terça-feira, 31 de março de 2020

segunda-feira, 30 de março de 2020

bem-aventurados os pobres, em mansidão


* Victor Nogueira

bem-aventurados os pobres, em mansidão, porque deles será o reino dos céus, sentados à direita de Deus_Pai Todo Poderoso, depois do Inferno na Terra, que os redime das luxurias dos ricos, os tais que descerão às profundas dos infernos sem passarem pelo buraco da agulha depois de terem gozado com maior ou menor soberba o paraíso na terra.

em tempo - depois de séculos a ameaçarem os pecadores e os ricos (m/f) com o fogo do inferno, João Paulo II afirmou que o inferno não existe. E esta, hein !? Ah! Mas logo o seu sucessor, Bento XVI, afirmou que o inferno é um local físico que existe e não está vazio, ao contrário do que seu antecessor, João Paulo II, dizia. "O inferno, de que se fala pouco neste tempo, existe e é eterno", já havia afirmado o pontíficie.. Sendo assim .. a infalibilidade papal, que é feito dela ?

Páscoa

* Victor Nogueira

A quem me visitar, uma boa Páscoa. Para quem estiver ausente ou silente, também.

segunda-feira, 23 de março de 2020

O ENSAIO DA ORQUESTRA

* Victor Nogueira - Há vários tipos de guerra, com armas "materiais" cada vez mais mortíferas e catastróficas, desde a pedra até à bombas nuclear ou biológicas, guerra que até há pouco era normalmente precedida duma "declaração" formal. Mas há outros tipos de guerras, designadamente psicológicas, quer para "conquistar corações", quer para semear o terror, quer com matérias explosivos, quer por manipulação da consciência dos terráqueos. Os motivos essenciais para o estado de guerra, larvar ou declarado, são económicos: apropriação e controle das fontes de matérias primas ou de circuitos de troca, aquilo que se designa como mercados. Os mercados nas sociedades primitivas ou da Idade Média europeia, p. ex., são diferentes dos mercados capitalistas, cujo objectivo primordial é inventarem necessidades, criando produtos e bens, muitas vezes desnecessários, cada vez mais perecíveis e descartáveis, tudo em busca duma mais-valia que crie lucros incessantemente crescentes. Quando vem o bláblá “guerreiro” de governos e meios de comunicação social que mascaram a cupidez dum sistema socio-económico como o capitalista, predador e destrutivo, é caso para perguntar que guerra é esta em que a maioria é apenas carne para canhão, que aceita passivamente toda a tralha comunicacional nas mãos dos donos disto tudo e seus homens e mulheres de mão. Invocar ou inventar um estado de guerra para destruir países e povos, como sucede no Médio Oriente, ou dominar mercados como aquele que existe entre os países capitalistas, manipulando as consciências através de manchetes, de noticiário "cirurgicamente" formatado e direccionado, numa campanha semeadora e amplificadora de medos e do terror psicológicos, suspender a democracia e as relações inter-pessoais como sucede presentemente com pretexto do covid-19, hoje, de outro amanhã, de um terceiro no ano seguinte, provocar o caos e a paralisação da economia lançando na miséria grupos sociais inteiros, que caminha para o matadouro com a inocência dos cordeiros, é algo tenebroso. De repente dos noticiários desapareceram as alterações climáticas, os refugiados que buscam asilo na Europa, que morrem nas águas do Mediterrâneo, os milhares ou milhões de mortos por outras causas e doenças, pandemias ou epidemias no mundo. Olhando para a paróquia, Tancos, Operação Marquês e processos similares, incêndios de Pedrógão desapareceram da comunicação social dominante. Estamos em guerra, dizem e clamam os governos e amplificam os órgãos de comunicação social, Não há atentados bombistas, não há atiradores furtivos e emboscados, não há aviões ou drones bombardeando, mas de repente a maioria do pessoal aceita o seu aprisionamento e confinamento, assim como restrições aos seus direitos e garantias, incluindo os de resistência, de manifestação e de reunião. Dizem eles que persistem (ainda e por enquanto) os direitos de reunião dos órgãos dirigentes dos partidos políticos e das organizações dos trabalhadores, mas esvaziam os locais de trabalho. atomizam as pessoas, proíbem as manifestações e reuniões, proíbem a resistência, atemorizam com multas e encarceramento quem "resista" à Autoridade e às suas "legítimas" ordens, "prevaricadores" apontados a dedo, ("porrada sobre eles", ouve-se e lê-se), independentemente das razões que possam invocar. Mas se a economia parar, se as pessoas não comprarem, se as empresas falirem, designadamente as uni-pessoais e as de pequena e média dimensão, com o cortejo de despedimentos e da perda de rendimentos, se diminuir a entrega de verbas à Segurança Social e ao Fisco, como poderão manter-se o Direito à Habitação, assim como o chamado "Estado Social", o Serviço Nacional de Saúde, geral e universal, a Escola Pública, os apoios sociais à habitação, na doença, no desemprego, na 3ª idade? Como poderão manter-se se num quadro de desemprego generalizado aumentando o trabalho sem direitos? Para já criou-se um "grupo" social de gente à partida considerada senil, incapaz de auto-discernimento, carente de especial protecção, potenciadora da transmissão do covid-19 e de ocupar as camas e os cuidados de saúde em prejuízo dos que têm mais valia social. Inicialmente seriam os maiores de 65 anos, mas depois o limite passou para os 70 anos. Inicialmente poderiam apenas circular nas duas 1ªs horas do dia, restrição que acabou por ser afastada. Entre a 1ª e a 2ª versões, onde começa e acaba a mão do Presidente da República, inicialmente auto-confinado na sua casa de Cascais e depois trasladando-se para a sua residência oficial, o Palácio de Belém, agora em prudente e recatado silêncio? Presidente da República auto-resguardado, e mandando para a frente o Governo, diz Sua Excelência que é para não tirar protagonismo (e a ribalta) ao Governo?
Isto porque se preocupam com os velhos, a esmagadora maioria, que vivem sozinhos, muitas vezes desamparados, em casa ou "armazenados" ao monte em lares mais ou menos manhosos, à espera da morte? Não, se esta sociedade, os governos e a maioria das pessoas não se preocupam com os velhos, porque carga de água haviam de mudar do dia para a noite? É natural que morram pessoas, morrem todos os dias pelos mais variados motivos, no mundo inteiro, vítimas da fome, de pandemias, de doenças, que não têm meios para evitar ou curar, vítimas da guerra, da falta de água, da falta de cuidados básicos de saúde, sejam recém-nascidos, jovens adultos, velhos, homens, mulheres e crianças, ninguém fica cá para semente, Como se todos os dias não houvesse senão a morte, o terror, o aprisionamento. De repente ocorre-me que por vezes ao chegar ao local de trabalho,encontrava o pessoal administrativo a comentar quem andava com quem, para além das mortes e divórcios da véspera, perguntando-lhes eu de seguida se na véspera não tinha havido festas, nascimentos e casamentos! Deveríamos considerar que tudo isto é um "barro à parede", criando um grupo social de potenciais infecto-contagiosos, irresponsáveis, compulsivamente confinados à solidão ainda maior, à impossibilidade de cavaquearem ou jogarem à bisca ou ao xadrez no banco do jardim ou na taberna, "proibidos" de passearem pelos jardins, pelas ruas mesmo que não ponham em causa a saúde deles ou de outrem, ainda mais impossibilitados de receberem manifestações físicas de carinho e afecto, os poucos que ainda as recebem? Confinadas a "consumirem" o que as redes sociais, a imprensa on-line e as televisões despejam nas casas das pessoas, mergulhadas na alienação das relações meramente virtuais, encasuladas em casa, vítimas crescentes do stress, da depressão, das frustrações, impossibilitadas de espairecerem ou de mudarem de ares para carregar as baterias, sujeitas aos nada inocentes massacres noticiosos, violentadas na sua condição humana, como reagirão as pessoas? Em seguida, com o "triunfo" da barbárie e da desumanidade, logo chegarão outros grupos sujeitos a confinamento e perda de direitos. Tudo isto em nome duma crise que os donos disto tudo e o capitalismo, endemicamente criam e reproduzem, com resultados cada vez mais desastrosos. Que Liberdade tem quem não tem dinheiro, quem não pode viajar ou deslocar-se porque não há meios de transporte acessíveis, quem não pode estar desempregado,com cada vez com menos ou nenhuns direitos, quem não pode comprar os produtos e géneros que abarrotam as prateleiras das lojas e dos supermercados? Quem não tem dinheiro para pagar seguros de saúde, por exemplo? Que sociedade de mercado e de produção e de troca é esta em que se não houver dinheiro são negados e tripudiados os já considerados "subversivos" direitos humanos solenemente proclamados na sequência da derrota do nazi-fascismo?
SOBRE AS 4 GERAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS VER

https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3033/As-geracoes-de-direitos-fundamentais

domingo, 22 de março de 2020

Notícias do Bloqueio II

* Victor Nogueira


 Notícias do Bloqueio II

        Estão suspensas as palavras
        Proibidos os gestos
        ...........de ternura, amizade e amor.
         O silêncio invade as ruas
         ...........entra nas casas
         ...........senta-se á mesa da gente.
         Que sentido tem dizer
       .............amor
       ............amiga
       ............camarada
       ............companheiro?
         Que sentido tem
        ...........abrir as mãos e os olhos
       ............e perguntar qual o significado do
       ............que vemos, ouvimos, entendemos e sentimos?
         Gaivotas loucas, alvoraçadas, enchem os ares
         de movimento e ruído
         enquanto a vida escorre pelos dedos
      .............indiferente
      .............medíocre
      .............submissa.
1985.Outubro.02 - Setúbal

quarta-feira, 18 de março de 2020

évoraburgomedieval no antigamente (4)


por Victor Nogueira a Quarta-feira, 24 de Agosto de 2011 às 1:23
As tuas alterações foram guardadas.
* Victor Nogueira


