Café Arcada
Évora - Café
Arcada – interior
Eis aqui o mítico "Café Arcada".
Não se vê a porta giratória nem a tabacaria, à entrada, à esquerda. Fora, nas
arcadas, ficava a banca da velhota dos jornais. Na foto, dentro e à direita, o
balcão da pastelaria. Ao fundo, não me lembro se à direita, se à esquerda,
sobre-elevada, a barbearia. Descendo as escadas, à esquerda, o restaurante e os
WC, estes com velhote/a que viviam das gorjetas.
Penso que naqueles tempos os empregados de café - como os taxistas - só viviam
das gorjetas. Na foto não se vê o senhor Jaime, o engraxador, que surge nos
meus escritos tal como a vendedora dos jornais. Ao fundo, subindo as escadas,
desembocava-se na estreita rua da Alcarcova de Cima, que liga a Praça do
Sertório à antiga rua da Selaria (actual 5 de Outubro). Na foto não se veêm as
enormes ventoinhas no tecto, que nada refrescavam no verão. (2014.12.16)
1969
Encontro-me no vozear barulhento
do Arcada, onde a porta gira continuamente. "Adeus oh escriturário!" As
primeiras e únicas palavras que alguém me dirige, além do "obrigado" do
criado, perdão, do empregado, quando lhe paguei o garoto claro e lhe dei cinco
tostões [1969]. Mas as palavras do [Jacinto] Morte passaram como a chuva
escorrendo pela minha gabardina branco sujo, como o [António] Campos, que diz
poesia muito bem e que esteve em Luanda. A cadeira defronte a mim continua
vazia, apenas ocupada com o "chamberlain" [guarda-chuva]
e a gabardina. ( ) (POE - 1969.03.16)
1971
O ar abafado, a vozearia
imperceptível, mas não inaudível, enchem o café Arcada, para onde vim estudar
(...) É um domingo indefinido, um começo de tarde. (...) O café está cheio, na
sua grande maioria homens na casa dos quarenta, que cavaqueiam. Logo, a meio da
tarde, a clientela será diferente: os homens trarão as esposas e a prole. Nos
outros dias apenas as [mulheres] mais "evoluídas" aqui
virão. Mas são já muitas mais do que antigamente, se a memória me não atraiçoa.
(...) Olho à minha volta e vejo malta conhecida: além, o Morte que me acena,
como o Calisto, que há muito não via. O namorado da Gabriela discute
acaloradamente e o senhor D. Alexandre de Lencastre conversa com dois amigos
(sê-lo-ão?), que falam também com a cabeça e as mãos. Aqui, à minha esquerda,
está o velhote pequenitates que anda à Charlot; costuma pôr uma flor no copo de
água que normalmente acompanha a bica, fala em verso - os dois últimos primam
quase sempre pela falta de rima e métrica - e oferece moedas da sua colecção às
personalidades importantes que passam por Évora e às caras bonitas. Fala com
toda a gente e não sei se falará com alguém. Quando regressei de Luanda reparou
que eu tinha rapado a barba... largos meses depois do acto solene que me tornou
irreconhecível ao espelho, provocando-me, durante alguns dias, ataques de
hilaridade frente àquela face rejuvenescida e francamente risonha, sem o
sorriso voltaireano que dizem ser o meu - irónico e trocista -
de que muitas vezes me apercebo mas não contenho, mesmo nos momentos mais
solenes e sérios, de gravidade de circunstância. (...) O ar está [agora]
pesado; olho à minha volta e há clareiras na humanidade que me cercava. O relógio,
sobre a mesa, diz-me faltarem quinze para a uma. Horas de ir até lá fora,
apanhar um pouco de ar antes de regressar a casa para o almoço (NSF -
1971.01.31)
1972
Abraça por mim a malta da mesa do
café Arcada, companheiros das horas vazias. Como estas no Porto, aguardando os
exames de Fevereiro. Um abraço especial para a Guida [Morgado] e para a "terrorista" que
é a Zeca. ( ) (Lídia - 1972.01.01)


O café é um mar de gente
barulhentamente conversadora. As ventoinhas giram, mas nem por isso o ar está
mais fresco. Évora civiliza-se: conto cerca de dezoito elementos do sexo
