quinta-feira, 12 de março de 2020

em Évora, espraiando pelos cafés

* Victor Nogueira


Café Arcada


Évora - Café Arcada – interior

Eis aqui o mítico "Café Arcada". Não se vê a porta giratória nem a tabacaria, à entrada, à esquerda. Fora, nas arcadas, ficava a banca da velhota dos jornais. Na foto, dentro e à direita, o balcão da pastelaria. Ao fundo, não me lembro se à direita, se à esquerda, sobre-elevada, a barbearia. Descendo as escadas, à esquerda, o restaurante e os WC, estes com velhote/a que viviam das gorjetas. Penso que naqueles tempos os empregados de café - como os taxistas - só viviam das gorjetas. Na foto não se vê o senhor Jaime, o engraxador, que surge nos meus escritos tal como a vendedora dos jornais. Ao fundo, subindo as escadas, desembocava-se na estreita rua da Alcarcova de Cima, que liga a Praça do Sertório à antiga rua da Selaria (actual 5 de Outubro). Na foto não se veêm as enormes ventoinhas no tecto, que nada refrescavam no verão. (2014.12.16)

1969
Encontro-me no vozear barulhento do Arcada, onde a porta gira continuamente. "Adeus oh escriturário!" As primeiras e únicas palavras que alguém me dirige, além do "obrigado" do criado, perdão, do empregado, quando lhe paguei o garoto claro e lhe dei cinco tostões [1969]. Mas as palavras do [Jacinto] Morte passaram como a chuva escorrendo pela minha gabardina branco sujo, como o [António] Campos, que diz poesia muito bem e que esteve em Luanda. A cadeira defronte a mim continua vazia, apenas ocupada com o "chamberlain" [guarda-chuva] e a gabardina. ( ) (POE - 1969.03.16)

1971
O ar abafado, a vozearia imperceptível, mas não inaudível, enchem o café Arcada, para onde vim estudar (...) É um domingo indefinido, um começo de tarde. (...) O café está cheio, na sua grande maioria homens na casa dos quarenta, que cavaqueiam. Logo, a meio da tarde, a clientela será diferente: os homens trarão as esposas e a prole. Nos outros dias apenas as [mulheres] mais "evoluídas" aqui virão. Mas são já muitas mais do que antigamente, se a memória me não atraiçoa. (...) Olho à minha volta e vejo malta conhecida: além, o Morte que me acena, como o Calisto, que há muito não via. O namorado da Gabriela discute acaloradamente e o senhor D. Alexandre de Lencastre conversa com dois amigos (sê-lo-ão?), que falam também com a cabeça e as mãos. Aqui, à minha esquerda, está o velhote pequenitates que anda à Charlot; costuma pôr uma flor no copo de água que normalmente acompanha a bica, fala em verso - os dois últimos primam quase sempre pela falta de rima e métrica - e oferece moedas da sua colecção às personalidades importantes que passam por Évora e às caras bonitas. Fala com toda a gente e não sei se falará com alguém. Quando regressei de Luanda reparou que eu tinha rapado a barba... largos meses depois do acto solene que me tornou irreconhecível ao espelho, provocando-me, durante alguns dias, ataques de hilaridade frente àquela face rejuvenescida e francamente risonha, sem o sorriso voltaireano que dizem ser o meu - irónico e trocista - de que muitas vezes me apercebo mas não contenho, mesmo nos momentos mais solenes e sérios, de gravidade de circunstância. (...) O ar está [agora] pesado; olho à minha volta e há clareiras na humanidade que me cercava. O relógio, sobre a mesa, diz-me faltarem quinze para a uma. Horas de ir até lá fora, apanhar um pouco de ar antes de regressar a casa para o almoço (NSF - 1971.01.31)

1972
Abraça por mim a malta da mesa do café Arcada, companheiros das horas vazias. Como estas no Porto, aguardando os exames de Fevereiro. Um abraço especial para a Guida [Morgado] e para a "terrorista" que é a Zeca. ( )  (Lídia - 1972.01.01)