O sino de Santo Antão bate as 9 horas e a chuva bate nos vidros da janela como areia pisada. Tempo bom para a quentura da braseira ou... Mas espera! Assomo à janela e, bem me parecia. Cai granizo em cataratas! Vou dar uma volta, apanhar ar para refrescar - e daí não sei, o vento é violento – parece-me. (MCG - 1973.02.14)
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Quanto a mim, vou me embora p'rá reunião, com passagem pelo Café Arcada, cheio de fumo e parecendo que nem mar de gente quando estamos no cimo das escadas.. (MCG - 1973.03.14)
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Olho para os meus colegas e reparo que os tipos de Lisboa ainda não estão de regresso. O filho - ou um dos filhos - do António Champalimaud - aluno do 1º ano, era um pratinho às 2.as feiras, atrás do Veladas, alto, gordo, de cabelo alourado encarapinhado, para este lhe tirar a falta. Uma cena perfeitamente risível. (MCG - 1973.04.02)
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O dia hoje está maravilhoso e eu já me"averanei" no trajar. Évora está cheia de miúdas, magotes delas, de, fora, novinhas, que enchem as ruas e o Arcada, onde consomem hectolitros de laranjadas e colas. (MCG - 1973.04.06).
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E eu, que até já estava a habituar-me ao sossego dumas férias em Évora: levantar, uma volta pela cidade com passagem pelo [apartado 65, onde recebia a minha correspondência] 65, umas leituras de estudo, almoço, uma ida até à Nau [cervejaria na parte nova da cidade], mais modernizada que o Arcada e parecendo uma cervejaria em Luanda, pelas casas, pelas ruas desafogadas, pelos rapazes e raparigas menos "cinzentos" que os de cá de cima, mais umas leituras e uns inquéritos - o cinema é que está mau porque não tem corrido nada de jeito. (MCG - (1973.04.12)
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Lá fora a chuva miúdinha cai miúdinha, salvo uma ou outra pinga mais forte desprendendo se do beiral para o pátio. Está uma noite agradável. Algures ouve se talvez um rádio. Ou será das "misses" na TV? A malta do café foi especar-se para ver as meninas desfilarem mostrando as suas plásticas e sorrisos e ademanes mais ou menos (des)elegantes. (MCG - 1973.04.30)
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A Rua do Raimundo  está linda. Da Rua  do Lagar dos Dízimos para baixo arrancaram o calcetamento. Agora é só "covaria" e terra batida. Gosto mais assim. Palavra. Também andam para aí a deitar prédios abaixo que até chateia. Pena não os deitarem todos e plantarem árvores e relvado que não fosse proibido pisar. (MCG - 1973.06.03)
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No Giraldo Square erguem-se bancadas e toldos, que vedavam ao trânsito automóvel a rua da Selaria (ou 5 de Outubro). O Giraldo é uma "bancadaria" para [comemorações d]o 10 de Junho, que este ano deve ser comemorado em grande, para compensar os desastres que se vão averbando na Guiné e no Norte de Moçambique. (...) Domingo próximo, em Portugal de lés a lés, viver se ão jornadas de fervor patriótico! (MCG - 1973.06.07)
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O Arcada é um zum-zum de vozes e louça e máquinas e cadeiras atiradas. Na mesa ao lado o Camilo delicia-se com o "Ricardo III" do Shakespeare. De vez em quando comunica-me um ou outro dos diálogos da peça. Além, debaixo dos arcos, passam pessoas, algumas olhando cá para dentro quando de passagem. (MCG - 1973.06.08)
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(...) Num ápice o Arcada enche-se. Terminaram as condecorações, os toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Aqui à minha direita, muito ternos, uma moça conversa com o namorado e deixa entrever um grande pedaço da pele das costas, entre as calças e a blusa. Questões de posição! À esquerda, um marinheiro com familiares (?) exibe a sua condecoração de fresca data.
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Além o senhor Jaime abre e fecha os braços, como asas, enquanto vai dando lustro aos sapatos de um cliente. Passam empregados com as bandejas cheias de chávenas, copos e comes. O casalinho de namorados bebe chá com torradas. O mesmo que um casal já caminhando para a meia idade aqui à esquerda, na mesa ao lado. Ele já acabou de ler o Diário de Notícias (fraco gosto) e ela dá lhe uma torradinha. (...) O marinheiro levanta se e parte. Afinal a bengala não é dele mas do amigo que o acompanha. O senhor Tenente e o senhor Coronel cumprimentam se, batem a pala e apertam as mãos, enquanto as respectivas esposas se beijam. Na carequinha do senhor Coronel o vinco na pele assinala a presença do boné, agora sobre a cadeira.
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Entram pessoas de luto e há cumprimentos de mesa a mesa. Precisava duma câmara de filmar. Sobre a minha mesa, "O Século" (sabe) que dentro de dias será descerrada em  Luanda uma estátua ao Marcelo [Caetano]. Para além d'O Século a lapiseira, um livro ("A Sociedade de Consumo") e o porta moedas (agora é incómodo trazê lo no bolso). (...) O Jorge apareceu ontem pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as palavras que lho digam. (1) ( MCG - 1973.06.10)
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Évora, à noite, ainda é comestível. Para mim, não é senão um monte de pedras, que anseio ver pelas costas para nunca mais. (MCG - 1973.06.12)
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Isto, nesta terra, é o fim da macacada. Aqui há umas semanas, à hora do almoço, a Domingas foi com o Carlos [Nunes da Ponte] ao restaurante Fialho, onde o dr. Vasco Caetano nos marcara encontro para proceder ao pagamento dos inquéritos [de Arraiolos]. Pois o amigo Valentim foi diligentemente informado, por um tipo que até nem é das relações dele, que a "sua mais que tudo" tinha ido e vindo do Fialho... acompanhada! Deu-se ao trabalho de segui-los, para conveniente informação a quem de direito! Isto é o fim! (MCG - 1973.07.03)
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Este barulho do café cansa me e dispersa me. Estou lhe demasiado sensível. O Portugal já tem esplanada no passeio, mas o Betinho, dono do Arcada, deve andar em compressão de despesas e o mar de gente daqui não se espraia pelo passeio. (...) Entretanto mudei de mesa, estou agora na de tampo azul. O Chico Garcia sentou-.se aqui, tomou uma limonada e agora aprecia o panorama em redor, enquanto assobia. (MCG - 1973.07.08)
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Isto é que hoje foi um DIA!...   Uma trovoada mesmo por cima da cidade: relâmpago, trovão e corte momentâneo e breve da electricidade eram simultâneos, iluminando e escurecendo o "Portugal". Então e os aguaceiros? Vá lá, que o céu está a descobrir. (MCG - 1973.07.10)
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Greve dos Bancários em Évora? Nem cheiro dela! "Amanda se" cada "boca" ali naquelas mesas do café que é impressionante. (MCG - 1973.07.16)
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30 foram as camionetas (fora os automóveis particulares) que de Évora se deslocaram a Lisboa para apoiar o Marcelo [Caetano]. Beja, Santarém, Leiria, Portalegre, enfim, milhares de tipos confluíram para a manifestação do entardecer [em Lisboa]. Pena não autorizarem as contra manifestações. (...) O Diogo diz que da Amareleja não terão ido pessoas à manifestação (salvo talvez os da Casa do Povo). Não porque sejam do reviralho, mas porque não se metem nestas coisas (viver não custa..). (MCG - 1973.07.19)
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Chove. Está cinzento. A chuva faz barulho no pátio.  Amanhã é 3ª feira, o meu dia negro, pois a cidade - e o café - enchem-se de alentejanos corpulentos, solidamente parados no meio do caminho, de chapéu na cabeça e fatos escuros, como se nada mais existisse no mundo senão as suas irritantes pessoas! Embora cheia de gente, a cidade, para mim, está despovoada. Quando não estou na minha torre (o meu quarto, cela, como diz a D. Ilda) ando por aí, pelo café, pelas livrarias, pelo Instituto[ISESE], quase sempre (fingindo-me ) muito atarefado. (NID - 1973 ?)
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Cada dia que passa, deste últimos, aumenta o empestamento dos ares de Évora. É um cheiro que enche a atmosfera, infiltra se pelos interstícios, sobe nos pelas narinas rumo aos pulmões, irritando de passagem as pituitárias. E eu estou constipado mas sinto-lo. Mesmo aqui em casa o "air freshner" não consegue sobrepor se lhe por muito tempo. A Rua do Raimundo... ah! a rua do Raimundo é uma vala enorme a céu aberto, começando aqui junto à do Lagar dos Dízimos e prolongando se lá para baixo, até às Portas do Raimundo.  A rua está esventrada e pontezinhas (ai, que giras!) ligam as portas pares ao outro lado, dos ímpares, por onde circulam já não automóveis mas peões, saltitando às vezes de montículo em montículo de terra. Ao longo da vala trabalham operários, enquanto no fundo daquela, em canos abertos ao vento, corre um líquido escuro, talvez brilhante. É ele o responsável por este cheiro oloroso que me enche a pituitária algo adormecida pela constipação. Finalmente mudam-se os canos de esgoto. Évora está empestada. (MCG - 1973.08.01)
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(...) Na varanda das piscinas, em Évora, às 15:30. Está um dia quentemente abafado; nas ruas muitas saudações dos "amigos" e conhecidos que passam. Na boca um sabor amargo e de náusea. Detesto Évora. Pronto. Já disse. Poderei algum dia apreciar a beleza de Évora ? (MCG - 1973.09.07)
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Fui ontem aquela cidade mumificada (-museu, reza a propaganda turística!). Nem queiras saber como fiquei doente, como estive doente nas horas que estive naquela terra, que me parece um pesadelo, longe que dela estou. (...) Em Évora encontrei montes de malta: eram olás! hellos e bons dias quase pegados. Até encontrei o cobrador da camioneta da Amareleja! (MCG - 1973.09.08)
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Acabei agora de jantar - em casa.[ A D. Vitória deixara de fornecer comida   aos  hóspedes]  Não é muito fácil, pois ao contrário do que sucede nos supermercados Pão de Açúcar, os de Évora apenas têm pastéis, rissóis e filetes. Acompanhamento: só salada russa ou batatas frias de pacote. E viva o velho. (MCG – 1973.10.10)
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Ontem à noite (1973.10.24), no regresso de Arraiolos, muitos Mercedes a caminho de Évora, onde às 21:30 alentejanos cinzentos de ar sisudo aguardavam ordeiramente o início da sessão de propaganda da ANP [Acção Nacional Popular]. Debaixo dos arcos [arcadas], uma fila de homens, com ar humilde e jeito de rebanho descido da camioneta, dirigia se para o cinema onde se realizaria a tal sessão. A Oposição não comparecerá as eleições no domingo. O Marcelo [Caetano] bater-se-à contra nada. (MCG - 1973.10.25).
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É noite. Do pátio chega-me o esfregar da escova no cimento e da água que escorre. Música do século XVIII abafa (quase) o tiquetaque do relógio. São 19 horas em Évora. A cama desfeita, o pijama sobre o corpo, um bocejar enorme. A viagem foi mais fatigante e monótona, cortada por longos silêncios. Cansado - fatiga nervosa - resolvi ir jantar aos "Manuéis", eram 14 horas: vitela em molho de tomate e "mousse" de chocolate (a última!) (...) Em casa deitei-me mas o dormir não veio e li O "Tintim", mais o"Expresso" (e as suas análises embirrantes, "higiénicas"), o "Comércio do Funchal" (e as suas "contradições de classe", agora em guerra com a "República"), o "Diário de Lisboa" e a "República" (cada vez me aborrece mais a "ingenuidade" do senhor Raúl Rego)... Enfim, agora é que são mesmo 19:00 horas e bocejo tremendamente, o que é mau sinal. (MCG - 1973.10.29)
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1 - Em 5 de Abril de 1971 escrevia eu: "Sábado fui com o Jorge ao cinema, ver um filme de desenhos animados com o Asterix. Pois bem, o miúdo pulava e ria se, enfim, era um espectáculo. Gosto dele, só tenho pena ... que não estude. Tem me oferecido rebuçados, uma daquelas bolinhas de plástico que saltam muito e até me chegou a pagar o jornal ! Há dias apareceu nos no café todo eufórico. Tinha ganho algum dinheiro e então comprou um cinto com uma espada de plástico, postais, maçãs e ... um copo. Enquanto não mostrou a espada a toda a malta sua conhecida não descansou. Queria também que aceitássemos as maçãs dele e os postais. Quem não gosta da brincadeira é a D. Vitória [Prates, minha hospedeira na Rua do Raimundo]. (NID - 1971.04.05)


