segunda-feira, 3 de agosto de 2020

As sequelas da guerra colonial

* Victor Nogueira

1.1. A realidade não é a preto e branco como o Domingos Lopes escreve. Como se aquele tivesse sido o comportamento de todos os soldados e oficiais, como se entre estes não tivesse havido quem não pactuou com tais processos e os contrariou, como se o Movimento dos Capitães não tivesse surgido na sequência das contradições entre os corporativos e voluntários oficiais do quadro, profissionais da guerra da guerra "cansados", muitos dos quais queriam manter os seus privilégios de casta, e os oficiais milicianos, compulsivamente incorporados na sua maioria, em cujos ombros e a partir de certa altura passou a pesar o esforço da guerra, como se não tivesse havido um Marcelino da Mata, os "Flechas" e outras tropas "negras" e movimentos ditos de libertação colaboracionistas com as Forças Armadas Portuguesas e a PIDE.

Para reprimir as greves dos operários da cintura industrial de Lisboa ou dos assalariados rurais alentejanos, nunca o Governo de Salazar se atreveria a reprimi-las bombardeando com napalm e metralhando indiscriminadamente as populações do Barreiro ou das aldeias do Alentejo. Mas foi isto o que sucedeu nas colónias, designadamente nas colónias africanas.

2.2. O 15 de Março em Angola apanhou muitos dos portugueses de surpresa, horrorizados com a barbárie do levantamento dirigido pela UPA de Holden Roberto, apoiado pelos EUA. Desconhecia-se na altura que o Governo dos EUA, de John Kennedy, havia avisado o Governo de Salazar da iminência do levantamento, sem que este tomasse quaisquer medidas. Desconhecia-se o bárbaro massacre da Baixa do Cassange, perpetrado semanas antes pela Força Aérea Portuguesa. Mas foi isso que as Forças Armadas fizeram na Baixa do Cassange, em Batepá, em Pindjiguiti, em Mueda, em Wiriamu ...

Ao fim de tantas décadas, livros e reportagens, é assombroso que alguns comentaristas on line se esqueçam ou ignorem a realidade da violência do trabalho “contratado” e o massacre da Baixa do Cassange, com uma área de 80 mil km2, pouco inferior à área de Portugal Continental, ocorrido em Angola antes do 15 de Março, ocorrido em Janeiro de 1961, na sequência da greve e revolta dos camponeses contra a Cotonang, contra as condições de vida e subsistência impostas às populações aborígenes, revolta e greve pacíficas esmagadas a napalm despejado sobre as aldeias ou "sanzalas", e metralhando os camponeses em fuga. Disto a “censura” não permitiu que se falasse na altura.

Que distingue a barbárie dos portugueses e da Força Aérea da barbárie da UPA, apoiada não por Moscovo mas pelos EUA?

2. 3 - As guerras deixam profundas sequelas, designadamente naqueles que desde o início não são treinados para matar, como sucede com as chamadas “Forças Especiais”, ditas de elite. Mas os Governos de Portugal, anteriores ou posteriores ao 25 de Abril, preocuparam-se com as vítimas do stress post traumático da guerra daqueles larguíssimos milhares que não foram treinados para matar?

É confrangedor que Domingos Lopes reduza a guerra colonial, resultante de profundas contradições socio-económicas e mantida com a censura e a manipulação das consciências da maioria dos camponeses e assalariados em Portugal contra os camponeses e assalariados das colónias, é surpreendente que Domingos Lopes, a transforme numa guerra de cruzada, racial, "brancos" dum lado, "negros" do outro.

2.4 - Para concluir, o título da peça jornalística é mistificador. "Portugal" não existe, mas existem aqueles que nesse território vivem, diferenciando-se conforme o grau de riqueza ou pobreza, as diversas classe ou estrato social a que pertencem ou com que se identificam, com valores éticos, religiosos, políticos mais ou menos profundamente antagónicos ou contraditórios, com diversificadas consciência social e política. Houve portugueses e militares que cometeram crimes de guerra ou contra a humanidade. Mas ao contrário do que o título insinua, não houve uma política genocida, que mandasse matar todos os "pretos", mas sim e apenas aqueles que, qualquer que fosse a cor da pele, "branca" ou "negra", apelidados de "terroristas" ou de "traidores", se opunham à política colonial do Estado Português.

Quanto às armas que por aí andam "escondidas", se e quando chegar a altura, sabe perfeitamente Domingos Lopes que o alvo não serão os "negros" nem os "brancos", que outros serão os critérios que determinarão a mira e o alvo.

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)