feminino aqui no Arcada (minha pátria em terras alentejanas). O mundo caminha
para a perdição, diriam os "moralistas" de porta
para fora! (MCG - 1972.07.24)
Ouço o Zeca Afonso e daqui a
pouco vou até ao Arcada, dar dois dedos de conversa ao Camilo, lanchar a sandes
de fiambre, galão claro e iogurte habituais, e dar uma vista de olhos pelos
jornais da tarde. (MCG - 1972.09.22)
O Arcada é um mar de gente em burburinho,
uns lendo, outros comendo, outros escrevendo ou preenchendo sonhos de Totobola,
outros conversando com a língua e os dentes e os lábios e as mãos quando não
com o corpo inteiro. Do outro lado, além à minha esquerda, um homem está
sentado tirando dum saco de plástico algo cujo conteúdo lhe enche as mãos:
talvez moedas. Insólito, a seus pés, uma enorme e brilhante bacia de cobre
amarelado. O homem levanta-se - tem uma pasta de cabedal quase do seu tamanho -
pega na bacia e encaminha-se para a porta, por onde entra e sai muita gente,
com ar lento e vagaroso de quem nada tem para fazer. Lembro-me de há quatro
anos - ou mesmo há dois - e há muito mais mulheres e raparigas - algumas bem
giras por estas mesas. Évora "civiliza-se". Só a minha
hospedeira continua com as suas concepções retrógradas de outros tempos e
outras eras, que continuam [no fundo] a ser as de Évora. À minha direita dois
velhotes conversam: um deles conta qualquer episódio relacionado com a sua
estadia na Grande Guerra de 14/18. Olho à minha volta e o café está mais vazio;
não encontro o Camilo, que pela segunda vez passou há pouco além no corredor
central. Deve estar em dia não. Mais velhotes sentam-se ao lado da minha,
iniciando amena cavaqueira. Agora reparo que esta é a mesa deles. Adeus,
estudo. Um deles diz que os gajos da situação são os que mais maldizem o
Marcelo [Caetano] e os que mais o homenageiam. (MCG - 1972.09.28)
Estava eu para aqui alinhavando estas linhas (...) quando o Carlos me entrou pelo quarto dentro, com um "Ah! Estou muito cansado. Imagina lá que andei com o Camilo a ver monumentos; pela milésima vez fui ao Museu e à Sé". Sabes, por causa do Camilo andar na fase cultural! ( O menino agora anda a estudar latim, não conseguiu convencer qualquer de nós - eu e o Carlos - a acompanhá-lo em tão profundos estudos, mas nem por isso consegui escapar às longas dissertações ali à mesa do Arcada, especialmente quando descobriu um interlocutor: o Régua, que também estudou latim! (MCG - 1972.10.07)
Estava eu para aqui alinhavando estas linhas (...) quando o Carlos me entrou pelo quarto dentro, com um "Ah! Estou muito cansado. Imagina lá que andei com o Camilo a ver monumentos; pela milésima vez fui ao Museu e à Sé". Sabes, por causa do Camilo andar na fase cultural! ( O menino agora anda a estudar latim, não conseguiu convencer qualquer de nós - eu e o Carlos - a acompanhá-lo em tão profundos estudos, mas nem por isso consegui escapar às longas dissertações ali à mesa do Arcada, especialmente quando descobriu um interlocutor: o Régua, que também estudou latim! (MCG - 1972.10.07)

O Arcada hoje está impossível de
poluição, por causa dos alentejanos que hoje desceram ao povoado para
discutirem o preço do gado e o mais que não sei nem me interessa. (MCG -
1972.12.26)
1973
Chove. Está cinzento. A chuva faz
barulho no pátio. Amanhã é 3ª feira, o meu dia negro, pois a cidade - e o café
– [no Dia de S. Porco] enchem-se de alentejanos corpulentos,
solidamente parados no meio do caminho, de chapéu na cabeça e fatos escuros,
como se nada mais existisse no mundo senão as suas irritantes pessoas! Embora
cheia de gente, a cidade, para mim, está despovoada. Quando não estou na minha
torre (“cela”, como diz a D. Ilda)
ando por aí, pelo café, pelas livrarias, pelo Instituto [ISESE], quase sempre
(fingindo-me) muito atarefado. (NID - 1973 ?)
