* Victor Nogueira
As crianças em évora
Fui há pouco ao cinema ver um filme de desenhos animados. "Asterix e Cleópatra", interessante mas inferior á banda desenhada. Foi um dia de festa para a petizada, nesta cidade [de Évora] onde raramente as crianças são lembradas. (NSF - 1970.05.17)
Breve história dum miúdo: o Jorge
Em 5 de Abril de 1971 escrevia eu: "Sábado fui com o Jorge ao cinema, ver um filme de desenhos animados com o Asterix. Pois bem, o miúdo pulava e ria-se, enfim, era um espectáculo. Gosto dele, só tenho pena ... que não estude.
Tem-me oferecido rebuçados, uma daquelas bolinhas de plástico que saltam muito e até me chegou a pagar o jornal ! Há dias apareceu-nos no café [Arcada] todo eufórico. Tinha ganho algum dinheiro e então comprou um cinto com uma espada de plástico, postais, maçãs e ... um copo. Enquanto não mostrou a espada a toda a malta sua conhecida não descansou. Queria também que aceitássemos as maçãs dele e os postais.
Quem não gosta da brincadeira é a D.Vitória [Prates, minha hospedeira na Rua do Raimundo] Um novo desenho existe no meu quarto, mas esse foi oferta dum outro miúdo, o Carlos . (MCG - 1971.04.05)
Nas minhas deambulações de hoje encontrei a Lídia e o Jorge. Este andava à procura de dez tostões para o cinema - eu fiz que não percebi a indirecta; informou me que esteve em Beja a trabalhar no circo e à minha observação sobre a sua magreza retorquiu "É da fome que passo." (e que não está em mim remediar) (MCG - 1972.02.23)
Podia falar te do Jorge, que agora anda todo bem vestido - fato cinzento com colete e gravata - , do seu amigo Carlos - que é moço de recados no Café Arcada e maça as pessoas com os seus préstimos (as gorjetas são a sua única remuneração).
Ou do Pedro, que esteve muitos anos no Brasil, que é um tipo expansivo e bom palrador, mas que fala com sotaque brazuca para impressionar (o Jorge desmascarou o no café, com um dos seus comentários de miúdo que não está ainda dentro de certos mecanismos sociais) (...) (MCG - 1972.11.06)
Ah! acabei por não ir ao cinema. À tarde o nosso amigo Jorge veio-cravar me dinheiro para o "Trinitá" (MCG - 1972.12 ?)
O Jorge apareceu ontem pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as palavras que lho digam. ( MCG - 1973.06.10)
Comigo, aqui na mesa encarnada do Arcada, após o jantar, a minha mãe e o Jorge, que trabalha como ajudante de carpinteiro, vencendo uma jorna de 70 $ 00. Em Setúbal ganharia 120 $ 00, mas os pais prendem no aqui no burgo [Évora] (...)
O Camilo e o Carlos Nunes da Ponte" não apareceram por aqui. O Jorge está aqui com uma conversa muito adulta, apesar dos seus dezasseis anos. Ele agora está atrapalhado. Por causa da minha mãe passou a tratar me por "Senhor Victor" e por "vocemecê" [abandonando o "Victor" e o "tu"] (...)
Perguntei ao Jorge se queria escrever qualquer coisa [para ti, nesta carta], mas ele não quer, pois diz que parece mal a letra dele ao pé da minha de doutor. () (MCG - 1973.12.06)
1 - Ao arrumar papelada, encontrei um texto que ele dactilografara na minha velha Olivetti Lettera 2000: a primeira parte é um conto, escrito com piada embora com muitos erros ortográficos. É demasiado longo para esta nota de rodapé. Na segunda parte escreveu: "1. - O senhore Vitor Nogeira 'e muito meu amigo e axo que ele tambem gosta de mim | eu pelo menos gosto dele | as coizas que eo gosto de fazera! | gosto de escrever a maquina | gosto de houvir discos | gosto de ler livros | 2. - (gosto muito dos meus pais foram eles que me quriaram;" Ainda hoje me comovo com este escrito, especialmente com a segunda parte.
O Orlando, sobrinho da D. Vitória
O Diogo Guerreiro fica cá em casa. O Diogo Fialho ainda não deu notícias. Comigo devemos ser os únicos hóspedes este ano, que a D.Vitória está cansada. O quarto do sr. Marquês [e que fora do Jorge Carvalheira] agora é sala de visitas e o que foi vosso [da Celeste, da mãe e da Bia Almeida, com escadas para o terraço] é agora do sr. Prates e do Orlando - sobrinho - que vem estudar para Évora. (MCG - 1972.09.22)
Isto aqui em casa são umas correrias escada acima, escada abaixo, que nem calculas. Sim, que o amigo Orlando anda alvoroçado com a escola e um mundo novo para ele, de que me não fala mas pressinto. Os cuidados com os livros, todos bem arranjadinhos, o ar tímido quando com ele falo! (...)
O sr. Prates já foi largando a bisca para um explicador ... À borla, pois então. Só que o coração já me caíra aos pés quando na véspera a D.Vitória me comunicara que a minha pensão aumentara de 200 $ 00 mensais, isto é, para 1600 $ 00. [Eu pagava mais porque avisara que tmava banho e mudava de roupa diaramente.
