quarta-feira, 13 de março de 2024

Questionário sobre o antes e depois do 25 de Abril de 1974

 



Francisco Gabriel / Victor Nogueira


1-Onde estavas na altura do 25 de abril?

Estava em Évora, concluindo o curso de Sociologia.

2-Quem eras na altura?

Estudante e dirigente no Movimento Associativo Estudantil Universitário

 

3-Como era Portugal antes do 25 de abril?

Em 1932, em todos os manuais de leitura estava incluída a seguinte frase: “Na família, o chefe é o pai; na escola, o chefe é o mestre; na igreja, o chefe é o padre; na Nação, o chefe é o governo.”

 

Era uma sociedade cinzenta e repressiva, com muita desigualdade social, controlada pelos Serviços de Censura e vigiada pela PIDE (polícia política) e a sua rede de informadores. Eram limitados os direitos de reunião, de manifestação, de associação e fraudulentos os processos eleitorais. Grande parte da população vivia em barracas ou habitações insalubres, sem saneamento básico, electricidade e água canalizada ao domicílio, especialmente a que vivia em bairros de lata ou no campo.

A censura controlava a informação na imprensa escrita e audiovisual, proibindo tudo o que pusesse em causa  o Governo e o sistema. Os partidos políticos eram proibidos e os seus militantes ou simpatizantes perseguido, presos e torturados, por vezes mesmo assassinados, pela polícia política e outras forças policiais.  Os sindicatos eram controlados pela polícia política e as greves proibidas. A  entrada na Administração Pública (Estado)dependia de informação favorável da polícia política e de prestarem juramento que estavam integradas na ordem social vigente e repudiavam activamente todas as ideias subversivas e o comunismo. Era proibida a emigração, mas as pessoas emigravam clandestinamente, a salto, para fugirem à miséria e à guerra colonial. Era proibido dizer mal do Governo e da sua política, contestar a guerra colonial ou defender a independência das colónias; quem o fizesse estava sujeito a ser preso pela polícia política. Havia listas de livros e de filmes proibidos pelas Comissões de Censura.

 

As mulheres tinham menos direitos que os homens e estavam sujeitas à autoridade do marido. Estes podiam proibi-las de terem uma profissão ou de trabalharem fora de casa. O divórcio era proibido para quem tivesse casado pela Igreja Católica, o que era a maioria dos casamentos. Os filhos nascidos fora do casamento, considerados ilegítimos, tinham menos direitos que os filhos  “legítimos”, havendo muitas pessos cujos documentos de identificação diziam “filho de pai  incógnito”, porque o pai se recusara a reconhecê-los ou perfilhá-los. As relações entre rapazes e raparigas, especialmente em meios pequenos, eram vigiadas e controladas

O casamento era proibido às mulheres em profissões como hospedeiras da TAP, telefonistas e enfermeiras. As mulheres não podiam seguir as carreiras da magistratura, diplomática, militar e polícia. Mesmo assim, os costumes impediam as mulheres de exercer certas profissões.

As professoras do ensino primário só podiam casar se autorizadas pelo Ministro da Educação e desde que provassem que o futuro marido tinha rendimentos certos e informação favorável das autoridades administrativas e da polícia política. Nas exolas, sempre que fosso possível, havia separação entre rapazes e raparigas: havia escolas do ensino primário distintas, umas para rapazes, outras para as raparigas, assim como havia liceus masculinos e liceus femininos.  Quem tinha possibilidades frequentava o Liceu, que permitia tirar um curso universitário. Quem não tinha possibilidades económicas, ficava apenas com a 4ª classe do ensino primário ou tirava um curso tecnico-profissional numa escola industrial ou comercial. Os livros de estudo tinham de ser aprovados pelo Governo e eram o “livro único” no Portugal do Minho a Timor, como então se dizia.

 

Disto falo num poema meu, intitulado “Raízes”

(…) Em Luanda nasci

Em Luanda vivi

Em Luanda estudei

 

Não Angola mas Portugal

Todos os rios e afluentes

Todas as linhas férreas e apeadeiros

Todas as cidades e vilas

Todos os reis e algumas batalhas

as plantas e animais

que não eram do meu país.

 

De Angola

pouco sabiamos

até ao 4 de Fevereiro, até ao 15 de Março

Veio a guerra e

a mentira

que alimenta

a Guerra,

Veio a guerra e a violência

veio a guerra e a liberdade.

 

Em Évora a 11 de Novembro

Em Luanda a bandeira do meu país

no mastro subiu.

Era o tempo da liberdade e da esperança. (…)

 

As pessoas não tinham assistência na doença nem na maternidade, era proibida a interrupção voluntária da gravidez e não havia assistência/e acompanhamento durante a gravidez e no parto.  Por esse motivo a  mortalidade infantil era elevada.