Vou até ao café lanchar e poluir
um pouco os pulmões. (MCG - 1973.01.24)
Quanto a mim, vou‑me embora p'rá reunião, com passagem pelo Café Arcada,
cheio de fumo e parecendo que nem mar de gente quando estamos no cimo das
escadas. (MCG - 1973.03.14)
Olho para os meus colegas e reparo que os tipos de Lisboa ainda não estão
de regresso. O filho - ou um dos filhos - do António Champalimaud - aluno do 1º ano, era um pratinho às 2.as
feiras, atrás do Veladas, alto, gordo, de cabelo alourado encarapinhado, para
este lhe tirar a falta. Uma cena perfeitamente risível. (MCG - 1973.04.02)
O dia hoje está maravilhoso e eu já me "averanei" no trajar. Évora está cheia de miúdas,
magotes delas, de fora, novinhas, que enchem as ruas e o Arcada, onde consomem
hectolitros de laranjadas e colas. (MCG - 1973.04.06)
O Arcada é um zum-zum de vozes e
louça e máquinas e cadeiras atiradas. Na mesa ao lado o Camilo delicia-se com
o "Ricardo III" do Shakespeare. De vez em quando
comunica-me um ou outro dos diálogos da peça. (MCG - 1973.06.08)
(...) Num ápice o Arcada enche-se. Terminaram as condecorações, os
toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos
forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Além o senhor
Jaime abre e fecha os braços, como asas, enquanto vai dando lustro aos sapatos
de um cliente. Passam empregados com as bandejas cheias de chávenas, copos e
comes. O casalinho de namorados bebe chá com torradas. O mesmo que um casal já
caminhando para a meia idade aqui à esquerda, na mesa ao lado. Ele já acabou de
ler o Diário de Notícias (fraco gosto) e ela dá-lhe uma torradinha.
(...) O marinheiro levanta-se e parte. Afinal a bengala não é dele mas do amigo
que o acompanha. O senhor Tenente e o senhor Coronel cumprimentam-se, batem a
pala e apertam as mãos, enquanto as respectivas esposas se beijam. Na
carequinha do senhor Coronel o vinco na pele assinala a presença do boné, agora
sobre a cadeira. Entram pessoas de luto e há cumprimentos de mesa a mesa.
Precisava duma câmara de filmar. Sobre a minha mesa, "O
Século" (sabe) que dentro de dias será descerrada em Luanda uma
estátua ao Marcelo [Caetano]. Para além d'O Século a
lapiseira, um livro ("A Sociedade de Consumo") e o
porta moedas (agora é incómodo trazê-lo no bolso). (...) O Jorge apareceu ontem
pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que
conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de
servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as
palavras que lho digam. ( ) ( MCG - 1973.06.10)
De manhã fui até ao Jardim
[Público] e os meus passos levaram-me até ao campo de minigolfe. (...) Apesar
da minha propaganda ainda não arranjei ninguém para jogar comigo. O Carlos e o
Camilo só estão bem na poluição do Arcada. Quem lhes tirar a fumarada tira-lhes
a vida e o ser!!!

Este barulho do café cansa‑me e
dispersa‑me. Estou‑lhe demasiado sensível. O [Café] Portugal já tem
esplanada no passeio, mas o Betinho, dono do Arcada, deve andar em compressão
de despesas e o mar de gente daqui não se espraia pelo passeio. (...)
Entretanto mudei de mesa, estou agora na de tampo azul. O Chico Bellizzi sentou‑se
aqui, tomou uma limonada e agora aprecia o panorama em redor, enquanto assobia.
