sábado, 13 de julho de 2024

Do Livro de Viagens - Autorrodando com "A Setubalense"



Fotos victor nogueira - Azeitão EN 10 - rotunda com antiga camioneta da Setubalense, da empresa João Càndido Belo 'Os Belos' (2024 04  18   IMG_4530 e IMG_4538)

 * Victor Nogueira

Nos idos de 1925 foi por João Cândido Belo fundada a empresa "A Transportadora Setubalense", com sede em Vila Fresca de Azeitão, que fruto de aquisições doutras empresas foi crescendo tornando-se dominante em todo o Alentejo e nas ligações á Península de Setúbal, a Lisboa e ao Ribatejo, com ligações e operando também no Algarve. Um galgo era o símbolo da empresa, por mim utilizada nas viagens de e até Setúbal / Lisboa ou pelo Alentejo nos idos de '60 e '70 do passado milénio.

Em 1975 a empresa foi nacionalizada e integrada na "Rodoviária Nacional". O autocarro da foto é um dos pioneiros (c. 1930).

Os extractos subseqentes são na naioria provenientes da minha correspondência, desde 1968, quando em Évora me matriculei no ISESE.

De Évora para Lisboa pode ir‑se por estrada e por caminho de ferro. De camioneta ou de automotora, o tempo gasto no percurso é sensivelmente o mesmo: umas 3 h 30 m. A camioneta, embora mais enfadonha, é mais barata. A empresa [João Cândido Belo] concede cartões de estudante que permitem obter 50 % de desconto entre a localidade de residência e a de estudo e vice‑versa, no meu caso entre Lisboa e Évora. O comboio em 1ª classe fica à volta de 70 a 80$00 e a camioneta, com desconto, 20 a 30$00. (NSF. 1970.05.17)

Fui ontem aquela cidade‑mumificada (-museu, reza a propaganda turística!). Nem queiras saber como fiquei doente, como estive doente nas horas que estive naquela terra, que me parece um pesadelo, longe que dela estou. (...) Em Évora encontrei montes de malta: eram olás! hellos e bons dias quase pegados. Até encontrei o cobrador da camioneta da Amareleja! (MCG - 1973.09.08)


Passe de estudante

Custou, mas na camioneta, rumo a Lisboa, senti‑me renascer, como se tivesse saído dum opressivo ambiente tumular. Esta Lisboa do miúdo que choraminga. E do velhote, límpidos olhos azuis, humildemente vestido mas não enxovalhado, que é brutalmente arrastado para o passeio por um pai rude, exaltado, mal barbeado, que lhe torceria o nariz, o esmigalharia, lhe daria duas bofetadas,... se ele não estivesse bêbedo. Enquanto aquele retorquia: "Estavam a maltratar os pombinhos", sem muita firmeza, de olhos perdidos sabe Deus onde Ou do miúdo que me aponta uma pistola: "Mãos ao ar", num Chiado repleto de gente azafamada. Que é admoestado por uma mãe derretida. Que se perdeu no rio das gentes que sobem ou descem. Das duas "meninas bem" que, especadas no passeio qual escolhos, lançam olhares furibundos ao pirralho esfarrapado e sujo que lhes aponta uma espingarda de lata. Do café Nicola, donde sou desalojado sem cerimónia, pois um "garoto" e um "croissant" não permitem a ocupação indefinida de uma mesa para escrever, especialmente à hora de almoço. Dos vendedores ambulantes, que jogam ao corre‑corre com os polícias, de tabuleiros cheios de quinquilharia, jogando ao passo‑passa com os automóveis.(NSM - 1968.12.27)

Gosto muito deste postal. E tu?

Está trovejando e o céu acinzentou-se subitamente neste princípio do anoitecer.

(...) Queria dizer-te da minha amizade por ti, mas não encontro outras palavras senão estas. Esperava hoje um aceno teu e nada veio.

Virás este fim de semana? Tencionava ir esperar-te à Setubalense. Mas se eu não estiver, telefona-me, OK?