Évora - Rua do Raimundo [à porta da Casa onde residia, nº 44] - Foto MENS

Évora - Rua do Raimundo (ao cimo a Praça do Giraldo. Antes à direita o Café  Alentejano e quase defronte, à esquerda, a  tabacaria donde se faziam os telefonemas - 3 ou 4 cabines públicas.A meio, à direita, a tabaccaria do Zé do Casarão) - Foto Victor Nogueira
Évora - vista aérea - Foto Victor Nogueira
Évora -( Rua 5 de Outubro ou da Selaria, a partir duma das torres da Sé) - Foto Victor Nogueira
Évora - vista aérea - Foto Victor Nogueira
Évora - vista aérea (pormenor da foto anterior - em 1º plano as ruínas do templo romano e a meio a fachada lteral do antigo  Palácio da Inquisição - ISESE)- Foto Victor Nogueira
Évora - vista aérea (em 1º Plano  as muralhas om as Portas de Alconchel, no termo da rua de Serpa Pinto - a meio o Convento de Santa Clara, serpenteando até à Praça do Giraldo, onde desemboca a "tira" da direita, a Rua do Raimundo,  que prossegue pela Rua 5 de Outubro. À esquerda na foto, a meio, o volume dissonante do Teatro Garcia de Resende - Foto Victor Nogueira
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Alice Coelho, Ana Roque e Ana Paula Sena Belo gostam disto.
João Gonçalves, Antonio Garrochinho, João Carrapiço e 3 outras pessoas gostam disto.

Alice Coelho gostei muito mesmo!!!! obrigado Victor** abraço
Ontem às 2:26 · Gosto

Jose Eliseu Pinto Resulta numa sensação estranha, ler sobre a cidade que tão bem conhecemos. Ou talvez não. Porque a tua é uma perspectiva do forasteiro, acossado pela cidade que sempre fez questão de maltratar quem vinha de fora. Como agora, aliás (há coisas que não mudam, nunca).
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Estes fragmentos narrados da memória do ano ‘menos um’ – o derradeiro – trazem-nos à lembrança um verão saturado, numa cidade que apodrecia, esforçando-se por esconder, no coração da praça do Giraldo, o que a podridão mostrava nos esgotos do Raymundo, a veia cava subitamente rasgada.
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Fica-me a perplexidade sobre a tecnologia de suporte às fotografias aéreas: o ‘Junkers’ das piscinas municipais?
Ontem às 9:22 · Não gosto · 2 pessoas
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Victor Nogueira Zé - Havia um colega nosso cujo nome não recordo que tinha a carta de piloto e uma vez fui com ele num teco-teco, creio que alugado no Aero Clube por meia hora. .
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Sempre gostei de andar de avião, mas esta foi a segunda vez que andei num teco teco (na 1ª tinha 3 anos, de Luanda para o Uíge e fiz a viagem ao colo dum dos pilotos na cabine de pilotagem - só me lembro dum painel enorme cheio de instrumentos de navegação). Mas desta 2ª vez cortei-as qd ele aterrou, a ver ali a pista a escorrer a escassos metros, o que não sucedia nos jactos ou aviões que faziam a ligação Luanda Lisboa e vice versa. O Junker das piscinas era uma peça de museu, já não voava LOL 
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Este é o 4º pedaço destas memórias; creio que te enviei as anteriores. Em 6 anos de estudante em Évora, salvo a Margarida Morgado e creio que a Lúcia Carmelo, nenhum eborense nos convidou para casa dele. De modo que isso unia .os estrangeiros nem ricos nem pobres mas desafogados que constituíam o nosso grupo no Arcada.
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 Um dos aspectos que me surpreendeu foi o facto dos meus colegas alentejanos em Económicas (Lisboa) serem sociáveis e em Évora serem fechados. A minha hospedeira dizia que 1º tinha de se mostrar que se merecia ser amigo, o contrário do que sucedia no Porto e em Luanda. Aprendi a dizer a palavra amigo não nas cidades e vilas do Alentejo mas sim nas aldeias e montes. 
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Em Luanda a casa dos meus pais - engenheiros, nascidos e criados no Porto - em Cedofeita, como o meu pai frisava - estava sempre aberta e à nossa mesa tanto se sentavam o engenheiro, doutor como o operário, analfabeto ou de poucas letras, o branco, o negro, o mestiço ou o indiano. Essa foi uma das razões pk Évora era para mim um sufoco.
Ontem às 9:45 · Gosto · 2 pessoas

Aristides Silva Para mim Évora foi sempre um buraco onde caí. Cada vez que de lá saía, era um alívio e uma tormenta quando tinha de regressar. Eu vinha de uma cidade conservadora como Angra do Heroísmo, mas quando cheguei a Évora fiquei bloqueado. 
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Vou contar-vos uma história que demonstra bem o que Évora naquele tempo. Os verões em Évora são normalmente muito quentes, ora eu estava habituado a andar de calções e de sandálias no verão em Angra. 
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Nessa altura eu estava hospedado em casa do Pingarilho, onde estava também o Varge que nessa altura estava a tirar o magistério primário, se não estou em erro. Isto deve ter acontecido em 1971, durante a hora de almoço eu discuti com os meus companheiros ali hospedados, que não aguentava mais andar de calças e que passaria a andar de calções porque não aguentava tanto calor. 
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Eles riram-se e afirmaram que eu não tinha coragem de o fazer. Mas eu fi-lo e apesar de no verão aparecerem alguns turistas assim vestidos, não impediu que todo o mundo olhasse para mim durante dias. Até que se habituaram, mas a « pressão social visual» foi enorme . 
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Um dia entrei num restaurante-tasca para beber um fino, na rua dos Mercadores, o segundo do lado direito cujo nome já não me recordo e o dono virou-se para e disse: o sr é que está bem, eu gostava de andar assim à fresca. E eu retorqui: -então porque é que não anda?
há 23 horas · Gosto · 1 pessoa

Aristides Silva Respondeu ele: Porque não tenho coragem!
há 23 horas · Gosto

Jose Eliseu Pinto Li, com toda a atenção, todos as notas que aqui publicaste. Como, aliás, sempre faço, mesmo quando Évora não é o seu objecto.
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Gosto, em especial, destes excertos da tua memória da cidade, desde logo, pelas largas zonas de sobreposição com a minha própria memória, das vivências comuns e da sua contemporaneidade. E acho particularmente interessante o facto de a tua exogenia te colocar numa perspectiva que, nem sempre, é familiar aos indígenas e que, por essa razão, possui uma complementaridade enriquecedora e uma capacidade explicativa única para as singularidades de Évora.
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Agradeço-te este contributo inestimável para a reconciliação com uma cidade que - paradoxalmente - não é para mim melhor, como mãe, do que foi para ti, como madrasta.
há 22 horas · Gosto · 1 pessoa

Antonio Garrochinho excelente camarada Victor ! abraço !
há 21 horas · Gosto

João Gonçalves Depois da nossa conversa telefónica mais um excelente trabalho com todo o pormenor do que se passou em tempos. Grande abraço do sempre amigo que agora tem mais tempo para apreciar os teus trabalhos.
há 15 horas · Gosto
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Victor Nogueira Bem, Zé, outro sufoco era a segregação sexual existente em Évora. Em Luanda até à 4ª classe andei em colégios mistos e na 4ª numa escola oficial, e nestas havia as masculinas e femininas,
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 Depois, o Liceu Nacional Salvador Correia, em Luanda, era masculino no curso geral e misto nos complementares. No Liceu as raparigas subiam pela escadaria central vedada aos rapazes e nos intervalos ou "furos" ficavam acantonadas no 2º piso do claustro da esquerda. Um rapaz que lá permanecesse apanhava um dia de suspensão das aulas. Nos furos os rapazes dos complementares e só estes podiam sair para a cerca do Liceu. .
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Mas fora isso, na sociedade, rapazes e raparigas conviviam normalmente, sem segregações, como aliás nas Faculdades e Institutos Superiores das Universidades Técnica e Clássica de Lisboa e respectivas Associações de Estudantes.Em Évora, a única rapariga que aceitou fazer parte da Direcção da AE, liderada pelo Viegas e por mim, foi a Isabel Pimentel. [o que não quer dizer que  nã houvesse algumas que colaborassem nas várias secções da AE).
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A minha 1ª aula no ISESE foi a de Direito Natural e verificando que a 1ª fila estava vaga ia sentar-me quando o Veladas me disse que não, que me fosse sentar noutra fila. Entretanto o Rola entrou pelo que só no intervalo pude interpelar o Veladas da razão de ser da sua atitude, tanto mais quanto a 1ª fila estivera vaga durante a aula inteira. Retorquiu-me que as 1ªs filas eram para as raparigas e perante a minha admiração sobre a razão de ser de tal regra, respondeu-me que era para impedir que as raparigas se misturassem com os rapazes e fizessem coisas que não deviam. 
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Pelo que eu e Viegas resolvemos estilhaçar tal norma, como "derrubámos" outras, e passado umas semanas cada um/a sentava-se onde muito bem entendia: nas 1ªs filas se as aulas nos interessavam, nas últimas, com intervalo vazio a meio, se não nos interessavam. 
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Na casa onde estava hospedado também funcionava um local de reunião alternativo ao Arcada e ao Cenáculo [cultural[ da Margarida Morgado, apesar dos protestos da minha hospedeira, que não via com bons olhos o meu quarto cheio de rapazes a discutir [sobretudo a situação política ou o dia-a-dia}, ler ou ouvir e gravar música [perdi uma cassete com o Aristides a cantar e tocar viola e outra do Nunes da Ponte a tocar órgão numa qualquer igreja. Em casa da Margarida ele tocava piano e sempre que podia tocava órgão em qualquer igreja]. 
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Também pousavam pelo meu quarto alugado algumas colegas nossas, como a Antónia e a Isabel Pimentel, sobrinha do Conde de Vilalva, para além da Lídia e das hóspedes da casa. 
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Apesar de todos os protestos, amuos e resmungos da D. Vitória, a única concessão que por minha iniciativa lhe fiz foi ter a porta do meu quarto aberta sempre que lá estivessem elementos do sexo feminino [Aliás a D. Vitória  aguentava  as minhnas «bizarrias» e reclamações sobre a comida pois eu pagava mais de mensalidade que qualquer dos outros hóspedes pois tomava banho e mudava de roupa diáriamente - hábito de Luanda - e lhe emprestara o meu aparelho de Televisão - na altura um luxo - que ela colocara na sala de jantar e era usufruído pelo restante pessoal da casa, indo eu para o Café Alentejano sempre que   havia um raro programa que me interessasse]
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No café é que fiava mais fino e no Arcada, para além das mulheres dos engenheiros da Siemens, só por lá apareciam a Dídia (com o irmão), a Antónia, a Lúcia e a Domingas (com o Valentim), para além da Lídia, todas elas mal vistas pelas castas e marialvas mentes masculinas, a que a maioria das mulheres se sujeitavam, mesmo que dentro delas lavrasse o mais intenso fogo que não deixavam transparecer. 
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Em 1973 já namorava a Celeste, malogradas as pressões da malta para que eu pedisse namoro à Rita, que aliás me fazia um intenso assédio. Pois uma vez estava sentado num banco do Jardim de Diana com a Celeste e beijámo-nos "castamente" e logo senti a varinha do guarda no meu ombro enquanto nos dizia que aquelas poucas vergonhas não eram permitidas LOL
há 13 horas · Gosto · 1 pessoa