(MCG - 1973.07.08)
Greve dos Bancários em Évora? Nem cheiro dela! "Amanda‑se"
cada "boca" ali naquelas mesas do café que é impressionante. (MCG -
1973.07.16)
A mesa do café não é propriamente um local
de recolhimento e, em sentando‑se o primeiro, logo chegam os outros. Resultado: muitas vezes
os trabalhos têm de ser interrompidos. (MCG - 1973.11.12)
Ali ao
lado o Carmelo submete o Carlos a testes de inteligência. Pelas mesas vizinhas malta conversa ou
estuda; as vozes do Camilo e do João Luís sobressaem aqui na mesa atrás de mim.
(MCG - 1973.11.16
Levanto os olhos e vejo muitos
magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos,
espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira-me" que
haverá dentro em breve mais um contingente para a guerra em África. Alguns
escrevem, curvados sobre o papel, a caneta firme na mão, como quem não está
habituado a frequentes escrituras. Parecem rapazes muito novinhos; uns
conversam, irrequietamente, outros têm um ar absorto, ausente.

O chão do café está um autêntico
chiqueiro. Juncado de papéis, beatas e fósforos. E terra. (MCG - 1973.11.27 A)
Comigo, aqui na mesa encarnada do
Arcada, após o jantar, a minha mãe e o Jorge, que trabalha como ajudante de
carpinteiro, vencendo uma jorna de 70 $ 00. Em Setúbal ganharia 120 $ 00, mas
os pais prendem no aqui no burgo [Évora] (...) O Camilo e o Carlos não
apareceram por aqui. O Jorge está aqui com uma conversa muito adulta, apesar
dos seus dezasseis anos. Ele agora está atrapalhado. Por causa da minha mãe
passou a tratar me por "senhor Victor" e por "vocemecê" [abandonando
o "Victor" e o "tu"] (...)
Perguntei ao Jorge se queria escrever qualquer coisa [para ti, nesta carta],
mas ele não quer, pois diz que parece mal a letra dele ao pé da minha de
doutor.
1974
(... ) E então, que me dizes ao
aumento do preço do petróleo e seus derivados? (Lá para Abril deve haver mais.
Olarilas!). A velhota dos jornais ali às portas do Arcada já desabafou comigo
esta manhã: não haver um raio que os partisse! Há 10 dias encomendara uma
garrafa de gás; está cozinhando a lenha. Que só na 3ª feira. "Os
patifes, os espertalhões, já sabiam disto e obrigam-me a pagar o gás mais
caro!" Como dizia o Carmelo, muito solene e sisudo na sua pose à
mesa do café: "Isto está cada vez pior!" (MCG -
1974.01.03)
O sol tenta romper o cinzento
carregado de chuva, mas em vão. Acordei hoje ao som de catadupas de água [à
tarde o sol descobriu e o céu azulou]. Quase um dilúvio que encherá ali a barragem
do Divor, livrando-nos da água sabendo a peixe. Já não era sem tempo. Chegámos
pouco antes das 22 horas. No Arcada o João [Garcia], a Filomena, o Camilo, o Zé
Pinto, o Ribeiro, o "Chinês" e o irmão cantavam em
coro desde as cantiguinhas da primária ("Ó Rosa, arredonda a
saia", "Tia Anica de Loulé"...) às excursionistas ("Santa
Catarina", "Rapsódia Portuguesa"...) passando por cânticos
gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da Beira Baixa. Enfim, uma
grande audição, no café cheio e entretido com outros assuntos. (MCG -
1974.02.11)
Vim até aqui ao Arcada, muito
barulhento. Está um dia bonito, cheio de sol. Évora está cheia de miúdas,
aos bandos. (MCG - 1974.03.31)
É segunda-feira em Évora. o
Arcada vozento e cheio. Circundo o olhar e não reconheço a maior parte das
pessoas, que falam com grandes movimentos das mãos e do corpo - alguns - ou
lêem o jornal: "A Bola" ou "O Século”
Está um dia luminoso e soalheiro, este ano sem desfiles militares. Jovens
esquerdistas cá do burgo pretendiam organizar um comício anti-colonialista mas