Estou no café, no "velho", barulhento e de ar viciado que é o Arcada. Deixei os jornais em cima de uma mesa, para marcar o lugar, enquanto ia à tabacaria comprar uma folha de papel. (...) Ao regressar encontrei um moço a folheá-los muito descontraidamente. Devia ser dos Regentes Agrícolas. Que ficou algo atrapalhado e balbuciou pensando serem do café. Que não acabou de lê-los, apesar da minha cordialidade. Enquanto escrevo vou bebendo o galão








e comendo a sanduíche de fiambre, acto quotidiano das 17 horas. Na sala meio cheia umas pessoas conversam, outras leem os jornais da tarde, alguns estudam, uns olham simplesmente para coisa nenhuma, embrenhados sabe-se lá em que pensamentos. Reconheço alguns, poucos, companheiros indiferentes, quase móveis da casa. Dos outros, é de assinalar o seu mau gosto no vestir, fatos escuros, a boina ou o chapéu de abas viradas para os olhos. Conversam com a cabeça apoiada na mão, uns sorridentes, outros de rosto grave, testas enrugadas. Por vezes recostam-se para trás nas cadeiras, outras juntam as cabeças, convergindo para o centro da mesa, quais conspiradores. Olho à minha volta e o café está [continua] meio cheio. O João Luís chegou e começou a ler o jornal. Daqui a pouco chegarão o Camilo e o Carlos, que virão do exame. Domingo Évora será um deserto, estupidificante. Eis que assomam à porta do café o Chico Garcia [seria o  Chico Bellizzi ?] e o Manel. Ficaram‑se pelo balcão da pastelaria. Entretanto entra também o  Álvaro Lapa, que é pintor, e corresponde cordialmente ao meu largo aceno. Entretanto o João Luís protesta porque não consegue ler o jornal; a mesa está desengonçada e tremeliques. (MCG - 1972.03.18)

Em Évora, novamente no café [Arcada], uma das três dominantes da minha vida neste burgo perdido na imensa planície alentejana. Na mesa quadrada de tampo encarnado, o habitual café com leite, o copo de água, os óculos, o envelope e as folhas, meios de estar com os outros. O mesmo ar quente e abafado, o ruído em surdina, a floresta de gente - forasteiros? - em torno de mim. Naquela mesa as únicas caras conhecidas: o Dinis e o: Cachatra, pintor, que esta tarde tem procurado impingir um dos seus quadros, aquele mesmo que tem agora sobre a mesa. Cheguei de Beringel [onde moram os Brito Lança, tios do Camilo] há umas cinco horas. (MCG - 1972.07.05) ([1])

O café é um mar de gente barulhentamente conversadora. As ventoinhas giram, mas nem por isso o ar está mais fresco. Évora civiliza-se: conto cerca de dezoito elementos do sexo feminino aqui no Arcada (minha pátria em terras alentejanas). O mundo caminha para a perdição, diriam os "moralistas" de porta para fora! (MCG - 1972.07.24)

Ouço o Zeca Afonso e daqui a pouco vou até ao Arcada, dar dois dedos de conversa ao Camilo, lanchar a sandes de fiambre, galão claro e iogurte habituais, e dar uma vista de olhos pelos jornais da tarde. (MCG - 1972.09.22)

O Arcada é um mar de gente em burburinho, uns lendo, outros comendo, outros escrevendo ou preenchendo sonhos de Totobola, outros conversando com a língua e os dentes e os lábios e as mãos quando não com o corpo inteiro. Do outro lado, além à minha esquerda, um homem está sentado tirando dum saco de plástico algo cujo conteúdo lhe enche as mãos: talvez moedas. Insólito, a seus pés, uma enorme e brilhante bacia de cobre amarelado. O homem levanta-se - tem uma pasta de cabedal quase do seu tamanho - pega na bacia e encaminha-se para a porta, por onde entra e sai muita gente, com ar lento e vagaroso de quem nada tem para fazer. Lembro-me de há quatro anos - ou mesmo há dois - e há muito mais mulheres e raparigas - algumas bem giras por estas mesas. Évora "civiliza-se". Só a minha hospedeira continua com as suas concepções retrógradas de outros tempos e outras eras, que continuam [no fundo] a ser as de Évora. À minha direita dois velhotes conversam: um deles conta qualquer episódio relacionado com a sua estadia na Grande Guerra de 14/18. Olho à minha volta e o café está mais vazio; não encontro o Camilo, que pela segunda vez passou há pouco além no corredor central. Deve estar em dia não. Mais velhotes sentam-se ao lado da minha, iniciando amena cavaqueira. Agora reparo que esta é a mesa deles. Adeus, estudo. Um deles diz que os gajos da situação são os que mais maldizem o Marcelo [Caetano] e os que mais o homenageiam. (MCG - 1972.09.28)