E quer em Évora quer em Lisboa as hospedeiras ao fim de algumas semanas diziam-me que tanto banho fazia mal à pele ao que lhes retorquia que eu avisara e que o gasto estava incluído na mensalidade, pondo fim às "reclamações"] (MCG - 1972.10.04)
O Orlando faz hoje anos. Deve haver festinha. Reprovou na Escola e anda ouvindo discursos por causa disso há tanto tempo que já estou enjoado(....) A Vicência faz exame depois de amanhã. (...)
[O Orlando] deu me alguns dos desenhos dele (que eu podia ficar com todos os que quisesse). Vai sendo altura de mudar a decoração do meu quarto. O rapazinho agora pediu me trabalho - não tem nada que fazer - de modo que desde sábado que me anda em arrumações aqui no quarto - ordenou me revistas, separou me jornais e amanhã vou comprar umas folhas de cartão para fazer cadernos para arquivar a papelada e revistas. (MCG - 1973.06.17 B)
Um Natal em Beja
Pois eu cheguei a Évora ontem à noite, cerca das 23:30, vindo de Beja, onde estive domingo e segunda, em casa dos tios do Camilo (1) e na companhia de mais dez adultos e umas catorze crianças, do recém nascido ao Pedro e à Teresa, os mais velhos com os seus treze anos. (2) Aquilo não era uma casa, era um quartel familiar ... que me "adoptou" por dois dias.
Por todas as salas não se viam senão miúdos. Domingo à tarde, horas antes da consoada, andava o Camilo ás voltas com a árvore de Natal e presépio, com a mania das perfeições e de as coisas serem como ele queria. Tenho a impressão que se não fosse o aparecimento da tia Emília, ou aquilo nem para o ano estaria pronto ou o tio Jacinto terminaria aquilo a grande velocidade, sem preocupações perfeccionistas. Sim, que afinal parecia me que o Camilo não queria nem deixava fazer, pedindo mas não aceitando as minhas sugestões.
Enfim ... Fosse eu romancista e estes dois dias teriam muito peso na minha renomeada. O mais interessante foi a tia freirinha, a irmã Maria, que se percebi bem saiu pela primeira vez em 24 anos de convento, e que tentava catequizar as crianças com umas prédicas tais que nem ouvidas! Ah!Ah!
Os miúdos é que se divertiam depois nos seus grupos, relatando e comentando as suas havidas conversas particulares, e que eu ouvi porque eles são desinibidos por educação - todos me tratavam por tu e por Victor, que é como eu gosto - e também porque não devo ter cara de polícia. Gosto de miúdos e acho que tenho um certo jeito para estar com eles.
Desta vez o João passou o tempo com o "Vitinhas", subindo lhe para o colo, fazendo lhe imensas perguntas ou mostrando os brinquedos e o modo como funcionavam, brinquedos que, na sua maioria, ao fim do 2º dia já andavam muito combalidos. Entretive me com um automóvel electrificado, com comando à distância, o que permitia manobrá-lo em todas as direcções. (MCG - 1972 NATAL)
1.- Em não poucos fins de semana eu, o Camilo e o Carlos Nunes da ponte marchávamos para Beringel
2 .- Estes tios do Camilo eram os Brito Lança - ele médico - e tinham uma casa em Beringel, a poucos quilómetros de Beja. Do terraço da casa da quinta avistei pela primeira vez o espectáculo deslumbrante que foi contemplar o céu coberto de estrelas, sem a interferências das luzes da cidade a que estava habituado e que as escondiam.
Uma boa vida
Ali duas velhotas discutem as vantagens de ser criada de servir: ganham bem, vestem os vestidos da senhora, não gastam nada. Uma vida de fidalgas. (MCG - 1974.12.10)
Contraponto - A vida das "fidalgas"
Temos [em casa da D. Vitória] uma criada nova, a Ricardina, míope e vestida de preto, com um ar submisso e tímido. O que não a impediu de pedir-me um casaco velho para o pai. Não, foi a resposta. () (MCG - 1973.03.30)
1 - Não percebo nem me lembro da razão desta minha secura, que hoje me incomoda ao lê-la.
[Os meus padrinhos em Lisboa] exigiam naturalmente que a criada Maria Guerreiro, vivendo no quarto de «arrumos» (1), estivesse de serviço permanente e desperta para recebê-los fosse a que horas regressassem de madrugada e que estivesse de manhã cedinho a pé para servir-nos o pequeno-almoço, na casa onde havia sempre um quarto para mim, aparecesse eu quando aparecesse. Por outro lado os negócios em Lisboa e de armamento em Luanda permitiam ao meu padrinho duplas virtudes e privados defeitos,.
.(1) - Este quarto de «arrumos» existia normalmente anexo à cozinha, quer nas vivendas de Alvalade ou dos andares das Avenidas Novas em Lisboa, quer nos «andores» então «finos» do Bairro do Liceu, em Setúbal. Apesar de tudo, sempre tinham melhores condições de habitabilidade vigiada que os tugúrios da «bucólica» aldeia de origem das «criadas», para todo o serviço ou não.