Aristides Silva Eu acho que tu Vitor fizeste bem em escrever estas coisas. A segregação sexual em Évora, era uma coisa de que os nossos colegas alentejanos não se aprecebiam, porque eles nunca tinham conhecido outro regimen. Eu não sei se estavas no meu grupo de trabalho mas parece-me que sim. 
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No nosso 3º ano na cadeira de sociologia do desenvolvimento, para o trabalho final, fizemos grupos. No nosso grupo eramos 3 rapazes e uma rapariga. Eu não vou dizer o nome da nossa colega, porque passados 40 anos ela ainda pode não achar graça à história .Fizemos a primeira reunião ainda no instituto para definir o que cada um teria de fazer. Depois começámos a discutir a partir dali, onde nos iriamos encontrar para discutir a continuação dos trabalhos. A determinada altura eu coloquei a hipotese de nos reunirmos no Arcada. A nossa colega desatou a chorar, reparem que estávamos no 3º ano, ficámos todos apreensivos sem perceber a reação dela. 
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Perante a nossa admiração ela explicou que não podia reunir-se no café porque o namorado, que estava na tropa na altura, mas era nosso colega e alentejano claro, a proibira de ir ao café. Eu recordo-me apenas de na altura lhe ter perguntado: Então tu andas a tirar um curso de Sociologia e ao fim deste tempo todo ainda aceitas que o teu namorado te proíba de ires ao café?
há 12 horas · Não gosto · 2 pessoas

João Gonçalves Tudo o que vocês contam é real e eu que saí de lá recordo tudo como relatam... A minha vida profissional levou-me a outros encontros e desenvolvi uma carreira longa de 40 anos ligada á educação por isso sei o que vocês falam mas não me agarro a esse passado de relações humanas em meios retrógados que felizmente terminaram a não ser que hajam alguns saudossistas por aí espalhados!!!!
há 12 horas · Gosto
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Victor Nogueira João, eu explico pk Évora e os Jesuítas para mim foram uma desilusão e um sufoco. Pk os jesuítas que eram directores espirituais do Centro de Estudantes Católicos da Universidade de Luanda e dos Cursos de Férias em Luanda e aquele que acompanhava espiritualmente o grupo de estudantes católicos/católicas das Universidades de Lisboa eram mentes abertas e dentro do espírito do Vaticano II. .

O que encontrei no ISESE [e já não era católico essa altura embora continuasse a conviver com o grupo de estudantes católicos/católicas das Universidades de Lisboa e com o jesuíta que era o seu director espiritual]- creio que só eu e o Victor Ângelo estávamos em Sociologia por opção e não como recurso - foi uma escola velha, escolástica, livresca,repressiva, especialmente nos dois 1ºs anos, comuns a Economia e Sociologia. .

Nem fiz o curso que queria nem o que os jesuítas propunham. Mas aprendi muito com eles, apesar de tudo. Os que defendiam o marxismo nas aulas e nos exames nunca foram perseguidos por isso. .

Aliás, eu recusei submeter-me ao exame de Doutrinas Sociais  cuja  essência era "o capitalismo tem algumas coisas más, o socialismo algumas boas, mas a Verdade está  na Doutrina Social da Igreja, desancando  linha sim linha não no Marx, a despropósito, o que fez com que alguns de nós passássemos a ler na  Biblioteca do ISESE os livros marxistas, para rebater o professor, o que levou  à nossa politização em sentido contrário, aliado às aulas de Economia II do Armando Nogueira - marxista - ou de Planeamento Social, da Manuela Silva, do Graal, que  punha a tónica no desenvolvimento social e não apenas no desenvolvimento económico.
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Assim fui deixando para trás o exame final de Doutrinas Sociais, até ao 5º ano, quando fui ter com o Pe. Augusto Silva e lhe disse que aqueles não eram exames que medissem o grau de conhecimento dos alunos mas violentas provas que mediam apenas a capacidade de memorização acrítica e acéfala da matéria, pelo que me recusava a fazer tal exame pelo que em alternativa me propunha apresentar um trabalho e defendê-lo numa prova oral (os exames de Doutrinas Sociais eram apenas escritos) pois doutro modo recusava-me a concluir o curso. O Pe. Silva disse que me daria a resposta no dia seguinte. A contraproposta dele foi submeter-me a uma prova escrita idêntica às habituais e apresentar um trabalho à minha livre escolha, mas sem discussão oral. Pelo que entreguei a prova escrita normal, em branco, apenas com identificação, e um trabalho em que com base na Encíclica Pacem in Terris condenava a guerra colonial. Naturalmente, tive apenas dez valores e pude concluir o curso. 
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Como escrevia António Alçada Baptista no 1º volume da sua "Peregrinação Interior", eu não sei se os jesuítas são ou não bons educadores, mas que são educadores, são. Eles davam-nos as ferramentas com que a maioria defendia o sistema e uma minoria o atacava, mas nunca perseguiram esta minoria, ao contrário do que sucedia nas universidades estaduais.
há 11 horas · Gosto · 1 pessoa
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Victor Nogueira Daí que o Pe Silva sem azedume me tivesse dito há meses que eu hoje poderia ser uma pessoa importante, mas que escolhera outro caminho ... LOL
há 11 horas · Gosto · 1 pessoa



Victor Nogueira   Em tempo - Doutrinas Sociais cuja essência era "o capitalismo tem algumas coisas más, o socialismo algumas boas, mas a Verdade está na Doutrina Social da Igreja", desancando linha sim linha não no Marx, a despropósito, o que fez com que alguns de nós passássemos a ler na Biblioteca do ISESE os livros marxistas, para rebater o professor, o que levou à nossa politização em sentido contrário, aliado às aulas de Economia II do Armando Nogueira - marxista - ou de Planeamento Social, da Manuela Silva, do Graal, que punha a tónica no desenvolvimento social e não apenas no desenvolvimento económico.
Ontem às 11:34 · Gosto · 1 pessoa

Aristides Silva Há uma coisa que tu Vitor referes aqui e que eu nunca tinha pensado mas é verdade. Os padres que eu saiba, nunca descriminaram realmente, os que como nós, não nos enquadravamos nos valores defendidos por eles. Embora eles adorassem a normalização das mentes. Lembro-me perfeitamente de uma conferência do João Salgueiro no nosso 3 ano em que pela primeira vez os alunos, fomos 3 se não estou em erro, que colocámos perguntas ao conferencista. Além de termos sido os primeiros alunos a faze-lo, também fomos os primeiros a pedir a palavra, o que fez com que os professores tivessem de se virarpara trás e olhassem todos para nós de um modo espectante. Agora já tenho a certeza se era o Drº João Salgueiro o conferencista. De qualquer modo era um quadro superior do Governo de Marcelo Caetano.
Ontem às 12:07 · Gosto · 1 pessoa

Aristides Silva Eu queria dizer «agora já não tenho a certeza». Claro que na cadeira das Doutrinas Sociais os padres jezuítas « não podiam deixar passar» os que criticavam sobretudo a doutrina Social da Igreja que era para eles a base da sua argumentação. Ontem às 12:14 · Gosto · 1 pessoa
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Victor Nogueira Aristides - O João Salgueiro era um tecnocrata Marcelista, cuja opinião pedi como outras, incluindo o Pe. José Primeiro Borges, sj- o tal director espiritual - não confundir com o Pe Borges que leccionava Economia I - que me incentivaram a trocar Económicas do Quellhas (UTL - ISCEF) pelo ISESE, como escola de futuro.As cadeiras "ideológicas" estavam todas nas mãos dos Jesuítas e só a partir do 3º ano apareciam professores com outra abertura, depois da peneira e cilindragem dos 2 primeiros anos, comuns. (Doutrinas Sociais com o Pires Lopes, que não possibilitava qualquer diálogo e me parecia, apesar de tudo, o menos "formatado" na obediência cega característica da Companhia de Jesus - História da Sociologia e História das Teorias Políticas, nas mãos do Vaz de Carvalho, sj, - um poço de sabedoria que não conseguia transmitir à malta)
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Por seu turno Direito Corporativo, Legislação do Trabalho, Legislação Internacional do Trabalho, Relações e Organizações Internacionais para além de Previdência Social eram leccionadas por gente ligada ao Governo de Marcelo ou à ANP, autênticas nulidades ignorantes, salvo o de Previdência Social. Na qual se deve incluir essa autêntica aberração que era o Cónego Marques, pároco de S. Manços, que lecionavava Direito Natural e Psicologia Social, que falava de tudo menos do programa e por vezes dava aulas inteiras em ... alemão, que a maioria da malta não sabia. Em Psicologia Social o que nos valia eram os livros base de Psicologia Social [impostos pelos jesuítas ao professor ? ] - o do Stoetzel - que me permitiu outra visão e compreensão da realidade social - como aliás as cadeiras de Antropologia e Antropologia Aplicada, leccionadas pelo jesuíta António da Silva e das diferenças inter-culturais, e o do Klineberg
Ontem às 13:00 · Gosto · 1 pessoa
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Victor Nogueira Mas estes textos têm sido por mim enviados a muitos dos nossos antigos colegas e outras pessoas conhecidas, a maioria de Évora, mas a esmagadora maioria mantém-se ... silenciosa. Se os lêm ou não, desconheço pois não ha feed- ack LOL
Ontem às 13:05 · Gosto · 1 pessoa

