* Victor Nogueira
Nos idos de 1925 foi por João Cândido Belo fundada a empresa "A Transportadora Setubalense", com sede em Vila Fresca de Azeitão, que fruto de aquisições doutras empresas foi crescendo tornando-se dominante em todo o Alentejo e nas ligações á Península de Setúbal, a Lisboa e ao Ribatejo, com ligações e operando também no Algarve. Um galgo era o símbolo da empresa, por mim utilizada nas viagens de e até Setúbal / Lisboa ou pelo Alentejo nos idos de '60 e '70 do passado milénio.
Em 1975 a empresa foi nacionalizada e integrada na "Rodoviária Nacional". O autocarro da foto é um dos pioneiros (c. 1930).
De Évora para Lisboa pode ir‑se por estrada e por caminho
de ferro. De camioneta ou de automotora, o tempo gasto no percurso
é sensivelmente o mesmo: umas 3 h 30 m. A camioneta, embora mais enfadonha, é
mais barata. A empresa [João
Cândido Belo] concede cartões de
estudante que permitem obter 50 % de desconto entre a localidade de residência
e a de estudo e vice‑versa, no meu caso entre Lisboa e Évora. O comboio em 1ª
classe fica à volta de 70 a 80$00 e a camioneta, com desconto, 20 a 30$00.
(NSF. 1970.05.17)
Fui ontem aquela cidade‑mumificada (-museu, reza a
propaganda turística!). Nem queiras saber como fiquei doente, como estive
doente nas horas que estive naquela terra, que me parece um pesadelo, longe que
dela estou. (...) Em Évora encontrei montes de malta: eram olás! hellos e bons
dias quase pegados. Até encontrei o cobrador da camioneta da Amareleja! (MCG -
1973.09.08)
Custou, mas na
camioneta, rumo a Lisboa, senti‑me renascer, como se tivesse saído dum
opressivo ambiente tumular. Esta Lisboa do
miúdo que choraminga. E do velhote, límpidos olhos azuis, humildemente vestido
mas não enxovalhado, que é brutalmente arrastado para o passeio por um pai
rude, exaltado, mal barbeado, que lhe torceria o nariz, o esmigalharia, lhe
daria duas bofetadas,... se ele não estivesse bêbedo. Enquanto aquele
retorquia: "Estavam a maltratar os pombinhos", sem muita firmeza, de
olhos perdidos sabe Deus onde Ou do miúdo que me aponta uma pistola: "Mãos
ao ar", num Chiado repleto de gente azafamada. Que é admoestado por uma
mãe derretida. Que se perdeu no rio das gentes que sobem ou descem. Das duas
"meninas bem" que, especadas no passeio qual escolhos, lançam olhares
furibundos ao pirralho esfarrapado e sujo que lhes aponta uma espingarda de lata.
Do café Nicola, donde sou desalojado sem cerimónia, pois um "garoto"
e um "croissant" não permitem a ocupação indefinida de uma mesa para
escrever, especialmente à hora de almoço. Dos vendedores ambulantes, que jogam
ao corre‑corre com os polícias, de tabuleiros cheios de quinquilharia, jogando
ao passo‑passa com os automóveis.(NSM - 1968.12.27)
Gosto muito deste postal. E tu?
Está trovejando e o céu acinzentou-se subitamente neste princípio do anoitecer.
(...) Queria dizer-te da minha amizade por ti, mas não encontro outras palavras senão estas. Esperava hoje um aceno teu e nada veio.
Virás este fim de semana? Tencionava ir esperar-te à Setubalense. Mas se eu não estiver, telefona-me, OK?
(...) Faltou a luz. Acabei de escrever ao lusco-fusco. (MCG 1973 07 12)
Às 14:30 apanharei [em Évora] boleia do Pintassilgo (e da miúda) rumo a Setúbal, onde apanharei a camioneta para Cacilhas, aqui o ferry-boat para o Cais do Sodré e lá o comboio para Paço de Arcos. Em lá chegando à estação, olhos para as malfadadas escadas [escadaria], atravesso a linha, subo‑as e ala pela Rua Conde de Alcáçovas abaixo, por entre as árvores que a ladeiam até ao fundo, onde viro à esquerda dando de caras com o nº 1 da Rua de Macau. (1973.08.03)
A neve parece esferovite e de vez em quando um tipo enterra-se até aos joelhos. Antes do cume a
serra é negra, salpicada de branco; no cimo é um manto branco, que o nevoeiro
confundia, tornando fantasmagóricos os vultos. Estava frio, mas suportava-se.