Não havia subsídios de invalidez nem para os desempregados nem pensões de reforma para a maioria da população. Pelas ruas, nas esquinas e nos adros das igrejas ou batendo à porta das casas, muitas pessoas, especialmente crianças ou idosos, pediam “uma esmolinha, pela Graça de Deus”. Nas empresas privadas os salários e as pensões de reforma das mulheres eram muito inferiores aos dos homens. Nalgumas profissões os trabalhadores não tinham ordenado, como os empregados de café ou os taxistas, que viviam apenas das gorjetas dos clientes. Aliás, dar uma gorjeta era um hábito generalizado.

Havia uma elevada taxa de analfabetismo, com maior incidência nas mulheres. Os analfabetos não podiam votar nem serem eleitos.

 

4-Que mudanças sentiste na tua vida, o que é que alterou a nível pessoal?

Foi uma enorme sensação de alívio, por podermos falar e agir sem o receio de sermos perseguidos e presos

 

5-Como era Angola, antes da revolução e independência das colónias?

Para a população branca a situação era similar à de Portugal, embora houvesse mais à-vontade no vestuário feminino e liberdade nas relações entre rapazes e raparigas. Até ao início da guerra colonial a censura e repressão sobre a população branca era menor que em Portugal

A esmagadora maioria da população era negra e não tinha quaisquer direitos políticos nem sociais, estando sujeita ao “Estatuto do Indigenato”, que só foi abolido após o início da guerra colonial.

Os “indígenas” não podiam frequentar as escolas do ensino primário, salvo a das missões católicas ou protestantes, pelo que a maioria  não sabia ler nem escrever em português. Para terem os mesmos direitos que os brancos tinham de abandonar os costumes tradicionais e fazerem prova de se expressarem correctamente em português, escrito e falado, passando a ser considerados assimilados (o que era uma minoria na população angolana, tal como nas restantes colónias africanas) e poderem então frequentar o ensino técnico-profissional e o liceal.

A maioria dos que terminavam o liceu, qualquer que fosse a etnia, não tinha possibilidades de prosseguir estudos universitários em Portugal (a Metrópole) Até ao início da guerra colonial, em 1961, havia Liceus apenas nalgumas capitais de distrito (Angola era 14 vezes maior que Portugal) e só em 1962  foram criados estudos universitários em Luanda, cursos de medicina, ciências e engenharias, em  Nova Lisboa,  (actual Huambo), cursos de agronomia e veterinária, e em Sá da Bandeira (actual  Lubango), cursos de letras, geografia e pedagogia. Alguns anos mais tarde foi criado em Luanda o curso de economia.

A maioria da população negra, sobretudo nas regiões rurais, estava sujeita ao regime de contrato, na prática ao trabalho forçado, nas explorações agrícolas e nas obras públicas, sem direitos e sujeitas a castigos físicos, sem julgamento prévio, aplicados quer pelas autoridades administrativas, quer pelos patrões. Até ao início da guerra colonial a população negra trabalhadora tinha de ter uma caderneta de trabalho, assinada pelo patrão, sem a qual estava sujeita a ser presa e a trabalhar na estrada (obras públicas). As forças policiais, em busca de elementos subversivos, faziam periodicamente “rusgas” nos musseques, bairros da população negra e de brancos pobres, água ao domicílio ou saneamento básico.  

Não havia regime de apartheid (como na colónia portuguesa de Moçambique e nos países racistas de minoria branca, como as antigas colónias inglesas da Rodésia do Sul e da África do Sul).  Mas existia uma enorme segregação social, que afectava a maioria da população negra, sujeita aos trabalhos mais pesados ou menos gratificantes e mal remunerados.

 

 

6. Alguma história ou curiosidades que possas partilhar

Uma vez, em miúdo, em Luanda, ao atravessar uma rua, fui atropelado por um negro que conduzia uma bicicleta. Nem ele nem eu conseguimos evitar o atropelamento, embora tivéssemos tentado evitá-lo. Considerei então de uma enorme injustiça que ele ele tivesse sido castigado, sem apelo nem agravo, por ter atropelado um “menino branco”.

Quando fui estudar para Évora, habituado à liberdade de convívio entre rapazes e raparigas, em Luanda e na Universidade em Lisboa, “surpreendeu-me” a segregação na convivência entre  rapazes e raparigas. As raparigas e nossas colegas que frequentavam o café connosco, por serem irmãs   ou namoradas dum ou doutro no nosso grupo, ou apenas amigas, eram consideradas pela maioria dos eborenses como raparigas perdidas ou mesmo prostitutas.  Na casa de hóspedes em que vivia, os estudantes e as pessoas empregadas tinham quartos próprios, independentes, mas as raparigas estudantes dormiam no mesmo quarto com a hospedeira, não fosse o diabo tecê-las.