João Gonçalves Tudo o que o Aristides diz é verdade pois presenciei essas situações em que se criticava a doutrina social da igreja e estive presente nessa conferência do João Salgueiro para levar o melhor aluno para a SEDES e foi assim que se começou o império do Granadeiro...
há 13 horas · Gosto

João Gonçalves O que aconteceu ao Armando Nogueira. excelente prof. de Economia II perdi-lhe o rasto e sempre gostei do seu trabalho pois muito aprendi com ele!!!!
há 13 horas · Gosto
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Victor Nogueira João e Aristides - Os padres António Silva, Craveiro da Silva e Manuel Belo (que leccionava Matemáticas Gerais a Economia e Matemática a Sociologia) já faleceram. Creio que também o mesmo sucedeu ao cónego Marques, o Rola.
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Já passaram vários meses desde a última vez que falei com o Pe Augusto da Silva, que se encontrava doente e me disse que gostaria de almoçar comigo qd fosse a Évora e me fez prometer que o faria, mas não sei se ainda é vivo.
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Fui várias vezes a casa do Armando Nogueira e estava convencido que falecera mas uns anos depois o Viegas desmentiu-me essa minha ideia, mas entretanto já passaram muitos anos. O pe Augusto Silva disse-me que telefonasse ao Vaz de Carvalho, o Ginjas, que de certeza se lembrava de mim e ficaria contente com o meu gesto. Telefonei-lhe mas ele não me reconheceu e não dizia coisa com coisa.
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O Armando Nogueira nas aulas de Economia II (tb foi professor de Sociologia do Desenvolvimento nos cursos de Sociologia) perguntava dramaticamente nas aulas "Donde vem este delta ?", e delta para aqui e delta para ali. Um dia nas minhas leituras na gélida biblioteca do Instituto, ao ler um livro de economia marxista, descobri que o delta não era senão a mais-valia, pelo que lho disse na aula seguinte o que o deixou algo embaraçado. Economia I (micro-economia) do Pe Borges era dada numa perspectiva capitalista e Economia II (macro-economia) numa perspectiva marxista, como aliás e também Sociologia Urbana, leccionada por um jesuíta basco.
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Depois de acabar o curso nunca mais procurei falar com o Granadeiro nem com o João Salgueiro. Aliás uma amiga minha censurava-me a atitude deliberada de não cultivar as minhas amizades ou conhecimentos com pessoas importantes. O Lira Fernandes encontrou-me uma vez em Paço de Arcos e disse-me para passar creio que pela CUF, presumo que para me arranjar lá trabalho, mas esqueci o cartão que me deu e nunca o contactei.
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A Manuela Silva, que me tinha em grande consideração e conhecia da SEDES, perdeu o interesse na minha pessoa quando depois do 25 de Abril me viu integrado numa delegação de estudantes das várias academias, maioritariamente formada por militantes da UEC, embora eu na altura já não participasse na SEDES mas também não era militante de qualquer partido político.
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Aliás depois do 25 de Abri em Évora fui convidado para aderir ao PCP, ao MDP, ao PS, ao PPD, à UDP e ao PRP/BR, mas declinei todos os convites e tive uma efémera passagem pelo MES, que durou poucos meses.
há 12 horas · Gosto
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Victor Nogueira Antes do 25 de Abril o Mesquita, deputado da ANP, convidou-me para me arranjar um lugar mas ignorei o convite dele e a consideração por mim transformou-se em animosidade e só me safei no exame porque sabia mais que ele. Aliás safei-me em todos os exames com professores ligados à situação pk- com excepção do de Previdência Social - eram todos ignorantes e eu sabia mais que eles e dos júris fazia sempre parte um jesuíta
há 12 horas · Gosto

Aristides Silva Vocês estão a falar da SEDES de que anos? É que o Viegas e eu fomos convidados pelo professor Abilio que nos dava Contabilidade no Instituto, que anos depois foi o presidente da Camara de Évora pela CDU, para fazer parte da SEDES em Évora. Eu até pensava que tu Vitor também lá tinhas estado nessa altura. Nós fomos a várias reuniões e começámos logo a colocar problemas relativamente à clarificação ideológica da SEDES.
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O Abilio pareceu-me sempre uma pessoa muito honesta, mas tinha menos formação politica do que nós e como não sabia responder-nos, ía tomando nota e colocando os problemas a Lisboa. O próprio Abilio a determinada altura já apoiava as nossas posições nas reunioes. Um dia apareceu num dessas reuniões um advogado de Évora cujo nome não me recordo, que começou a defender a teoria desenvolvimentista e nós arrumámos com ele só com perguntas. Resumindo e concluindo, ao fim de algum tempo o Abilio resolveu entregar a Lisboa «a chave» da organização em Évora. O que aconteceu depois desconheço completamente.
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Victor Nogueira A SEDES a que me refiro era a de Évora antes do 25 Abril. Para além do Abílio Fernandes, faziam parte vários estudantes do ISESE, creio que tb o Fernando Cruz, e vários eborenses que depois formaram o PPD em Évora - a maioria dos quais dos chamados católicos progressistas - de que me lembro da Mariana Perdigão, que foi governadora civil de Évora, e um Cruz, bancário, que com o Abílio (então surgido ligado ao MDP) fez parte da 1ª Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Évora post 25 de Abril.
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Num dos meus trabalhos para Planeamento Social (no tempo do Marcelo) entre a bibliografia por mim citada figurava um semi-clandestino documento programático da SEDES, o que a Manuela Silva não apreciou muito, como fez questão de mo dizer, embora mantivesse a consideração que tinha por mim. Não me lembro como fui parar à SEDES de Évora, mas talvez tenha sido "recrutado" pelo Abílio Fernandes. Mas logo a seguir ao 25 de Abril deixei de participar nas reuniões da SEDES.
há cerca de uma hora · Gosto

Aristides Silva O periodo a que tu e o João se referem relativamente à SEDES de Évora é posterior à minha passagem e do Viegas por lá. Para nós na altura, a função politica da SEDES era clara, por isso saímos.
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Victor Nogueira Eu continuei para fazer trabalho de sapa, mas depois do 25 de Abril aquilo desmoronou-se pois cada um seguiu o seu rumo LOL
há cerca de uma hora · Gosto

Aristides Silva Mas voltando atrás um pouco na história da cidade de Évora. Uma das coisas que mais me impressionava na altura, era ir ao cinema à noite e só ver homens. As mulheres só íam ao cinema às matinés de fim de semana. Aquilo mais parecia uma terra de talibãs. Não sei se isto acontecia só em Évora, ou se só no Alentejo. Eu vim dos Açores para Mafra em 1964 e depois estive em Elvas, Lamego e Abrantes. Eu nunca tinha visto uma coisa daquelas, em parte nenhuma, por onde anteriormente tinha passado.
há cerca de uma hora · Gosto
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Victor Nogueira Bem, havia as sessões do Núcleo Juvenil de Évora do Centro de Estudos e Animação Cultural (da Figueira da Foz e dirigida por um Pe. progressista, chamado salvo erro Marques) que eram seguidas duma análise do filme após a sua exibição com animados debates sobre a "leitura" do mesmo e a essas sessões compareciam várias colegas nossas
há cerca de uma hora · Gosto
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Victor Nogueira Mas ... LOL, só eu e tu estamos a participar desta vez. Então, pessoal, não ajudam a animar a festa ?
há cerca de uma hora · Gosto
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Victor Nogueira O Alentejo era essencialmente machista. Nos inquéritos que fizemos em Arraiolos uma vez uma mulher cujo marido estava fora convidou-me a entrar para responder. Depois numa das tabernas um velhote interpelou-me volteando um cajado sobre a minha cabeça dizendo que eu faltara ao respeito à mulher. Tive de apelar para os presentes, se algum deles me podia acusar de ter faltado ao respeito a alguém e o pessoal afirmou que eu sempre fora respeitador e o velhote acalmou. Mas até ai vi o caso mal parado.
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Também um agrário ao chegar a casa em Arraiolos ao ver que a mulher estava a responder ao inquérito ia-me dando um arraial de porrada que não concretizou pk lhe fiz frente e saquei do cartão de identificação do INE com o escudo da República e a faixa verde/vermelha.
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A única excepção a este machismo era a Amareleja, a maior aldeia do Alentejo, onde a Celeste dava aulas.
há cerca de uma hora · Gosto
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Victor Nogueira Não, o cartão não era do INE mas sim do Ministério das Corporações e Previdência Social, que decidira fazer aquele conjunto de inquéritos para uma caracterização sociológica do concelho de Arraiolos e recrutara os inquiridores entre os estudantes do ISESE, o que para mim foi útil por juntar a teoria à prática e me permitir questionar p Pe Augusto da Silva nas aulas de Técnicas de Investigação Social.
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Do corpo de inquiridores fazia parte pelo menos uma colega nossa, a Domingas, e não sei se tb a Lúcia e/ou a Dídia, do nosso grupo do Arcada.
há 54 minutos · Gosto
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Victor Nogueira Ah! Agora me lembro. Fui várias vezes a casa da Lúcia, uma das duas eborenses que me franqueou as portas da casa dela. A outra foi a Margarida Morgado. Quanto aos rapazes de Évora, apenas o Cónim. LOL
há 40 minutos · Gosto.