Estava eu para aqui alinhavando estas linhas (...) quando o Carlos me entrou pelo quarto dentro, com um "Ah! Estou muito cansado. Imagina lá que andei com o Camilo a ver monumentos; pela milésima vez fui ao Museu e à Sé". Sabes, por causa do Camilo andar na fase cultural! ( O menino agora anda a estudar latim, não conseguiu convencer qualquer de nós - eu e o Carlos - a acompanhá-lo em tão profundos estudos, mas nem por isso consegui escapar às longas dissertações ali à mesa do Arcada, especialmente quando descobriu um interlocutor: o Régua, que também estudou latim! (MCG - 1972.10.07)

Passei pelo café, que estava vazio de quem me interessasse. Apenas a Lídia, o Tobias e o Luís, muito entusiasmados porque em Évora "rebentara um golpe de estado" (!) O Tobias teria visto um movimento desusado e aparatoso de polícias com capacetes de aço e metralhadoras aperreadas nas imediações do Governo Civil. Para lá seguiu o grupo, mas sem mim, pois tenho mais que fazer. Amanhã lerei os jornais e logo saberei. (MCG - 1972.12.15)

O Arcada hoje está impossível de poluição, por causa dos alentejanos que hoje desceram ao povoado para discutirem o preço do gado e o mais que não sei nem me interessa. (MCG - 1972.12.26)

1973
Chove. Está cinzento. A chuva faz barulho no pátio. Amanhã é 3ª feira, o meu dia negro, pois a cidade - e o café – [no Dia de S. Porcoenchem-se de alentejanos corpulentos, solidamente parados no meio do caminho, de chapéu na cabeça e fatos escuros, como se nada mais existisse no mundo senão as suas irritantes pessoas! Embora cheia de gente, a cidade, para mim, está despovoada. Quando não estou na minha torre (“cela”, como diz a D. Ilda) ando por aí, pelo café, pelas livrarias, pelo Instituto [ISESE], quase sempre (fingindo-me) muito atarefado. (NID - 1973 ?)

Vou até ao café lanchar e poluir um pouco os pulmões. (MCG - 1973.01.24)

Quanto a mim, vou‑me embora p'rá reunião, com passagem pelo Café Arcada, cheio de fumo e parecendo que nem mar de gente quando estamos no cimo das escadas. (MCG - 1973.03.14)

Olho para os meus colegas e reparo que os tipos de Lisboa ainda não estão de regresso. O filho - ou um dos filhos - do António Champalimaud - aluno do 1º ano, era um pratinho às 2.as feiras, atrás do Veladas, alto, gordo, de cabelo alourado encarapinhado, para este lhe tirar a falta. Uma cena perfeitamente risível. (MCG - 1973.04.02)

O dia hoje está maravilhoso e eu já me "averanei" no trajar. Évora está cheia de miúdas, magotes delas, de fora, novinhas, que enchem as ruas e o Arcada, onde consomem hectolitros de laranjadas e colas. (MCG - 1973.04.06)

O Arcada é um zum-zum de vozes e louça e máquinas e cadeiras atiradas. Na mesa ao lado o Camilo delicia-se com o "Ricardo III" do Shakespeare. De vez em quando comunica-me um ou outro dos diálogos da peça.  (MCG - 1973.06.08)

(...) Num ápice o Arcada enche-se. Terminaram as condecorações, os toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Além o senhor Jaime abre e fecha os braços, como asas, enquanto vai dando lustro aos sapatos de um cliente. Passam empregados com as bandejas cheias de chávenas, copos e comes. O casalinho de namorados bebe chá com torradas. O mesmo que um casal já caminhando para a meia idade aqui à esquerda, na mesa ao lado. Ele já acabou de ler o Diário de Notícias (fraco gosto) e ela dá-lhe uma torradinha. (...) O marinheiro levanta-se e parte. Afinal a bengala não é dele mas do amigo que o acompanha. O senhor Tenente e o senhor Coronel cumprimentam-se, batem a pala e apertam as mãos, enquanto as respectivas esposas se beijam. Na carequinha do senhor Coronel o vinco na pele assinala a presença do boné, agora sobre a cadeira. Entram pessoas de luto e há cumprimentos de mesa a mesa. Precisava duma câmara de filmar. Sobre a minha mesa, "O Século" (sabe) que dentro de dias será descerrada em Luanda uma estátua ao Marcelo [Caetano]. Para além d'O Século a lapiseira, um livro ("A Sociedade de Consumo") e o porta moedas (agora é incómodo trazê-lo no bolso). (...) O Jorge apareceu ontem pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as palavras que lho digam. ( ) ( MCG - 1973.06.10)

De manhã fui até ao Jardim [Público] e os meus passos levaram-me até ao campo de minigolfe. (...) Apesar da minha propaganda ainda não arranjei ninguém para jogar comigo. O Carlos e o Camilo só estão bem na poluição do Arcada. Quem lhes tirar a fumarada tira-lhes a vida e o ser!!!

