08

marco do correio 10 - poesia d'outrem 04

*  Victor Nogueira

Évora 1972

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Sabes quem apareceu por Évora, hoje? O Aristides Vem fazer quatro exames, regressando aos Açores no fim de Outubro. Até lá será hóspede da D.Vitória, a quem pagará ... 50$00 diários. Safa!

Tenho estado a estudar, como quem pratica desporto, sem preocupações pelos resultados. Claro que isto é só fachada, que isto cá por dentro é um vulcão que até me provoca tonturas e vertigens.

Como os demagógicos discursos do sr Marcelo Caetano. Gabo-lhe o estômago por não ter náuseas pela mercadoria que impinge. Mas se ele tivesse um estômago delicado não seria quem é. Os ricos até podem dormir descansados, que até têm uma função social importante, que é dar trabalho a quem precisa, enquanto [há] as ricas dos chás-canastas para os Fernandinhos pobres – que nos dias das visitas lavam as orelhas e limpam o nariz, para não incomodarem as ditas senhoras. Perante tanta água, ingenuidade ou má-fé eu assobio, por enquanto.

(…) Que mais dizer-te amiga, que se contenta com as coisas tal como estão ?! “Para quê mudanças, se nos temos dado bem desta forma ?” Como ela se engana, como ela desconhece ou esquece os momentos em que preciso dela e ela a milhas de distância, ela fazendo planos e imaginando enquanto eu me interrogo sobre a validade dos nossos actos quando ordenados em função de mim e do momento presente. Porque o mesmo coração e a mesma cabeça que me aproximam de ti em determinadas situações e memórias, afastam-me noutras, em porquês que terás o direito de saber mas ainda não passaram a letra de forma. Tudo isto é um peso que às vezes trago em mim, porque me cansam as perguntas sem resposta. Reservo a minha/nossa liberdade, mas não sou livre. Porque cada vez vivo menos de platonismos e me consciencializo agudamente da relatividade de nós. Termino hoje aqui, e deixo-te dois poemas dum poeta que muito aprecio: Manuel Alegre.

Desabafo do Poeta Desarmado

Procuro desesperadamente as armas do meu tempo.
Precisava de uma enxada mais do que da pena
precisava de cavar até ao fundo
até ao fundo do meu tempo
desenterrar as palavras em ruínas
e perguntar-lhes pelas palavras
pelas armas do meu tempo.
Precisava de uma enxada mais do que da pena.
Precisava de uma espada.

Que somos nós

Que somos nós senão o que fazemos?
Que somos nós senão o breve traço
da vida que deixamos passo a passo
e é já sombra de sombra onde morremos?

Que somos nós senão permanecemos
no por nós transformado neste espaço?
Que serei eu senão só o que faço
e é tão pouco no tempo em que não temos

para viver senão o tempo de
transformar neste tempo e neste espaço
a vida em que não somos mais do que

o sol do que fazemos. Porque o mais
é já sombra de sombra e o breve traço
de quem passamos para nunca mais.

Que dizer-te, amiga, senão que estou numa encruzilhada, donde partem a recusa ou a aceitação, um desespero de coerência, de autenticidade. Porque eu preciso dos cânticos, do calor humano, da fé, da serenidade e da alegria que não existem neste mundo em que estou !

A foice e a pena

Com outra que não pena arma trabalhas.
Se é minha a pena é tua a foice. Mas
se acaso são diferentes nossas armas
as penas são as mesmas e as batalhas.

Eu ceifo com a pena ervas daninhas
e a mentira que a todos envenena.
E tu ceifando penas essa pena
que fraterna se junta às penas minhas.

Onde tu ceifas eu ceifeiro sou
da tua dor ceifeira e dessas queixas
que dizes a ceifar e nunca ceifas.

Se já teu canto a foice te ceifou
canta ceifeira canta: a dor destrói-se
juntando a foice à pena e a pena à foice

É preciso um país

Não mais Alcácer Quibir.
É preciso voltar a ter uma raiz
um chão para lavrar
um chão para florir.
É preciso um país.

Não mais navios a partir
para o país da ausência.
É preciso voltar ao ponto de partida
é preciso ficar e descobrir
a pátria onde foi traída
não só a independência
mas a vida.

Salut, camarada

Évora 29 SET 72 (MCG - 1972.09.29)



marco do correio 16 - poesia d'outrem 08

* Victor Nogueira

1973


 A vyda sem ver-uos
he dor e cuidado,
que synto dobrado
querend' esquecer-uos.
Por que, sem querer-uos
já nam poderia
vyver hũ soo dia.

 Já tanta payxam
valer nam podera
se vos nam tivera
em meu coraçam.
Sem tal defensam,
meu bem, hũ soo dya
viuer nam queria.

(Conde de Vimioso)
~~~~~~~~~~
    Sospiros, cuydados,
payxões de querer
se tornam dobrados,
meu bem, sem vos ver.
Nom synto prazer,
sem vos hũ so dya
viuer nam queria.

    Nam quero nem posso
nem posso querer
viuer sem ser vosso,
e vosso morrer,
Poys ysto ha-de ser,
por morte aueria
nam vos ver hũ dia.

(Garcia de Resende)
~~~~~~~~~~
TROVAS SUAS A UM VILANCETE ALHEIO
“Abayx’esta sserra / verey minha terra”

Oo montes erguidos,
deyxay-uos cahyr,
deyxay-uos somyr
e ser destroydos.
Poys males sentidos
me dam tanta guerra
por ver minha terra.

Rybeyras do mar,
que tendes mudanças,
as minhas lembranças
deyxay-as passar.
Deyxay-m' as tornar
dar nouas da terra
que daa tanta guerra.