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Aristides Silva Mas Vitor as sessões do Nucleo Juvenil de Évora era à tarde por isso as raparigas iam. Por acaso esse padre de que falas era de facto progressista. Eu penso que dos padres jesuítas, o menos conservador digamos assim era o Silva.
há 19 horas · Gosto
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Victor Nogueira O Augusto Silva, sim. Mas também o Vaz Pato. Mas os jesuítas tinham de andar na corda bamba e gerir os conflitos de modo a evita que surgissem pretextos para que o Governo encerrasse o Instituto. Naquele tempo sociologia era considerada subversiva e o ISESE era a única escola de sociologia em Portugal
há 19 horas · Gosto

Aristides Silva Sim tudo isso é verdade o que dizes, mas em vez de colocarem professores jezuítas tão conservadores, poderiam ter pelo menos colocado pessoas mais inteligentes.
há 18 horas · Gosto
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Victor Nogueira Bem, eu acho que eram todos inteligentes, embora todos submetidos à disciplina cega da Companhia de Jesus, o braço armado da Igreja Católica para combater a Reforma protestante, conjuntamente com os Dominicanos. É interessante verificar que o vulgo liga os jesuítas à Inquisição quando na realidade o Tribunal do Santo Ofício estava nas mãos dos "Padres Negros" da Ordem dos Dominicanos e não poucos jesuítas foram por este perseguidos.
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Agora havia em Évora os que se "adaptaram" mal, casos do Borges, do Pires Lopes, do Vaz de Carvalho e mesmo do Augusto Silva, e outros que não tiveram traumas. O Vaz Pato, o Craveiro da Silva e o jesuíta basco não eram propriamente conservadores. O António da Silva, sim, politicamente, mas era um paradoxo pois as cadeiras de Antropologia davam aos alunos uma capacidade de abertura e de entendimento de outras mundividências, como aliás sucedia com a Psicologia Social do Stoetzel.
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Não te esqueças que eles estavam inseridos numa cidade profundamente conservadora, que o Vilalva era um latifundiário "progressista" e os jesuítas tinham de gerir os conflitos para evitar dar pretexto ao Governo para encerrar o Instituto. Eles sabiam de certeza que o Mesquita e o Cabral eram medíocres, mas fazia parte do jogo das compensações. Aliás quando há meses falei com o Pe Silva sobre os professores (incluindo os jesuítas) e o ambiente do ISESE ele, agora já "liberto", tinha uma análise coincidente com a minha.
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Esse jogo das compensações foi-me claramente explicitado pelo Craveiro da Silva, quando Director do ISESE. Lembra-te que na Direcção da AE liderada pelo Viegas e por mim o placard da AE estava sempre cheio de recortes contra a situação e críticos do capitalismo.
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Pois uma vez quando estava a afixar recortes o Craveiro chegou ao pé de mim e disse-me "Oh Victor, acho muito bem que afixem esse género de notícias mas por uma questão de equilíbrio deviam tb afixar notícias da situação." Retorqui-lhe, rindo, que a situação tinha tudo: a censura, a imprensa, a rádio e a televisão e nós só tínhamos aquele placard. Ele não insistiu e o "nosso" placard continuou sem notícias da situação.
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Aliás, antes do 25 de Abril, o ISESE encerrava sempre no 1º de Maio ... por ser o dia de S. José, Operário. Deves lembrar-te que no topo do 1º lance de escadas estava uma estátua com a legenda "S. José Operário" e não havia retratos dos governantes e se a memória me não não falha também não havia crucifixos.
há 17 horas · Gosto · 1 pessoa

Aristides Silva Esses pormenores de que falas eu já não me recordo de nada. Eu penso que tu criaste uma ligação forte a Évora porque namoraste e casaste com uma rapariga alentejana. Eu quando saí de Évora fui para o Porto, porque estava ligado ao pessoal do teatro que mais tarde formou a Companhia de Teatro Seiva Trupe. Gente como o Julio Cardoso com quem mantive e mantenho uma amizade muito forte ainda hoje. O mesmo aconteceu com a minha amiga Estrela Novais. São amizades que ultrapassaram sempre todas as nossas divergências ideológicas. Depois eu estava ligado ao PRP e mantive esse vinculo durante vários anos, tendo sacrificado toda a minha vida particular em nome desse ideal, com consequências bastante dramáticas em termos individuais. Já tudo passou mas a minha experiência politica foi muito intensa durante alguns anos. Apesar de tudo, e de alguns erros cometidos, tenho orgulho do meu passado politico.
há 16 horas · Gosto · 1 pessoa
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Victor Nogueira E nos 3 últimos anos dos cursos havia os professores leigos tecnocratas, "neutros" - como os de Gestão de Empresas Agrícolas, de Contabilidade Analítica, de Direcção de Pessoal, de Psicologia do Trabalho, de Informática ... e outros mais ou menos críticos da Situação - casos de Sociologia do Desenvolvimento, Planeamento Social, Sociologia Urbana, Estrutura da Economia Portuguesa ...
há 16 horas · Gosto · 1 pessoa
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Victor Nogueira Não tenho qualquer ligação afectiva a Évora. Évora para mim, especialmente no tempo anterior ao 25 de Abril, continua a ser um buraco negro na minha vida, um tempo de violência e de negação parcial de mim mesmo para poder alcançar um dos meus objectivos - concluir o curso de sociologia,
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Aliás a Celeste era da Margem Esquerda do Guadiana e de Beja (entre Santo Amador - Moura - e Salvada - Beja). Tenho uma boa memória e analiso - bem ou mal, pior ou melhor - os factos e não sou sectário, embora firme nas minhas convicções. Sou por natureza analítico, sob várias perspectivas, e racionalista LOL
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A única terra alentejana a que continuo afectivamente ligado é Beringel (em Beja mas no lado oposto à Salvada), onde residiam os tios do Camilo, e onde eu e o Nunes da Ponte passámos muitos fins de semana e eu mesmo uma quadra natalícia, como se da família fôssemos.
há 16 horas · Gosto · 1 pessoa
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Victor Nogueira Mas acho melhor, Aristides, encerrarmos o debate neste post, pois isto está a transformar-se numa conversa entre ambos perante o ruidosos silêncio duma plateia talvez inexistente LOL
há 16 horas · Gosto

João Gonçalves Tive que desligar pois tinha outros assuntos a tratar... Agora já li tudo e penso que vocês os dois estão bem informados. O Aristides fala de um advogado que é o Sertório Barona prof. de Direito Comercial. Eu saí de lá em 1973 e fui militar de Abril passando por Mafra, Lamego, Chaves, Beja e Evora. Depois fiz as Matemáticas e como gosto disto dediquei o meu trabalho a esta ciência desenvolvendo muitos trabalhos nesta +area pelo país. Grandes saudações democráticas aos meus amigos.
há 14 horas · Não gosto · 1 pessoa
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Publicada por Victor Nogueira à(s) quarta-feira, agosto 24, 2011  
Etiquetas: Em Rede, Évora, ISESE, Memórias, Opinião do Leitor, Para a História do ISESE, Victor Nogueira Fotografia, Victor Nogueira Prosa

quinta-feira, 12 de março de 2020

em Évora, espraiando pelos cafés

* Victor Nogueira


Café Arcada


Évora - Café Arcada – interior

Eis aqui o mítico "Café Arcada". Não se vê a porta giratória nem a tabacaria, à entrada, à esquerda. Fora, nas arcadas, ficava a banca da velhota dos jornais. Na foto, dentro e à direita, o balcão da pastelaria. Ao fundo, não me lembro se à direita, se à esquerda, sobre-elevada, a barbearia. Descendo as escadas, à esquerda, o restaurante e os WC, estes com velhote/a que viviam das gorjetas. Penso que naqueles tempos os empregados de café - como os taxistas - só viviam das gorjetas. Na foto não se vê o senhor Jaime, o engraxador, que surge nos meus escritos tal como a vendedora dos jornais. Ao fundo, subindo as escadas, desembocava-se na estreita rua da Alcarcova de Cima, que liga a Praça do Sertório à antiga rua da Selaria (actual 5 de Outubro). Na foto não se veêm as enormes ventoinhas no tecto, que nada refrescavam no verão. (2014.12.16)

1969
Encontro-me no vozear barulhento do Arcada, onde a porta gira continuamente. "Adeus oh escriturário!" As primeiras e únicas palavras que alguém me dirige, além do "obrigado" do criado, perdão, do empregado, quando lhe paguei o garoto claro e lhe dei cinco tostões [1969]. Mas as palavras do [Jacinto] Morte passaram como a chuva escorrendo pela minha gabardina branco sujo, como o [António] Campos, que diz poesia muito bem e que esteve em Luanda. A cadeira defronte a mim continua vazia, apenas ocupada com o "chamberlain" [guarda-chuva] e a gabardina. ( ) (POE - 1969.03.16)

1971
O ar abafado, a vozearia imperceptível, mas não inaudível, enchem o café Arcada, para onde vim estudar (...) É um domingo indefinido, um começo de tarde. (...) O café está cheio, na sua grande maioria homens na casa dos quarenta, que cavaqueiam. Logo, a meio da tarde, a clientela será diferente: os homens trarão as esposas e a prole. Nos outros dias apenas as [mulheres] mais "evoluídas" aqui virão. Mas são já muitas mais do que antigamente, se a memória me não atraiçoa. (...) Olho à minha volta e vejo malta conhecida: além, o Morte que me acena, como o Calisto, que há muito não via. O namorado da Gabriela discute acaloradamente e o senhor D. Alexandre de Lencastre conversa com dois amigos (sê-lo-ão?), que falam também com a cabeça e as mãos. Aqui, à minha esquerda, está o velhote pequenitates que anda à Charlot; costuma pôr uma flor no copo de água que normalmente acompanha a bica, fala em verso - os dois últimos primam quase sempre pela falta de rima e métrica - e oferece moedas da sua colecção às personalidades importantes que passam por Évora e às caras bonitas. Fala com toda a gente e não sei se falará com alguém. Quando regressei de Luanda reparou que eu tinha rapado a barba... largos meses depois do acto solene que me tornou irreconhecível ao espelho, provocando-me, durante alguns dias, ataques de hilaridade frente àquela face rejuvenescida e francamente risonha, sem o sorriso voltaireano que dizem ser o meu - irónico e trocista - de que muitas vezes me apercebo mas não contenho, mesmo nos momentos mais solenes e sérios, de gravidade de circunstância. (...) O ar está [agora] pesado; olho à minha volta e há clareiras na humanidade que me cercava. O relógio, sobre a mesa, diz-me faltarem quinze para a uma. Horas de ir até lá fora, apanhar um pouco de ar antes de regressar a casa para o almoço (NSF - 1971.01.31)

1972
Abraça por mim a malta da mesa do café Arcada, companheiros das horas vazias. Como estas no Porto, aguardando os exames de Fevereiro. Um abraço especial para a Guida [Morgado] e para a "terrorista" que é a Zeca. ( )  (Lídia - 1972.01.01)