(…) Não se pode entrar hoje no Arcada, cuja atmosfera deve ter muito pouco oxigénio, tornando-se assim irrespirável. (XXX - 1973.07.03)

Este barulho do café cansa‑me e dispersa‑me. Estou‑lhe demasiado sensível. O [Café] Portugal já tem esplanada no passeio, mas o Betinho, dono do Arcada, deve andar em compressão de despesas e o mar de gente daqui não se espraia pelo passeio. (...) Entretanto mudei de mesa, estou agora na de tampo azul. O Chico Bellizzi sentou‑se aqui, tomou uma limonada e agora aprecia o panorama em redor, enquanto assobia. (MCG - 1973.07.08)

Greve dos Bancários em Évora? Nem cheiro dela! "Amanda‑se" cada "boca" ali naquelas mesas do café que é impressionante. (MCG - 1973.07.16)

A mesa do café não é propriamente um local de recolhimento e, em sentando‑se o primeiro, logo chegam os outros. Resultado: muitas vezes os trabalhos têm de ser interrompidos. (MCG - 1973.11.12)

 Ali ao lado o Carmelo submete o Carlos a testes de inteligência. Pelas mesas vizinhas malta conversa ou estuda; as vozes do Camilo e do João Luís sobressaem aqui na mesa atrás de mim. (MCG - 1973.11.16

Levanto os olhos e vejo muitos magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos, espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira-me" que haverá dentro em breve mais um contingente para a guerra em África. Alguns escrevem, curvados sobre o papel, a caneta firme na mão, como quem não está habituado a frequentes escrituras. Parecem rapazes muito novinhos; uns conversam, irrequietamente, outros têm um ar absorto, ausente. 

 
O barulho invade-me e cansa-me. Há pouco, dei de repente com um silêncio gradual, profundo. Levantei os olhos do papel e era um magote de gente à volta duma mesa, em pé. Um silêncio em crescendo gradual. Gente levantando-se, esticando o pescoço. Continuo a escrever. Alguém se deve ter sentido mal, mas o meu curso de primeiros socorros já tem oito anos. Um homem sai do meio do magote, os seus lábios mexem-se e leio "Desculpe-me" a mão passada pela testa como quem tem suores ou tonturas. Sai pela porta giratória (há pouco atrás de mim) e perde-se na noite das arcadas. (MCG - 1973.11.26)

O chão do café está um autêntico chiqueiro. Juncado de papéis, beatas e fósforos. E terra. (MCG - 1973.11.27 A)

Comigo, aqui na mesa encarnada do Arcada, após o jantar, a minha mãe e o Jorge, que trabalha como ajudante de carpinteiro, vencendo uma jorna de 70 $ 00. Em Setúbal ganharia 120 $ 00, mas os pais prendem no aqui no burgo [Évora] (...) O Camilo e o Carlos não apareceram por aqui. O Jorge está aqui com uma conversa muito adulta, apesar dos seus dezasseis anos. Ele agora está atrapalhado. Por causa da minha mãe passou a tratar me por "senhor Victor" e por "vocemecê" [abandonando o "Victor" e o "tu"] (...) Perguntei ao Jorge se queria escrever qualquer coisa [para ti, nesta carta], mas ele não quer, pois diz que parece mal a letra dele ao pé da minha de doutor.

