sábado, 7 de abril de 2018

No Hospital do Ultramar, in illo tempore

* Victor Nogueira

As obras, novo edifício, desde a antiga entrada principal até ao antigo pavilhão. As filas de espera. As precedências. Da inutilidade de ser dos primeiros, por causa das categorias. As "habilidadezinhas" para sair‑se da bicha. O encontro com a enfermeira de Luanda. A história da outra vez. A história desta vez. O mano do mano (que sou eu) ([1])
O pequeno jardim nas traseiras. A calma e o sossego, sentado num dos bancos, o chilrear dos pássaros e o ruídos dos carros passando lá em baixo. O jardim é quadrangular. Três topos estão ocupados com edifícios térreos, com, inúmeras portas e alguns aparelhos de ar condicionado. No outro topo, para o qual estou voltado, avista‑se, por entre os edifícios da capela e do hospital, por entre as árvores desfolhadas, a Ponte e o Cristo Rei. O jardim tem uma árvore grande, debaixo da qual escrevo, e algumas outras pequenas. Outras pequenas árvores, o relvado, a fonte, flores cor de laranja nas áleas empedradas. Aqui perto de mim um homem de chapéu e cigarro na boca, vai arrancando a erva que cresce por entre o empedrado. Trabalho lento, entremeado de conversa.

           O Nuno, que me cravou desenhos e agora não me larga. Deixou de ir para casa. A conversa da tia ou mãe: "De onde conheces esse senhor para estares a falar com ele?". A miúda com a cara queimada, de ar triste e casaco encarnado, que não fui capaz de acarinhar. Nuno não me deixa escrever, empoleirado em mim, que lhe faça desenhos e faz‑me inúmeras perguntas. O meu nome, porquê? Que faço ? Que são férias ? Se ando no trabalho, onde moro.

Passam pessoas, que vão à junta [médica], que caso a pessoa esteja doente (!) permite o prolongamento da licença graciosa. O sal que deitam para que a erva não cresça, mas cujo efeito dura apenas dois meses. A história de Átila, o flagelo de Deus. O tempo que se espera inutilmente. (NOT - s/ data - 1972/73 ?)




[1] - Após o 25 de Abril de 1974 passou a designar‑se Hospital Egas Moniz, onde os estudantes das colónias tinham assistência médica.


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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)