CABO
O ssol escureçe,
a noyte sse vem,
meus olhos, meu bem
ja nam apareçe.
Mays çedo anoytece
aaquem desta serra
que na minha terra.

(Francisco de Sousa)
~~~~~~~~~~
Señora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhũs por ninguém.
Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partyda,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mays desejosos
cem myl vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nũca tam tristes vistes
outros  nenhũs por ninguém.

(João Roiz de Castel-Branco)

Olaa ssalta-pocyñas !

Descobri ontem, numa antologia de literatura medieval, os poemas que acabaste de ler e que muito me agradaram. Por isso tos transcrevi; parece-me que já conheces o último. A propósito: não sei se conheces e aprecias Eça de Queiroz. Se assim for e se os houver, poderás requisitar na biblioteca itinerante da Gulbenkian “Cartas de Inglaterra”, “Ecos de Paris” e/ou “Cartas Familiares e Bilhetes de Paris”. São simplesmente deliciosos os seus escritos e comentários.

O dia hoje esteve maravilhoso. Um pequeno senão: a electricidade trovoadoresca, já minha velha conhecida permanente de Luanda, e que me complica com o sistema nervoso; nem imaginas o sacrifício que é para mim contactar com as pessoas neste estado. Antes o frio e uma boa lareira !

Estivemos no café até meio da tarde. Depois fomos – o João [Garcia], o Carlos [Nunes da Ponte] e a Lurdes – dar uma volta pela cidade, apreciando os prédios e espreitando pelas frinchas. O João anda à procura de casa, pois a senhoria dele resolveu aumentar, dum mês para o outro, em quinhentos escudos a pensão, que passou a ser de dois mil escudos (!). Claro que encontrar casa decente nesta época do ano é um bico-de-obra. Quando vier para cá a Universidade, então é que vai ser o bom e o bonito. Oh! se vai. Então é que elas ficarão com os hóspedes na mão, a seu bel prazer.  Sim, que o Governo faz a “sementeira da educação” (de um discurso do Veiga [Simão])  mas quem colhe os espinhos … tá-se mesmo a ver quem será. Já o [Diário de] “Lisboa” de hoje trazia uma notícia, informando que o Instituto Universitário de Évora começará a funcionar no próximo ano, desdobrando-se o actual ISESE [Instituto Superior Económico e Social de Évora] em duas faculdades e funcionando na Escola Agrícola (entretanto transferida para Beja, Portalegre ?) os cursos de Agricultura, Pecuária e Direcção de Empresa Agrícola. O papel acabou e meus olhos te deyxam, meu bem. Muyto çedo anoyteçe !
~~~~~~~~~~
Querida C.

Escrevo isto:  no entanto nada diz do meu desejo por ti e de toda a ternura que gostaria tivesse livre curso; são sensações e impressões, memórias e desejos vagos; já não sei onde eles terminam e estás tu, a tua pessoa. Gostaria de largar tudo e partir à tua busca, chegar e dizer: aqui estou, na fragilidade e na leveza dos gestos ternos que buscam a forma de expressão não nas palavras mas em si mesmos, no estar ali presente. E o meu entendimento perde-se no inebriamento dos sentidos, por ti, que só os meus olhos e os meus dedos conhecem: sermos apenas um completos em tudo o que nos rodeia. Mas isso, ah! isso é um instante fugaz na constância de eu ser eu, cada outro o outro e o mundo uma realidade distinta de nós. Sei isso. Sei-o até agora. A vida vai passando e nós com ela, em caminhos distintos que ainda não vejo como nem onde se juntarão. De mim sei apenas que vagueio de mãos vazias com tudo o que não floresceu senão incompletamente. Palavras, que algo em mim refreia enquanto Haydn se ouve além [no gira-discos].  Os meus dedos e os meus lábios percorrem o teu rosto e o teu corpo ao de leve, como brisa suave e cariciante; busco-te com ardor e tudo isto é memória ou imaginação, emoção que a nada conduz porque não é senão passado ou futuro, sem realidade no agora. Nada resta senão calá-la no fundo de mim.

Hoje deixo-te apenas isto sem te falar do tempo que escorre pelos meus dedos abertos, como areia onde nada cresce.

Salut, camarada, a quem beijo e abraço com ternura e amizade
Évora, 21 março 73  
VM
 PS – Arrumo a máquina [de escrever]  e vou preparar trabalho para uma das aulas de amanhã, Mais logo irei para o Sabugueiro fazer inquéritos. Lá fora o tempo está encoberto. No início da Primavera, ainda não há as flores e os gorjeios das avezinhas de que falam os livros das criancinhas que vão para a escola aprender o A-E-I-O-U. Não é, sessôra ?!

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9 comentários
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Fatima Mourão Obrigada pela partilha,gostei muito 
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Viriato F. Soares Obrigado pela partilha, gostei Victor.
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Margarida Pino Obrigada Victor.
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Manuela Vieira da Silva A poesia medieval, apesar de difícil leitura, é surpreendente, delicada nas palavras e no bem escrever. Obrigada pela partilha, querido amigo Victor Barroso Nogueira 
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Maria João De Sousa Abraço, Victor Barroso Nogueira! Obrigada por esta partilha!!!
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Maria José Fonseca Que bonito! Gostei muito, Victor. 
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Maria Lisete Almeida Grata Amigo Victor Nogueira. Gostei muito. Agraço.
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Maria Rodrigues Obrigado Victor pela partilha, gostei muito   bjs.da amiga
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Carlos Rodrigues Bela recolha de textos e memórias, como de costume. Obrigado Vitor.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)