Encontro-me num café da Covilhã que parece um do
Porto, enquanto as ruas lá para trás lembravam Sintra. Almoçámos no Fundão,
na Escola Secundária, um prédio de
habitação adaptado - onde as pessoas tinham um ar seráfico e beatífico, falando
com um sotaque de seminaristas, padres ou de freiras de Santa. Zita; - será que
a maioria deles são destas bandas? - As miúdas desta região têm um ar rude ou
agreste - serrano? - Demos liberdade aos miúdos e até agora não tem havido
problemas. Estou é maçado, pois a camioneta não é cómoda e por causa da reunião
na Escola só me deitei às 3 da matina para levantar-me às 5 1/2. (MCG - 1975.02.26)
Ontem em Arraiolos. enquanto fazia horas aguardando
as vinte, quando regressariam a casa os únicos dois inquiridos que me restavam
fui visitar a cadeia lá no largo onde
param as camionetas da Setubalense e fica a Câmara mais o posto da GNR, os CTT
e a praça de táxis (e quiçá também da má-língua). Do largo cadeia destaca-se
pela sua torre sineira, qual igreja, e pelas suas duas janelas fortemente
gradeadas. Há muitos anos que no seu segundo piso flutua um pano branco,
indicativo de desocupação! (MCG - 1973.03.14)
30 foram as camionetas (fora os
automóveis particulares) que de Évora se deslocaram a Lisboa para apoiar o Marcelo [Caetano]. Beja, Santarém, Leiria, Portalegre, enfim,
milhares de tipos confluíram para a manifestação do entardecer [em Lisboa]. Pena não autorizarem as contramanifestações.
(...) O Diogo diz que da Amareleja não terão ido pessoas à manifestação (salvo
talvez os da Casa do Povo). Não porque sejam do reviralho, mas porque não se
metem nestas coisas (viver não custa..). (MCG - 1973.07.19)
Ontem à noite (1973.10.24), no regresso de Arraiolos, muitos Mercedes a caminho de Évora, onde às 21:30 alentejanos cinzentos de ar sisudo aguardavam ordeiramente o início da sessão de propaganda da ANP [Acção Nacional Popular]. Debaixo dos arcos [arcadas], uma fila de homens, com ar humilde e jeito de rebanho descido da camioneta, dirigia-se para o cinema onde se realizaria a tal sessão. A oposição não comparecerá as eleições no domingo. O Marcelo Caetano] bater-se-à contra nada. (MCG - 1973.10.25).
Na camioneta para o Sabugueiro,
aguardo a sua partida, no meio da vozearia fina da miudagem que a enche, de
regresso a casa. (1973.11.08)
Conheci a Ana SorRiso dos Olhos Grandes e o Zé Honrado naquela aldeia
grande que é a Amareleja, onde existe um Largo do Regato que se não vislumbra e
morava a Maria Papoila, no 1º andar por cima duma loja, numa casa sem portas
interiores. No tempo da outra senhora era aquela uma
aldeia aberta, com os bailes na Sociedade e os longos passeios dos casalinhos
ao longo das estradas que dela partiam ou para ela convergiam. Tinha a Amareleja muita gente conhecida: a
Marília (muito bonita) e o tio, o sr. Coelho (da oposição ao regime e dono da
farmácia), o Diogo (meu colega na pensão da D. Vitória), a Adélia, o sr.