(...) Faltou a luz. Acabei de escrever ao lusco-fusco. (MCG 1973 07 12)


Lisboa 1973 09 - Depois das férias, o regresso ao Alentejo

Às 14:30 apanharei [em Évora] boleia do Pintassilgo (e da miúda) rumo a Setúbal, onde apanharei a camioneta para Cacilhas, aqui o ferry-boat para o Cais do Sodré e lá o comboio para Paço de Arcos. Em lá chegando à estação, olhos para as malfadadas escadas [escadaria], atravesso a linha, subo‑as e ala pela Rua Conde de Alcáçovas abaixo, por entre as árvores que a ladeiam até ao fundo, onde viro à esquerda dando de caras com o nº 1 da Rua de Macau. (1973.08.03)

A neve parece esferovite e de vez em quando um tipo enterra-se até aos joelhos. Antes do cume a serra é negra, salpicada de branco; no cimo é um manto branco, que o nevoeiro confundia, tornando fantasmagóricos os vultos. Estava frio, mas suportava-se. Encontro-me num café da Covilhã que parece um do Porto, enquanto as ruas lá para trás lembravam Sintra. Almoçámos no Fundão, na Escola Secundária, um prédio de habitação adaptado - onde as pessoas tinham um ar seráfico e beatífico, falando com um sotaque de seminaristas, padres ou de freiras de Santa. Zita; - será que a maioria deles são destas bandas? - As miúdas desta região têm um ar rude ou agreste - serrano? - Demos liberdade aos miúdos e até agora não tem havido problemas. Estou é maçado, pois a camioneta não é cómoda e por causa da reunião na Escola só me deitei às 3 da matina para levantar-me às 5 1/2. (MCG - 1975.02.26)


Ontem em Arraiolos. enquanto fazia horas aguardando as vinte, quando regressariam a casa os únicos dois inquiridos que me restavam fui visitar a cadeia lá no largo onde param as camionetas da Setubalense e fica a Câmara mais o posto da GNR, os CTT e a praça de táxis (e quiçá também da má-língua). Do largo cadeia destaca-se pela sua torre sineira, qual igreja, e pelas suas duas janelas fortemente gradeadas. Há muitos anos que no seu segundo piso flutua um pano branco, indicativo de desocupação! (MCG - 1973.03.14)


30 foram as camionetas (fora os automóveis particulares) que de Évora se deslocaram a Lisboa para apoiar o Marcelo [Caetano]. Beja, Santarém, Leiria, Portalegre, enfim, milhares de tipos confluíram para a manifestação do entardecer [em Lisboa]. Pena não autorizarem as contramanifestações. (...) O Diogo diz que da Amareleja não terão ido pessoas à manifestação (salvo talvez os da Casa do Povo). Não porque sejam do reviralho, mas porque não se metem nestas coisas (viver não custa..). (MCG - 1973.07.19)

Ontem à noite (1973.10.24), no regresso de Arraiolos, muitos Mercedes a caminho de Évora, onde às 21:30 alentejanos cinzentos de ar sisudo aguardavam ordeiramente o início da sessão de propaganda da ANP [Acção Nacional Popular]. Debaixo dos arcos [arcadas], uma fila de homens, com ar humilde e jeito de rebanho descido da camioneta, dirigia-se para o cinema onde se realizaria a tal sessão. A oposição não comparecerá as eleições no domingo. O Marcelo Caetano] bater-se-à contra nada. (MCG - 1973.10.25).


Autocarro da Setubalense, 1964 (in "Restos de Colecção")

Na camioneta para o Sabugueiro, aguardo a sua partida, no meio da vozearia fina da miudagem que a enche, de regresso a casa. (1973.11.08)

Conheci a Ana SorRiso dos Olhos Grandes e o Zé Honrado naquela aldeia grande que é a Amareleja, onde existe um Largo do Regato que se não vislumbra e morava a Maria Papoila, no 1º andar por cima duma loja, numa casa sem portas interiores. No tempo da outra senhora era aquela uma aldeia aberta, com os bailes na Sociedade e os longos passeios dos casalinhos ao longo das estradas que dela partiam ou para ela convergiam. Tinha a Amareleja muita gente conhecida: a Marília (muito bonita) e o tio, o sr. Coelho (da oposição ao regime e dono da farmácia), o Diogo (meu colega na pensão da D. Vitória), a Adélia, o sr. Guerreiro (regedor da aldeia) e a D. Marcelina (pais do Diogo e da Adélia), a Ivone (muito faladora, à espera do pretendente e do casamento que tardava), a D. Manuela (dona de uma loja e, como a anterior, professora), para além do casal velhote com a mercearia, [o senhor Cachopo] no largo da igreja arruinada, em cuja casa ficava aos fins de semana, com o motorista da camioneta da carreira. Seguramente que havia mais gente, como a minha colega do Instituto, simpática, cujo nome esqueci e que por vezes me dava boleia [Ana], ou o Chico (Lucas] Honrado, que também fora meu colega. (AMC) ([1])