parece-me que ficou tudo em águas de bacalhau (MCG - 1974.06.10)
Passei pelo café onde encontrei o João Luís, a Filomena, o Marçal. Fiquei contente por vê-los mas já não é como antigamente. É como um fósforo que logo se apaga. (...) A Filomena manda cumprimentos e isso faz-me lembrar que o mesmo fizeram o Manuel Gonçalves (cada vez mais louco) e a mulher do Queiroga (reaccionária em questões de namoros)
Évora é uma cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6 anos) fazem-me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de imaginação. É um encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se pelas paredes, um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita estagnação. (MCG - 1974.11.27)
Passei pelo café onde encontrei o João Luís, a Filomena, o Marçal. Fiquei contente por vê-los mas já não é como antigamente. É como um fósforo que logo se apaga. (...) A Filomena manda cumprimentos e isso faz-me lembrar que o mesmo fizeram o Manuel Gonçalves (cada vez mais louco) e a mulher do Queiroga (reaccionária em questões de namoros)
Évora é uma cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6 anos) fazem-me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de imaginação. É um encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se pelas paredes, um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita estagnação. (MCG - 1974.11.27)
Café Portugal
1972
Dia de S. Pedro: uma pequena
pausa na leitura contrariada do cooperativismo agrícola, capítulo da Sociologia
Rural, parte ínfima da matéria de Sociologia II ... Estou envolto no vozear
barulhento neste fim de tarde, o ruído contínuo da máquina de café e da louça
na cozinha, o barulho dos carros ali na rua. Seguramente um contraste com a
Salvada, silenciosa nos seus ruídos campesinos, que o Pe. [Augusto] Silva tão
literáriamente descreve na sebenta, a propósito do meio físico rural: "O
citadino que chega ao campo é ordinariamente surpreendido pelo silêncio que aí
reina ou pelos ruídos novos que ouve (rumorejar das folhas, os gritos dos
animais, o canto das aves, etc.) Tem a impressão de respirar mais à vontade ou,
ao contrário, de ser surpreendido pelo vento, crestado pelo ardor do sol."Enfim,
o rapaz Silva saiu-me um "poeta". Esqueceu-se foi de
falar no maravilhoso céu estrelado [que vi em Beringel, estirado no terraço
duma casa que foi do Marquês de Minas] (..) [Entretanto] o ruído diminuiu,
sinal de que se aproxima a hora de jantar.(MCG - 1972.06.30)
1973
A tarde de hoje tem estado
verdadeiramente tempestuosa: vento ciclónico e chuva a cântaros. É um prazer
andar pelas ruas com o vento a bater na cara e o cabelo revolto. Mas desde há
uns largos momentos que me encontro no abrigo que é o café Portugal - hoje é 3ª
feira e o Arcada está poluído e barulhento. O vidro da montra, defronte do qual
me sentei, está embaciado, como se fosse nevoeiro, e as pessoas que passam,
correndo ou vergadas sob os guarda‑chuvas abertos são sombras fantasmagóricas,
como as luzes do outro lado da rua. Na mesa ao lado o Camilo escreve. Deve ser
o 3º testamento, nesta tarde. (...) . (MCG - 1973.01.16)
Aqui estou no café, hoje no
Portugal. São dez da manhã. (...) O empregado acabou de pôr‑me aqui a sandes de
fiambre e o galão. Já não posso ver o pão seco com manteiga mais o copo de leite em casa da D.
Vitória. Nem o frango de aviário ou o bife (!) com arroz e batatas fritas ou as
batatas fritas com fiambre e ovo. Que falta de imaginação, quanto mais não seja
na apresentação. Claro que também já deito pelos olhos sandes de fiambre,
abomináveis pregos no pão, galões claros, copos de leite frio.