Estou no café, no "velho", barulhento e de ar viciado que é o Arcada. Deixei os jornais em cima de uma mesa, para marcar o lugar, enquanto ia à tabacaria comprar uma folha de papel. (...) Ao regressar encontrei um moço a folheá-los muito descontraidamente. Devia ser dos Regentes Agrícolas. Que ficou algo atrapalhado e balbuciou pensando serem do café. Que não acabou de lê-los, apesar da minha cordialidade. Enquanto escrevo vou bebendo o galão








e comendo a sanduíche de fiambre, acto quotidiano das 17 horas. Na sala meio cheia umas pessoas conversam, outras leem os jornais da tarde, alguns estudam, uns olham simplesmente para coisa nenhuma, embrenhados sabe-se lá em que pensamentos. Reconheço alguns, poucos, companheiros indiferentes, quase móveis da casa. Dos outros, é de assinalar o seu mau gosto no vestir, fatos escuros, a boina ou o chapéu de abas viradas para os olhos. Conversam com a cabeça apoiada na mão, uns sorridentes, outros de rosto grave, testas enrugadas. Por vezes recostam-se para trás nas cadeiras, outras juntam as cabeças, convergindo para o centro da mesa, quais conspiradores. Olho à minha volta e o café está [continua] meio cheio. O João Luís chegou e começou a ler o jornal. Daqui a pouco chegarão o Camilo e o Carlos, que virão do exame. Domingo Évora será um deserto, estupidificante. Eis que assomam à porta do café o Chico Garcia [seria o  Chico Bellizzi ?] e o Manel. Ficaram‑se pelo balcão da pastelaria. Entretanto entra também o  Álvaro Lapa, que é pintor, e corresponde cordialmente ao meu largo aceno. Entretanto o João Luís protesta porque não consegue ler o jornal; a mesa está desengonçada e tremeliques. (MCG - 1972.03.18)

Em Évora, novamente no café [Arcada], uma das três dominantes da minha vida neste burgo perdido na imensa planície alentejana. Na mesa quadrada de tampo encarnado, o habitual café com leite, o copo de água, os óculos, o envelope e as folhas, meios de estar com os outros. O mesmo ar quente e abafado, o ruído em surdina, a floresta de gente - forasteiros? - em torno de mim. Naquela mesa as únicas caras conhecidas: o Dinis e o: Cachatra, pintor, que esta tarde tem procurado impingir um dos seus quadros, aquele mesmo que tem agora sobre a mesa. Cheguei de Beringel [onde moram os Brito Lança, tios do Camilo] há umas cinco horas. (MCG - 1972.07.05) ([1])

O café é um mar de gente barulhentamente conversadora. As ventoinhas giram, mas nem por isso o ar está mais fresco. Évora civiliza-se: conto cerca de dezoito elementos do sexo feminino aqui no Arcada (minha pátria em terras alentejanas). O mundo caminha para a perdição, diriam os "moralistas" de porta para fora! (MCG - 1972.07.24)

Ouço o Zeca Afonso e daqui a pouco vou até ao Arcada, dar dois dedos de conversa ao Camilo, lanchar a sandes de fiambre, galão claro e iogurte habituais, e dar uma vista de olhos pelos jornais da tarde. (MCG - 1972.09.22)

O Arcada é um mar de gente em burburinho, uns lendo, outros comendo, outros escrevendo ou preenchendo sonhos de Totobola, outros conversando com a língua e os dentes e os lábios e as mãos quando não com o corpo inteiro. Do outro lado, além à minha esquerda, um homem está sentado tirando dum saco de plástico algo cujo conteúdo lhe enche as mãos: talvez moedas. Insólito, a seus pés, uma enorme e brilhante bacia de cobre amarelado. O homem levanta-se - tem uma pasta de cabedal quase do seu tamanho - pega na bacia e encaminha-se para a porta, por onde entra e sai muita gente, com ar lento e vagaroso de quem nada tem para fazer. Lembro-me de há quatro anos - ou mesmo há dois - e há muito mais mulheres e raparigas - algumas bem giras por estas mesas. Évora "civiliza-se". Só a minha hospedeira continua com as suas concepções retrógradas de outros tempos e outras eras, que continuam [no fundo] a ser as de Évora. À minha direita dois velhotes conversam: um deles conta qualquer episódio relacionado com a sua estadia na Grande Guerra de 14/18. Olho à minha volta e o café está mais vazio; não encontro o Camilo, que pela segunda vez passou há pouco além no corredor central. Deve estar em dia não. Mais velhotes sentam-se ao lado da minha, iniciando amena cavaqueira. Agora reparo que esta é a mesa deles. Adeus, estudo. Um deles diz que os gajos da situação são os que mais maldizem o Marcelo [Caetano] e os que mais o homenageiam. (MCG - 1972.09.28)

Estava eu para aqui alinhavando estas linhas (...) quando o Carlos me entrou pelo quarto dentro, com um "Ah! Estou muito cansado. Imagina lá que andei com o Camilo a ver monumentos; pela milésima vez fui ao Museu e à Sé". Sabes, por causa do Camilo andar na fase cultural! ( O menino agora anda a estudar latim, não conseguiu convencer qualquer de nós - eu e o Carlos - a acompanhá-lo em tão profundos estudos, mas nem por isso consegui escapar às longas dissertações ali à mesa do Arcada, especialmente quando descobriu um interlocutor: o Régua, que também estudou latim! (MCG - 1972.10.07)

Passei pelo café, que estava vazio de quem me interessasse. Apenas a Lídia, o Tobias e o Luís, muito entusiasmados porque em Évora "rebentara um golpe de estado" (!) O Tobias teria visto um movimento desusado e aparatoso de polícias com capacetes de aço e metralhadoras aperreadas nas imediações do Governo Civil. Para lá seguiu o grupo, mas sem mim, pois tenho mais que fazer. Amanhã lerei os jornais e logo saberei. (MCG - 1972.12.15)

O Arcada hoje está impossível de poluição, por causa dos alentejanos que hoje desceram ao povoado para discutirem o preço do gado e o mais que não sei nem me interessa. (MCG - 1972.12.26)

1973
Chove. Está cinzento. A chuva faz barulho no pátio. Amanhã é 3ª feira, o meu dia negro, pois a cidade - e o café – [no Dia de S. Porcoenchem-se de alentejanos corpulentos, solidamente parados no meio do caminho, de chapéu na cabeça e fatos escuros, como se nada mais existisse no mundo senão as suas irritantes pessoas! Embora cheia de gente, a cidade, para mim, está despovoada. Quando não estou na minha torre (“cela”, como diz a D. Ilda) ando por aí, pelo café, pelas livrarias, pelo Instituto [ISESE], quase sempre (fingindo-me) muito atarefado. (NID - 1973 ?)

Vou até ao café lanchar e poluir um pouco os pulmões. (MCG - 1973.01.24)

Quanto a mim, vou‑me embora p'rá reunião, com passagem pelo Café Arcada, cheio de fumo e parecendo que nem mar de gente quando estamos no cimo das escadas. (MCG - 1973.03.14)

Olho para os meus colegas e reparo que os tipos de Lisboa ainda não estão de regresso. O filho - ou um dos filhos - do António Champalimaud - aluno do 1º ano, era um pratinho às 2.as feiras, atrás do Veladas, alto, gordo, de cabelo alourado encarapinhado, para este lhe tirar a falta. Uma cena perfeitamente risível. (MCG - 1973.04.02)

O dia hoje está maravilhoso e eu já me "averanei" no trajar. Évora está cheia de miúdas, magotes delas, de fora, novinhas, que enchem as ruas e o Arcada, onde consomem hectolitros de laranjadas e colas. (MCG - 1973.04.06)

O Arcada é um zum-zum de vozes e louça e máquinas e cadeiras atiradas. Na mesa ao lado o Camilo delicia-se com o "Ricardo III" do Shakespeare. De vez em quando comunica-me um ou outro dos diálogos da peça.  (MCG - 1973.06.08)

(...) Num ápice o Arcada enche-se. Terminaram as condecorações, os toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Além o senhor Jaime abre e fecha os braços, como asas, enquanto vai dando lustro aos sapatos de um cliente. Passam empregados com as bandejas cheias de chávenas, copos e comes. O casalinho de namorados bebe chá com torradas. O mesmo que um casal já caminhando para a meia idade aqui à esquerda, na mesa ao lado. Ele já acabou de ler o Diário de Notícias (fraco gosto) e ela dá-lhe uma torradinha. (...) O marinheiro levanta-se e parte. Afinal a bengala não é dele mas do amigo que o acompanha. O senhor Tenente e o senhor Coronel cumprimentam-se, batem a pala e apertam as mãos, enquanto as respectivas esposas se beijam. Na carequinha do senhor Coronel o vinco na pele assinala a presença do boné, agora sobre a cadeira. Entram pessoas de luto e há cumprimentos de mesa a mesa. Precisava duma câmara de filmar. Sobre a minha mesa, "O Século" (sabe) que dentro de dias será descerrada em Luanda uma estátua ao Marcelo [Caetano]. Para além d'O Século a lapiseira, um livro ("A Sociedade de Consumo") e o porta moedas (agora é incómodo trazê-lo no bolso). (...) O Jorge apareceu ontem pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as palavras que lho digam. ( ) ( MCG - 1973.06.10)

De manhã fui até ao Jardim [Público] e os meus passos levaram-me até ao campo de minigolfe. (...) Apesar da minha propaganda ainda não arranjei ninguém para jogar comigo. O Carlos e o Camilo só estão bem na poluição do Arcada. Quem lhes tirar a fumarada tira-lhes a vida e o ser!!!

(…) Não se pode entrar hoje no Arcada, cuja atmosfera deve ter muito pouco oxigénio, tornando-se assim irrespirável. (XXX - 1973.07.03)

Este barulho do café cansa‑me e dispersa‑me. Estou‑lhe demasiado sensível. O [Café] Portugal já tem esplanada no passeio, mas o Betinho, dono do Arcada, deve andar em compressão de despesas e o mar de gente daqui não se espraia pelo passeio. (...) Entretanto mudei de mesa, estou agora na de tampo azul. O Chico Bellizzi sentou‑se aqui, tomou uma limonada e agora aprecia o panorama em redor, enquanto assobia. (MCG - 1973.07.08)

Greve dos Bancários em Évora? Nem cheiro dela! "Amanda‑se" cada "boca" ali naquelas mesas do café que é impressionante. (MCG - 1973.07.16)

A mesa do café não é propriamente um local de recolhimento e, em sentando‑se o primeiro, logo chegam os outros. Resultado: muitas vezes os trabalhos têm de ser interrompidos. (MCG - 1973.11.12)

 Ali ao lado o Carmelo submete o Carlos a testes de inteligência. Pelas mesas vizinhas malta conversa ou estuda; as vozes do Camilo e do João Luís sobressaem aqui na mesa atrás de mim. (MCG - 1973.11.16

Levanto os olhos e vejo muitos magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos, espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira-me" que haverá dentro em breve mais um contingente para a guerra em África. Alguns escrevem, curvados sobre o papel, a caneta firme na mão, como quem não está habituado a frequentes escrituras. Parecem rapazes muito novinhos; uns conversam, irrequietamente, outros têm um ar absorto, ausente. 