Cercal do Alentejo, na serra do mesmo nome, situa‑se na fronteira entre o Alentejo e o Algarve. Trata‑se duma pequena povoação, com algumas casas mais imponentes, onde se destaca o largo principal, com os cafés e a paragem da camioneta. Merece visita o Vale da Mandorelha, a cerca de 1 km. (Memórias de Viagem, 1997)

A camioneta vai daqui a pouco para Montemor(-o-Ñovo). Está sol e daqui te envio saudades. Já engraxei os sapatos e estou mais apresentável. (MCG - 1974.10.28)


Largo Luís de Camões, em Alcácer o Sal, onde paravam as camionetas (1974)

Gosto de passear pelas ruas da vila, de passar pelos seus arcos, de avistar os campos de arroz na outra margem, viveiro do que me desagrada: os mosquitos. Alcácer é terra de passagem e breve paragem das camionetas no seu largo incaracterístico. É também terra dos agrários, senhores das enormes propriedades dos arredores, como os Montes de Porshes, Arouca e Barrosinha.

Estamos a meio da tarde de domingo, aqui no Monte de AROUCA  ([2]) onde a Celeste dá aulas, uma herdade enorme que quase parece uma aldeia, agora abandonada (quase) pela crise da agricultura e da política dos agrários. O monte fica junto ao rio Sado, a 10 km ao sul de Alcácer do Sal e a 2 horas de camioneta de Lisboa. No meu colo está a minha amiga Eva, filha duma trabalhadora [Aciolinda], e que tem 3 anos. Uma "mulherinha", como me diz. A mãe dela aquece‑se ali ao lume, enquanto a Celeste lê e a mãe arranja as azeitonas que colheu ontem à tarde. (NSF - 1974.11.27)

Havia alunos da Celeste que nunca tinham ido à Vila, a uma dezena de km, e que ficaram abismados quando viam o comboio pela 1ª vez, um monstro para eles. O Renault 4 ficava com a Celeste, para ir à Vila ou para Évora, ou para ir-me buscar à Rodoviária, em Alcácer, nos fins-de-semana que me calhavam. (A Vida no Monte da Arouca - UCP Soldado Luís (2) 2007 10 08 )

Terminei a minha digressão turística com uma visita às Igrejas de Santa Maria e de S. Julião. ([3]) Depois dum lanche frugal, apanhei a camioneta para Cacilhas, depois o ferry-boat para o Cais do Sodré e o comboio para Paço de Arcos. Só me faltou andar de avião. Em Setúbal reconheci o Zeca Afonso. Refreei o impulso de perguntar‑lhe "Você é que é o Zeca Afonso?" e deixei‑o seguir para um café da Praça do Bocage. (MCG - 1972.12.29)


Setúbal - Praça de Bocage (Postal VN 1973 11 01)

Daqui da esplanada do café, olhando à minha direita, a paisagem é esta. ([4])   Olha lá, e se a gente viesse viver para Setúbal? É mais sossegada que Lisboa e é uma hora de camioneta! A tarde está chuvosa, o café está cheio de gente, rapazes e raparigas, e a passarada faz uma chilreada enorme por entre as árvores. (...) A minha mãe trouxe-me até aqui, onde às 18 h apanharei a camioneta para Évora. (MCG - 1973.11.01)


 [1] - Escrito em Setúbal em 1989.06.06 - ESCRITOS EM UMA NOITE DE PRIMAVERA PRESTES VERÃO / POR ISSO NÃO SE FALANDO EM MANHÃS DE NEVOEIRO

[2] - No tempo da Reforma Agrária esta herdade e as vizinhas foram integradas na Unidade Colectiva de Produção Soldado Luís, homenagem ao militar morto no ataque aéreo das forças do General Spínola ao Quartel do Ralis, em Lisboa, a 11 de Março de 1975.

[3] - A igreja de Santa Maria é a Sé, com aspecto imponente; a de S. Julião, destruida pelo terramoto de 1755, tem um aspecto desgracioso, mas  conserva dois portais manuelinos.

[4] - Árvores frondosas e trânsito automóvel, que já não existem em 1996,  a estátua do Bocage e, ao fundo, o edifício da Câmara, onde vim a trabalhar de 1984 a 1986, além da casa, na altura azulada, por cima duma tabacaria, cheia de sol, onde gostaria de viver e que compraria se tivesse dinheiro.. O café referido no postal deveria ser o Central.

VER "A Transportadora Setubalense" in https://restosdec oleccao.blogspot.com/2016/11/a-transportadora-setubalense.html

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