1974 
(... ) E então, que me dizes ao aumento do preço do petróleo e seus derivados? (Lá para Abril deve haver mais. Olarilas!). A velhota dos jornais ali às portas do Arcada já desabafou comigo esta manhã: não haver um raio que os partisse! Há 10 dias encomendara uma garrafa de gás; está cozinhando a lenha. Que só na 3ª feira. "Os patifes, os espertalhões, já sabiam disto e obrigam-me a pagar o gás mais caro!" Como dizia o Carmelo, muito solene e sisudo na sua pose à mesa do café: "Isto está cada vez pior!" (MCG - 1974.01.03)

O sol tenta romper o cinzento carregado de chuva, mas em vão. Acordei hoje ao som de catadupas de água [à tarde o sol descobriu e o céu azulou]. Quase um dilúvio que encherá ali a barragem do Divor, livrando-nos da água sabendo a peixe. Já não era sem tempo. Chegámos pouco antes das 22 horas. No Arcada o João [Garcia], a Filomena, o Camilo, o Zé Pinto, o Ribeiro, o "Chinês" e o irmão cantavam em coro desde as cantiguinhas da primária ("Ó Rosa, arredonda a saia", "Tia Anica de Loulé"...) às excursionistas ("Santa Catarina", "Rapsódia Portuguesa"...) passando por cânticos gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da Beira Baixa. Enfim, uma grande audição, no café cheio e entretido com outros assuntos. (MCG - 1974.02.11)

Vim até aqui ao Arcada, muito barulhento. Está um dia bonito, cheio de sol.  Évora está cheia de miúdas, aos bandos. (MCG - 1974.03.31)

É segunda-feira em Évora. o Arcada vozento e cheio. Circundo o olhar e não reconheço a maior parte das pessoas, que falam com grandes movimentos das mãos e do corpo - alguns - ou lêem o jornal: "A Bola" ou "O Século” Está um dia luminoso e soalheiro, este ano sem desfiles militares. Jovens esquerdistas cá do burgo pretendiam organizar um comício anti-colonialista mas parece-me que ficou tudo em águas de bacalhau   (MCG - 1974.06.10)

Passei pelo café onde encontrei o João Luís, a Filomena, o Marçal. Fiquei contente por vê-los mas já não é como antigamente. É como um fósforo que logo se apaga. (...) A Filomena manda cumprimentos e isso faz-me lembrar que o mesmo fizeram o Manuel Gonçalves (cada vez mais louco) e a mulher do Queiroga (reaccionária em questões de namoros)

Évora é uma cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6 anos) fazem-me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de imaginação. É um encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se pelas paredes, um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita estagnação. (MCG - 1974.11.27)


Café Portugal

1972
Dia de S. Pedro: uma pequena pausa na leitura contrariada do cooperativismo agrícola, capítulo da Sociologia Rural, parte ínfima da matéria de Sociologia II ... Estou envolto no vozear barulhento neste fim de tarde, o ruído contínuo da máquina de café e da louça na cozinha, o barulho dos carros ali na rua. Seguramente um contraste com a Salvada, silenciosa nos seus ruídos campesinos, que o Pe. [Augusto] Silva tão literáriamente descreve na sebenta, a propósito do meio físico rural: "O citadino que chega ao campo é ordinariamente surpreendido pelo silêncio que aí reina ou pelos ruídos novos que ouve (rumorejar das folhas, os gritos dos animais, o canto das aves, etc.) Tem a impressão de respirar mais à vontade ou, ao contrário, de ser surpreendido pelo vento, crestado pelo ardor do sol."Enfim, o rapaz Silva saiu-me um "poeta". Esqueceu-se foi de falar no maravilhoso céu estrelado [que vi em Beringel, estirado no terraço duma casa que foi do Marquês de Minas] (..) [Entretanto] o ruído diminuiu, sinal de que se aproxima a hora de jantar.(MCG - 1972.06.30)

1973
A tarde de hoje tem estado verdadeiramente tempestuosa: vento ciclónico e chuva a cântaros. É um prazer andar pelas ruas com o vento a bater na cara e o cabelo revolto. Mas desde há uns largos momentos que me encontro no abrigo que é o café Portugal - hoje é 3ª feira e o Arcada está poluído e barulhento. O vidro da montra, defronte do qual me sentei, está embaciado, como se fosse nevoeiro, e as pessoas que passam, correndo ou vergadas sob os guarda‑chuvas abertos são sombras fantasmagóricas, como as luzes do outro lado da rua. Na mesa ao lado o Camilo escreve. Deve ser o 3º testamento, nesta tarde. (...) . (MCG - 1973.01.16)

Aqui estou no  café, hoje no Portugal. São dez da manhã. (...) O empregado acabou de pôr‑me aqui a sandes de fiambre e o galão. Já não posso ver o pão seco com manteiga mais o copo de leite em casa da D. Vitória. Nem o frango de aviário ou o bife (!) com arroz e batatas fritas ou as batatas fritas com fiambre e ovo. Que falta de imaginação, quanto mais não seja na apresentação. Claro que também já deito pelos olhos sandes de fiambre, abomináveis pregos no pão, galões claros, copos de leite frio.