A Maria Guerreiro, tal como as «criadas» para todo o «serviço» permanente, tinha uma tarde de domingo de «folga» cada 15 dias. Na altura eu tinha 16 anos e estudava no Porto, mas quando vinha a Lisboa tinha sempre um quarto na casa dos meus padrinhos. Às vezes eu e a Matia, jovens, saíamos, passeávamos, conversávamos ou íamos ao cinema. Apenas como amigos e nunca como amantes, o que era um caso raro entre um «menino» e uma «criada».
Depois regressei a Luanda e durante anos escrevemo-nos com regularidade espaçada. Um dia, a correspondência cessou abruptamente, não porque ela tivesse morrido mas talvez por se ter «entregue» a algum magala. Nunca mais soube dela, embora anos depois uma das minhas tias a tenha encontrado numa rua de Lisboa e terem falado uma com a outra.
A miúda e a matrona
(...) Era um jardim geometricamente desconfortável, artificial, No coreto a banda tocava. Além, caridosamente, alguém partilhava com os "jardineantes" as goelas do transístor escancaradas. No banco, ao meu lado, uma matrona e uma gaiata conversam banalmente: "Puxa a mala um bocadinho mais para baixo. Isso! Assim! Para que te não vejam as pernas". E eu sorrio-me por entre a sisudez duma "Introdução à Vida Política". Pobres e ridículas gaiatas! Pobres e ridículas matronas! (1)
O miúdo e o carrocel
No mesmo jardim, era um miúdo esfarrapado, sujo, de rosto envelhecido. Dele aproxima-se do guarda, para cobrar o bilhete da entrada, mas o dinheiro não chega. No entanto, o velho, que já terá sido criança, deixa-lo entrar. O miúdo envelhecido corre, para, hesita! Os olhos sorriem no rosto sujo: balancé? carrocel? escorrega? ... ou avião? Não poder ele desdobrar-se! E assim, corre, sobe, escorrega - o mundo é dele. Agarra-lo, sobe, desliza, corre, sobe, desliza, sobe, desliza, corre, sobe, desliza, contorce-se ...
De repente alguém exclama: "MÃE, OLHA ESTE MATULÃO SUJO! VAI-TE EMBORA!" Então, as avózinhas contorcem os lábios num rictus de desprezo, os meninos apedrejam com a língua e crucificam com os lábios. Ele hesita. Baloiça, baloiça, baloiça! Roda, roda, roda, sobe, desliza, corre, sobe, tropeça, sobe, desliza, corre! contorce-se, baloiça, roda ... Olhos brilhantes cheios de felicidade! Um velho num corpo de criança, pequena para a roupa suja, esfarrapada!
As avózinhas contorcem os lábios num rictus de desprezo, os meninos, esses apedrejam com a língua e crucificam com os lábios. Velhas envelhecidas. Garotos moribundos. E uma criança num pequeno corpo de velho! (POE - 1969.02.24) (1)
1 - Do poema Cenas do Jardim, escrito em Évora em 1969.02.24
31 de Maio de 2012
Yolanda Botelho
Maravilhoso.Bj
· 9 ano(s)
Manela Pinto
muito bem "sr" Victor Nogueira adorei. ´´es nortenho ou alentejano ou as 2 coisas ahahhaha. obg beijinhos
· 9 ano(s)
Victor Barroso Nogueira
Senhor Nogueira, era o tratamento que em évora me dava quem por victor não me tratava, Manela Pinto E para os camaradas e amigos su apenas o "victor" ou o "victor nogueira" LOL. E não sou português, sou angolano com parentes do minho e trás os montes até ao alentejo. 😛
· 9 ano(s)
Manela Pinto
cidadao do mundo sr vitro como diziam os mais velhos no alentejo ha mais de 40 anos, ja tinha esquecido que es africano
· 9 ano(s)
Victor Barroso Nogueira
Manela Pinto Sou branco, cabelos levemente ondulados, expresso-me bem em português, ninguém me manda para a minha terra LOL Há muito tempo li uma crónica no Diário de Lisboa sobre um tipo de cor que dizia que qd o mandavam para a terra dele apanhava em lisboa o autocarro da carreira 27, para a Ajuda, onde nascera 😛
· 9 ano(s)
Manela Pinto
hahahhahahhaha nao te mando, estas ca muito bem!!!
· 9 ano(s)
Graca Maria Rito
Sem palavras amigo !! fantastico texto como sempre ......Bjs
· 9 ano(s)
Graça Maria Teixeira Pinto
Obrigada pela partilha. Gosto!
· 9 ano(s)
Alice Coelho
Como sempre...um texto para passear e vaguear ao longo da leitura..... beijinho
· 9 ano(s)
José Eliseu Pinto
Leitura saborosa, esta que nos ofereces. Como de costume, aliás.
Os teus textos têm a virtude de nos lembrar aquilo que sabemos mas não conseguimos evocar, ordenadamente.
Salvemos quem regista, pitoresca e laboriosamente, esta memória que nos devolve, de forma aprazível, dias que nem sempre o foram.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)