No Instituto [Económico e Social de Évora} onde ia frequentar sociologia, ao entrar pela 1ª vez noma sala de aulas, como a 1ª fila de carteiras estava vaga, sentei-me numa delas. Era obrigatório assistir às aulas, pelo que o contínuo marcava as faltas aos ausentes.  O senhor Veladas abordou-me dizendo que não podia sentar-me nas 1ªs filas, pelo que mudei de lugar pois, entretanto, entrara o professor. No fim da aula fui ter com o contínuo para me dizer porque não podia sentar-me na 1ª fila, que aliás continuara desocupada. Respondeu-me que as 1sª filas eram reservada às meninas.  Perguntando-lhe a razão disso, respondeu.me que as meninas não se podiam sentar no meio dos rapazes, porque podiam fazer coisas que não deviam. Como o meu curso tinha alguns contestatários, de que passei a ser o líder, pouco depois as meninas sentavam-se no meio dos rapazes, não só no nosso curso, como nos restantes!

Uma vez estava no jardim público com a minha namorada Celeste, com quem vim a casar, quando lhe dei um casto e furtivo beijo, logo de seguida sentindo a varinha do guarda, que não vira, batendo-me no ombro e avisando-me que “poucas vergonhas” daquelas não eram permitidas!

 

7-50 anos depois, que conquistas consideras as melhores do 25 de abril?

O fim da guerra colonial e todas, as conquitas então alcançadas com o movimento dos trabalhadores e das populações por melhores condições de vida e de trabalho, apesar de alguns das liberdades, dos direitos e dos nossos sonhos de então ainda se não terem concretizado ou terem sido desvirtuados.

 

8-E se achas que se perdeu algo, ou ficou por fazer?

Apesar dos retrocessos e das insuficiências no mundo do Trabalho, da Justiça, do Ensino, da Saúde, da Segurança Social face a vicissitudes da vida, a luta por uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais fraterna e mais solidária mantém-se como necessária à Humanidade, conjuntamente com a luta pela Paz entre os Povos e a resolução pacífica dos conflitos internacionais.

 

9-Uma obra em formato de livro música ou outra arte que represente o 25 de abril?

Não há “uma”. Mas pelo contraste entre o antes e o “agoramente”, na música e poesia “Os vampiros”, “Grândola, Vila Morena” e “Canto Moço”, de José Afonso, “Soneto do Trabalho” e “Portugal ressuscitado”, de Ary dos Santos, “Liberdade”, de Sérgio Godinho, “Pedra filosofal”, de António Gedeão …  Sem esquecer as “Canções Heroicas”, de Fernando Lopes Graça.

Ou os romances “Cerro Maior”, de Manuel da Fonseca, “Levantados do chão”, de José Saramago e “Até amanhã, camaradas”, de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal.  De referir a peça teatral “O Canto do Papão Lusitano”, de Peter Weiss, entre outras.

Na pintura “A poesia está na rua”, de Helena Vieira da Silva, os “Desenhos da prisão”, de Álvaro Cunhal ou os cartoon de João Abel Manta, que retratam os tempos anteriores e posteriores ao 25 de Abril.  

Sobre a colonização portuguesa, os poemas “Monangambé” e “Carta dum contratado”, de António Jacinto, “Meninos do Huambo”, de Rui Monteiro”, poetas angolanos, “Reza Maria”, de José Craveirinha, poeta moçambicano, “Trindade”, de Alda do Espírito Santo, poetisa santomense sobre o massacre de Bafetá. Em prosa são de referir, p. ex., o romance “Maiombe”, de Pepetela, angolano, ou os contos reunidos sob o título “Luuanda”, de Luandino Vieira

 

10 - em conclusão, como explicarias a alguém o 25 de abril?

Como outras revoluções anteriores, no mundo e ao longo dos séculos, o 25 de Abril foi o resultado da luta do povo português e dos povos das colónias pela liberdade e por melhores condições de vida e de trabalho, numa sociedade mais justa, igualitária, fraterna e solidária.

 

Galeria fotográfica

(Se tiveres alguma foto da altura estás a vontade para enviar)

Fotos Victor Nogueira – Mural na Rua António Maria Cardoso (sede da PIDE-DGS)    [Comissão Organizadora das Comemorações Populares do 25 de Abril] - E quatro companheiros nesta rua antes de se render a PIDE matou, tombaram pela liberdade no dia da libertação


Foto Victor Nogueira - Mora, 1975

CAMARADA NÃO TE DEIXES ILUDIR COM FALSOS SOCIALISMOS. SOCIALISMO HÁ SÓ UM, O SOCIALISMO PROLETÁRIO O QUE LIBERTA O HOMEM DA EXPLORAÇÃO DO CAPITALISMO E O CONDUZ AO COMUNISMO. NÃO TE ILUDAS, NEM COM FALSOS SOCIALISMOS NEM COM FALSAS LIBERDADES


Foto Victor Nogueira - Évora 1976 03 12 manifestação dos trabalhadores rurais alentejanos


Foto Victor Nogueira - Évora 1976 03 12 Manifestação dos trabalhadores rurais, pela Reforma Agrária – ‘A terra a quem a trabalha´

Fotos Victor Nogueira – Mural na Rua António Maria Cardoso (sede da PIDE-DGS)    [Comissão Organizadora das Comemorações Populares do 25 de Abril] - E quatro companheiros nesta rua antes de se render a PIDE matou, tombaram pela liberdade no dia da libertação


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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)