O café está quase vazio, com um velhote aqui e além lendo o jornal ou rapazes estudando. Para lá das amplas montras passam pessoas, umas lentas, outras apressadas, umas sozinhas, outras conversando, olhando em frente ou de olhos fitos no chão. (MCG - 1973.06.28 A)

Isto é que hoje foi um DIA!... Uma trovoada mesmo por cima da cidade: relâmpago, trovão e corte momentâneo e breve da electricidade eram simultâneos, iluminando e escurecendo o "Portugal". Então e os aguaceiros? Vá lá, que o céu está a descobrir. (MCG - 1973.07.10)


Café Alentejo

1973
Chegou agora o Guerreiro, mas vai lendo os vespertinos para se pôr em dia. Assisti ontem, como não podia deixar de ser, ao discurso do Marcelo Caetano sobre o Ultramar Português, na sequência dos incidentes verificados em Lisboa na Capela do Rato, após a atitude tomada por um grupo de católicos - chamados progressistas - sobre a paz - e as consequências da guerra colonial. (...) Pois o discurso do 1º Ministro foi atentamente escutado pela audiência ali do Café Alentejo onde vejo o pouco que me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente. Um discurso notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e factos, pela sua poesia ("Que bom poder ser moralista...", faz-me lembrar um dos poemas dum dos heterónimos do Fernando Pessoa, pela deturpação dos factos e pela demagogia. Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece um facto que o Governo Português procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)

Cervejaria A Nau

1973
E eu, que até já estava a habituar-me ao sossego dumas férias em Évora: levantar, uma volta pela cidade com passagem pelo [apartado] 65, umas leituras de estudo, almoço, uma ida até à Nau [na parte nova da cidade], mais modernizada que o Arcada e parecendo uma cervejaria em Luanda, pelas casas, pelas ruas desafogadas, pelos rapazes e raparigas menos "cinzentos" que os de cá de cima, mais umas leituras e uns inquéritos - o cinema é que está mau porque não tem corrido nada de jeito. (MCG - (1973.04.12)

Café Parque

1973
Na pequena salinha do café do senhor Gonçalves (é outro que não o da Raymond Street) alguns clientes assistem à televisão ali por cima do balcão: o Jorge Alves apresenta o programa da próxima semana. O [Emídio] Guerreira queixa‑se que a sopa está quente (...). Comecei hoje a comer aqui neste café, junto ao jardim infantil, entre a Praça de Touros e o Rossio [de S. Brás]. O almoço estava saboroso. Esperemos que assim continue. Ali numa mesa ao lado um grupo de jovens vê uma colecção de fotografias pornográficas, que de vez em quando mostram a outros noutra mesa, cruzando o meu campo de visão. Entretanto a TV transmite um documentário sobre a guerra israelo-árabe, prendendo a atenção dos clientes. (...) Na televisão sereias soam numa cidade síria, sobrevoada por aviões israelitas que a bombardeiam. Escombros e feridos enchem o ecrã. (MCG - 1973.11.21)

São 20:30; aqui estou [em Évora] no café Parque, um bocadinho contigo, a televisão trabalhando e homens ao balcão conversando e bebendo a bica. Ali a minha mãe faz as contas com a sra.D. Alice [Quaresma], das refeições na messe [dos oficiais]. Estava eu aqui muito bem acabando o meu jantar com o João Luís Garcia e o Emídio Guerreiro quando elas irromperam por aqui adentro. A Maria Antónia - penso que é o nome da cozinheira - muito delicada e sorridente, "recebe as ordens". Sou levado a concluir que tem qualquer preconceito contra os homens, pois nunca lhe ouvimos nem saudação ou vislumbrámos um sorriso. (MCG - 1973.12.04)



[1] -José Carlos Cachatra (1933 / 1974) nasceu em Borba mas acabou por fixar-se em Évora, onde foi professor depois de abandonar a carreira de piloto-aviador na Força Aérea Portuguesa. Havia quadros dele de que eu gostava, doutros não. Mas as duas ou três dezenas de escudos que cada um custava era muito para a minha bolsa de estudante. Sobre este pintor ver “CACHATRA EM S. VICENTE” (https://mentcapto.blogspot.com/2015/06/248-cachatra-em-s-vicente.html ), por Humberto Baião, e “José Cachatra (1933-1974) -- O pintor alentejano, natural de Borba”

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)