Guerreiro (regedor da aldeia) e a D. Marcelina (pais do Diogo e da Adélia), a
Ivone (muito faladora, à espera do pretendente e do casamento que tardava), a
D. Manuela (dona de uma loja e, como a anterior, professora), para além do
casal velhote com a mercearia, [o senhor Cachopo] no largo da igreja arruinada, em cuja casa ficava aos fins de semana,
com o motorista da camioneta da carreira. Seguramente que havia mais gente,
como a minha colega do Instituto, simpática, cujo nome esqueci e que por vezes
me dava boleia [Ana], ou o Chico
(Lucas] Honrado, que também fora meu
colega. (AMC) ([1])
Cercal do Alentejo, na serra do mesmo
nome, situa‑se na fronteira entre o Alentejo e o Algarve. Trata‑se duma pequena
povoação, com algumas casas mais imponentes, onde se destaca o largo principal,
com os cafés e a paragem da camioneta. Merece visita o Vale da Mandorelha, a
cerca de 1 km. (Memórias de Viagem,
1997)
A camioneta vai daqui a pouco para Montemor(-o-Ñovo). Está sol e daqui te envio saudades. Já engraxei os sapatos e estou mais apresentável. (MCG - 1974.10.28)
Estamos a meio da tarde de
domingo, aqui no Monte de AROUCA ([2]) onde a Celeste dá aulas, uma
herdade enorme que quase parece uma aldeia, agora abandonada (quase) pela crise
da agricultura e da política dos agrários. O monte fica junto ao rio Sado, a 10
km ao sul de Alcácer do Sal e a 2 horas de camioneta de Lisboa. No meu colo
está a minha amiga Eva, filha duma trabalhadora
[Aciolinda], e que tem 3 anos. Uma
"mulherinha", como me diz. A mãe dela aquece‑se ali ao lume, enquanto
a Celeste lê e a mãe arranja as azeitonas que colheu ontem à tarde. (NSF -
1974.11.27)
Havia alunos da Celeste que nunca tinham ido à Vila, a uma dezena de km, e que ficaram abismados quando viam o comboio pela 1ª vez, um monstro para eles. O Renault 4 ficava com a Celeste, para ir à Vila ou para Évora, ou para ir-me buscar à Rodoviária, em Alcácer, nos fins-de-semana que me calhavam. (A Vida no Monte da Arouca - UCP Soldado Luís (2) 2007 10 08 )
Terminei a minha digressão turística com uma visita às Igrejas de Santa Maria e de S. Julião. ([3]) Depois dum lanche frugal, apanhei a camioneta para Cacilhas, depois o ferry-boat para o Cais do Sodré e o comboio para Paço de Arcos. Só me faltou andar de avião. Em Setúbal reconheci o Zeca Afonso. Refreei o impulso de perguntar‑lhe "Você é que é o Zeca Afonso?" e deixei‑o seguir para um café da Praça do Bocage. (MCG - 1972.12.29)
Daqui da esplanada do café, olhando à minha direita, a paisagem é esta. ([4]) Olha lá, e se a gente viesse viver para
Setúbal? É mais sossegada que Lisboa e é uma hora de camioneta! A tarde está
chuvosa, o café está cheio de gente, rapazes e raparigas, e a passarada faz uma
chilreada enorme por entre as árvores. (...) A minha mãe trouxe-me até aqui, onde às 18 h apanharei a camioneta para Évora. (MCG - 1973.11.01)
[2] - No tempo da Reforma Agrária
esta herdade e as vizinhas foram integradas na Unidade Colectiva de Produção
Soldado Luís, homenagem ao militar morto no ataque aéreo das forças do General
Spínola ao Quartel do Ralis, em Lisboa, a 11 de Março de 1975.
[3] - A igreja de Santa Maria é a
Sé, com aspecto imponente; a de S. Julião, destruida pelo terramoto de 1755,
tem um aspecto desgracioso, mas conserva
dois portais manuelinos.
[4] - Árvores frondosas e trânsito automóvel, que já não existem em 1996, a estátua do Bocage e, ao fundo, o edifício da Câmara, onde vim a trabalhar de 1984 a 1986, além da casa, na altura azulada, por cima duma tabacaria, cheia de sol, onde gostaria de viver e que compraria se tivesse dinheiro.. O café referido no postal deveria ser o Central.
VER "A Transportadora Setubalense" in https://restosdec oleccao.blogspot.com/2016/11/a-transportadora-setubalense.html
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)