segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

O Cunha, alfarrabista em Luanda

* Victor Nogueira


No seu texto evocativo da Livraria Lello, em Luanda (1), o meu amigo e conterrâneo Fernando Pereira fala no Cunha, alfarrabista, e só assim fiquei a saber o seu nome completo e o nome da Livraria: «“Livraria Popular” de José Marques da Cunha»

Sobre o Cunha alfarrabista em Luanda tenho duas pequenas memórias escritas naquele tempo, que podem encontrar em "Retratos (2) - O Cunha, alfarrabista em Luanda"

* Victor Nogueira , (...) Lembras-te do Cunha? Em Luanda era um alfarrabista de corpo dolorido e disforme a quem os miúdos roubavam e provocavam. Cria em mim, esperava ainda ver o meu canudo de senhor doutor, dizia ser eu um jovem diferente dos outros e nunca o consegui convencer do seu erro; falávamos de ópera e ele trauteava as árias, falávamos do Camilo e do Zola e da enorme fortuna que ele teria se o os livros em stock fossem libras. O homem que não conseguiu ser ele mesmo, condenado a vender a abominável literatura de cordel. "Escreva-me, não se esqueça deste pobre velho!""Havemos de ver-nos nas Ferias Grandes! " O meu postal ficou sem resposta. O Cunha morreu, só, abandonado, como um cão! (Eu, que era seu amigo, nunca o convidara para a minha mesa). E nas tardes quentes e plúmbeas mais uma voz silenciou-se: os frigoríficos do Pólo Norte -Frimatic, o Rei dos Frigoríficos - substituem os livros que nunca foram libras! (1) ____________ 1 - Escrito em Évora, em 1969.03.16 (Num repelão) O Cunha havia falecido em fins de 66, princípios de 67. O "Notícias" de Luanda dedicou-lhe umas linhas, lastimando a sua morte e o egoísmo dos homens. Teriam posto em leilão os livros da livraria e a Casa dos Frigoríficos anexou a lojeca, perto da Sé. Ficou deste modo privado do seu único meio de subsistência. O seu sonho era vender tudo e regressar a Portugal (à Metrópole, como então se dizia). Gostaria de ter vendido bons livros, de ter sido um bom alfarrabista. E dizia-me, quando vim para Lisboa: "Escreva me, meu amigo, não se esqueça deste velhote. O senhor há de ser alguém!" (NSF - 1968.08.20) .
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Foto do post em memorias3
. Ao fundo à esquerda ficava a Cervejaria Polo Norte, na esquina, e à direita a loja dos Frimatic. No meio, no prédio mais baixo, ficava a loja do Cunha; à direita, a Igreja de N, Sra dos Remédios (Sé de Luanda), onde oficiava o Cónego Manuel das Neves, de que falei noutros posts, preso pela PIDE a seguir aos ataques do MPLA de 4 de fevereiro de 1961. Publicada por Victor Nogueira à(s) sábado, outubro 13, 2007
(1) Fernando Pereira, "FECHOU A LELLO", 

Sobre o Cunha escreve Fernando Pereira: «É da mais elementar justiça falar da “Livraria Popular” de José Marques da Cunha, numa loja pequenina na ex-“Av. dos Restauradores de Angola”, e que foi durante muito tempo o único alfarrabista de Angola. No meio de um amontoado de livros saia sempre qualquer coisa que o Senhor Cunha convencia o meu pai a comprar, por “dez reis de mel coado” , como diria o mestre Aquilino Ribeiro. O Senhor Cunha desapareceu e a sua livraria fechou há muitas décadas, mas cada vez que por ali passo olho para aquele lugar com a saudade de” um homem muito bom, mas que tinha tido pouca sorte na vida”, como ouvia dizer em Luanda nos meus tempos de descuidada meninice.»

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