O café está quase vazio, com um
velhote aqui e além lendo o jornal ou rapazes estudando. Para lá das amplas
montras passam pessoas, umas lentas, outras apressadas, umas sozinhas, outras
conversando, olhando em frente ou de olhos fitos no chão. (MCG - 1973.06.28 A)
Isto é que hoje foi um DIA!... Uma trovoada mesmo por cima da
cidade: relâmpago, trovão e corte momentâneo e breve da electricidade eram
simultâneos, iluminando e escurecendo o "Portugal". Então e os aguaceiros? Vá lá, que o céu
está a descobrir. (MCG - 1973.07.10)
Café Alentejo
1973
Chegou agora o Guerreiro, mas vai
lendo os vespertinos para se pôr em dia. Assisti ontem, como não podia deixar
de ser, ao discurso do Marcelo Caetano
sobre o Ultramar Português, na sequência dos incidentes verificados em Lisboa
na Capela do Rato, após a atitude
tomada por um grupo de católicos - chamados progressistas - sobre a paz - e as
consequências da guerra colonial. (...) Pois o discurso do 1º Ministro foi
atentamente escutado pela audiência ali do Café Alentejo onde vejo o pouco que
me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente. Um discurso
notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e
factos, pela sua poesia ("Que bom
poder ser moralista...", faz-me lembrar um dos poemas dum dos
heterónimos do Fernando Pessoa, pela deturpação dos factos e pela demagogia.
Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece um facto que o Governo Português
procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)
Cervejaria A Nau
1973
E eu, que até já estava a
habituar-me ao sossego dumas férias em Évora: levantar, uma volta pela cidade
com passagem pelo [apartado] 65, umas leituras de estudo, almoço, uma ida até à
Nau [na parte nova da cidade], mais
modernizada que o Arcada e parecendo uma cervejaria em Luanda, pelas casas,
pelas ruas desafogadas, pelos rapazes e raparigas menos "cinzentos" que os de cá de cima, mais umas leituras e
uns inquéritos - o cinema é que está mau porque não tem corrido nada de jeito. (MCG - (1973.04.12)
Café Parque
1973
Na pequena salinha do café
do senhor Gonçalves (é outro que não o da Raymond Street) alguns clientes
assistem à televisão ali por cima do balcão: o Jorge Alves apresenta o programa
da próxima semana. O [Emídio] Guerreira queixa‑se que a sopa está quente (...).
Comecei hoje a comer aqui neste café, junto ao jardim infantil, entre a Praça
de Touros e o Rossio [de S. Brás]. O almoço estava saboroso. Esperemos que
assim continue. Ali numa mesa ao lado um grupo de jovens vê uma colecção de
fotografias pornográficas, que de vez em quando mostram a outros noutra mesa,
cruzando o meu campo de visão. Entretanto a TV transmite um documentário sobre
a guerra israelo-árabe, prendendo a atenção dos clientes. (...) Na televisão
sereias soam numa cidade síria, sobrevoada por aviões israelitas que a
bombardeiam. Escombros e feridos enchem o ecrã. (MCG - 1973.11.21)
São 20:30; aqui estou [em Évora]
no café Parque, um bocadinho contigo, a televisão trabalhando e homens ao
balcão conversando e bebendo a bica. Ali a minha mãe faz as contas com a sra.D.
Alice [Quaresma], das refeições na messe [dos oficiais]. Estava eu aqui muito
bem acabando o meu jantar com o João Luís Garcia e o Emídio Guerreiro quando
elas irromperam por aqui adentro. A Maria Antónia - penso que é o nome da
cozinheira - muito delicada e sorridente, "recebe
as ordens". Sou levado a concluir que tem qualquer preconceito contra
os homens, pois nunca lhe ouvimos nem saudação ou vislumbrámos um sorriso. (MCG
- 1973.12.04)
[1]
-José Carlos Cachatra (1933 / 1974) nasceu em Borba mas acabou por fixar-se em
Évora, onde foi professor depois de abandonar a carreira de piloto-aviador na Força
Aérea Portuguesa. Havia quadros dele de que eu gostava, doutros não. Mas as
duas ou três dezenas de escudos que cada um custava era muito para a minha
bolsa de estudante. Sobre este pintor ver “CACHATRA EM S. VICENTE” (https://mentcapto.blogspot.com/2015/06/248-cachatra-em-s-vicente.html
), por Humberto Baião, e “José Cachatra (1933-1974) -- O pintor alentejano,
natural de Borba”
(https://sites.google.com/site/amigosterrasborba/1-alentejo-1/12-pintura-1/12--jose-cachatra?tmpl=%2Fsystem%2Fapp%2Ftemplates%2Fprint%2F&showPrintDialog=1
), onde se encontram reproduções de quadros seus.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)