 
O barulho invade-me e cansa-me. Há pouco, dei de repente com um silêncio gradual, profundo. Levantei os olhos do papel e era um magote de gente à volta duma mesa, em pé. Um silêncio em crescendo gradual. Gente levantando-se, esticando o pescoço. Continuo a escrever. Alguém se deve ter sentido mal, mas o meu curso de primeiros socorros já tem oito anos. Um homem sai do meio do magote, os seus lábios mexem-se e leio "Desculpe-me" a mão passada pela testa como quem tem suores ou tonturas. Sai pela porta giratória (há pouco atrás de mim) e perde-se na noite das arcadas. (MCG - 1973.11.26)

O chão do café está um autêntico chiqueiro. Juncado de papéis, beatas e fósforos. E terra. (MCG - 1973.11.27 A)

Comigo, aqui na mesa encarnada do Arcada, após o jantar, a minha mãe e o Jorge, que trabalha como ajudante de carpinteiro, vencendo uma jorna de 70 $ 00. Em Setúbal ganharia 120 $ 00, mas os pais prendem no aqui no burgo [Évora] (...) O Camilo e o Carlos não apareceram por aqui. O Jorge está aqui com uma conversa muito adulta, apesar dos seus dezasseis anos. Ele agora está atrapalhado. Por causa da minha mãe passou a tratar me por "senhor Victor" e por "vocemecê" [abandonando o "Victor" e o "tu"] (...) Perguntei ao Jorge se queria escrever qualquer coisa [para ti, nesta carta], mas ele não quer, pois diz que parece mal a letra dele ao pé da minha de doutor.

1974 
(... ) E então, que me dizes ao aumento do preço do petróleo e seus derivados? (Lá para Abril deve haver mais. Olarilas!). A velhota dos jornais ali às portas do Arcada já desabafou comigo esta manhã: não haver um raio que os partisse! Há 10 dias encomendara uma garrafa de gás; está cozinhando a lenha. Que só na 3ª feira. "Os patifes, os espertalhões, já sabiam disto e obrigam-me a pagar o gás mais caro!" Como dizia o Carmelo, muito solene e sisudo na sua pose à mesa do café: "Isto está cada vez pior!" (MCG - 1974.01.03)

O sol tenta romper o cinzento carregado de chuva, mas em vão. Acordei hoje ao som de catadupas de água [à tarde o sol descobriu e o céu azulou]. Quase um dilúvio que encherá ali a barragem do Divor, livrando-nos da água sabendo a peixe. Já não era sem tempo. Chegámos pouco antes das 22 horas. No Arcada o João [Garcia], a Filomena, o Camilo, o Zé Pinto, o Ribeiro, o "Chinês" e o irmão cantavam em coro desde as cantiguinhas da primária ("Ó Rosa, arredonda a saia", "Tia Anica de Loulé"...) às excursionistas ("Santa Catarina", "Rapsódia Portuguesa"...) passando por cânticos gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da Beira Baixa. Enfim, uma grande audição, no café cheio e entretido com outros assuntos. (MCG - 1974.02.11)

Vim até aqui ao Arcada, muito barulhento. Está um dia bonito, cheio de sol.  Évora está cheia de miúdas, aos bandos. (MCG - 1974.03.31)

É segunda-feira em Évora. o Arcada vozento e cheio. Circundo o olhar e não reconheço a maior parte das pessoas, que falam com grandes movimentos das mãos e do corpo - alguns - ou lêem o jornal: "A Bola" ou "O Século” Está um dia luminoso e soalheiro, este ano sem desfiles militares. Jovens esquerdistas cá do burgo pretendiam organizar um comício anti-colonialista mas parece-me que ficou tudo em águas de bacalhau   (MCG - 1974.06.10)

Passei pelo café onde encontrei o João Luís, a Filomena, o Marçal. Fiquei contente por vê-los mas já não é como antigamente. É como um fósforo que logo se apaga. (...) A Filomena manda cumprimentos e isso faz-me lembrar que o mesmo fizeram o Manuel Gonçalves (cada vez mais louco) e a mulher do Queiroga (reaccionária em questões de namoros)

Évora é uma cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6 anos) fazem-me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de imaginação. É um encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se pelas paredes, um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita estagnação. (MCG - 1974.11.27)


Café Portugal

1972
Dia de S. Pedro: uma pequena pausa na leitura contrariada do cooperativismo agrícola, capítulo da Sociologia Rural, parte ínfima da matéria de Sociologia II ... Estou envolto no vozear barulhento neste fim de tarde, o ruído contínuo da máquina de café e da louça na cozinha, o barulho dos carros ali na rua. Seguramente um contraste com a Salvada, silenciosa nos seus ruídos campesinos, que o Pe. [Augusto] Silva tão literáriamente descreve na sebenta, a propósito do meio físico rural: "O citadino que chega ao campo é ordinariamente surpreendido pelo silêncio que aí reina ou pelos ruídos novos que ouve (rumorejar das folhas, os gritos dos animais, o canto das aves, etc.) Tem a impressão de respirar mais à vontade ou, ao contrário, de ser surpreendido pelo vento, crestado pelo ardor do sol."Enfim, o rapaz Silva saiu-me um "poeta". Esqueceu-se foi de falar no maravilhoso céu estrelado [que vi em Beringel, estirado no terraço duma casa que foi do Marquês de Minas] (..) [Entretanto] o ruído diminuiu, sinal de que se aproxima a hora de jantar.(MCG - 1972.06.30)

1973
A tarde de hoje tem estado verdadeiramente tempestuosa: vento ciclónico e chuva a cântaros. É um prazer andar pelas ruas com o vento a bater na cara e o cabelo revolto. Mas desde há uns largos momentos que me encontro no abrigo que é o café Portugal - hoje é 3ª feira e o Arcada está poluído e barulhento. O vidro da montra, defronte do qual me sentei, está embaciado, como se fosse nevoeiro, e as pessoas que passam, correndo ou vergadas sob os guarda‑chuvas abertos são sombras fantasmagóricas, como as luzes do outro lado da rua. Na mesa ao lado o Camilo escreve. Deve ser o 3º testamento, nesta tarde. (...) . (MCG - 1973.01.16)

Aqui estou no  café, hoje no Portugal. São dez da manhã. (...) O empregado acabou de pôr‑me aqui a sandes de fiambre e o galão. Já não posso ver o pão seco com manteiga mais o copo de leite em casa da D. Vitória. Nem o frango de aviário ou o bife (!) com arroz e batatas fritas ou as batatas fritas com fiambre e ovo. Que falta de imaginação, quanto mais não seja na apresentação. Claro que também já deito pelos olhos sandes de fiambre, abomináveis pregos no pão, galões claros, copos de leite frio.

O café está quase vazio, com um velhote aqui e além lendo o jornal ou rapazes estudando. Para lá das amplas montras passam pessoas, umas lentas, outras apressadas, umas sozinhas, outras conversando, olhando em frente ou de olhos fitos no chão. (MCG - 1973.06.28 A)

Isto é que hoje foi um DIA!... Uma trovoada mesmo por cima da cidade: relâmpago, trovão e corte momentâneo e breve da electricidade eram simultâneos, iluminando e escurecendo o "Portugal". Então e os aguaceiros? Vá lá, que o céu está a descobrir. (MCG - 1973.07.10)


Café Alentejo

1973
Chegou agora o Guerreiro, mas vai lendo os vespertinos para se pôr em dia. Assisti ontem, como não podia deixar de ser, ao discurso do Marcelo Caetano sobre o Ultramar Português, na sequência dos incidentes verificados em Lisboa na Capela do Rato, após a atitude tomada por um grupo de católicos - chamados progressistas - sobre a paz - e as consequências da guerra colonial. (...) Pois o discurso do 1º Ministro foi atentamente escutado pela audiência ali do Café Alentejo onde vejo o pouco que me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente. Um discurso notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e factos, pela sua poesia ("Que bom poder ser moralista...", faz-me lembrar um dos poemas dum dos heterónimos do Fernando Pessoa, pela deturpação dos factos e pela demagogia. Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece um facto que o Governo Português procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)

Cervejaria A Nau

1973
E eu, que até já estava a habituar-me ao sossego dumas férias em Évora: levantar, uma volta pela cidade com passagem pelo [apartado] 65, umas leituras de estudo, almoço, uma ida até à Nau [na parte nova da cidade], mais modernizada que o Arcada e parecendo uma cervejaria em Luanda, pelas casas, pelas ruas desafogadas, pelos rapazes e raparigas menos "cinzentos" que os de cá de cima, mais umas leituras e uns inquéritos - o cinema é que está mau porque não tem corrido nada de jeito. (MCG - (1973.04.12)

Café Parque

1973
Na pequena salinha do café do senhor Gonçalves (é outro que não o da Raymond Street) alguns clientes assistem à televisão ali por cima do balcão: o Jorge Alves apresenta o programa da próxima semana. O [Emídio] Guerreira queixa‑se que a sopa está quente (...). Comecei hoje a comer aqui neste café, junto ao jardim infantil, entre a Praça de Touros e o Rossio [de S. Brás]. O almoço estava saboroso. Esperemos que assim continue. Ali numa mesa ao lado um grupo de jovens vê uma colecção de fotografias pornográficas, que de vez em quando mostram a outros noutra mesa, cruzando o meu campo de visão. Entretanto a TV transmite um documentário sobre a guerra israelo-árabe, prendendo a atenção dos clientes. (...) Na televisão sereias soam numa cidade síria, sobrevoada por aviões israelitas que a bombardeiam. Escombros e feridos enchem o ecrã. (MCG - 1973.11.21)

São 20:30; aqui estou [em Évora] no café Parque, um bocadinho contigo, a televisão trabalhando e homens ao balcão conversando e bebendo a bica. Ali a minha mãe faz as contas com a sra.D. Alice [Quaresma], das refeições na messe [dos oficiais]. Estava eu aqui muito bem acabando o meu jantar com o João Luís Garcia e o Emídio Guerreiro quando elas irromperam por aqui adentro. A Maria Antónia - penso que é o nome da cozinheira - muito delicada e sorridente, "recebe as ordens". Sou levado a concluir que tem qualquer preconceito contra os homens, pois nunca lhe ouvimos nem saudação ou vislumbrámos um sorriso. (MCG - 1973.12.04)



[1] -José Carlos Cachatra (1933 / 1974) nasceu em Borba mas acabou por fixar-se em Évora, onde foi professor depois de abandonar a carreira de piloto-aviador na Força Aérea Portuguesa. Havia quadros dele de que eu gostava, doutros não. Mas as duas ou três dezenas de escudos que cada um custava era muito para a minha bolsa de estudante. Sobre este pintor ver “CACHATRA EM S. VICENTE” (https://mentcapto.blogspot.com/2015/06/248-cachatra-em-s-vicente.html ), por Humberto Baião, e “José Cachatra (1933-1974) -- O pintor alentejano, natural de Borba”