domingo, 29 de julho de 2007

Lisboa - O sexo (a política) e a cidade

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Arco das Portas do Mar
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Entre fachadas e casas do passado, as portas velhas e o bulício actual do centro, o traçado desgastado de Lisboa dá-lhe contornos diferentes, que falam de alianças e traição
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* Ana Pago

À primeira vista, a questão que serve de mote ao passeio pela zona histórica de Lisboa - como é que o sexo pode influenciar o percurso de um país com mais de 800 anos? - parece quente e pouco recomendável a seniores ou menores de 18 anos, mas a verdade é que um primeiro olhar não basta. São precisos muitos olhares, e pelo menos duas horas de contacto com "A Importância do Sexo na História de Portugal - Como o amor influencia a nossa política", para o público concluir que sim, influencia em tudo.
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O sexo esteve na origem de alguns dos acontecimentos nacionais mais marcantes, justifica plenamente o carácter de visita guiada que a empresa de animação turística Bode Espiatório lhe deu - - sempre com base no conceito de reinventar as tradições para pensar no futuro que a levou, entre outras coisas, a conceber jantares-mistério (onde os comensais, a braços com um crime, se divertem a decifrar pistas), passeios de emoções fortes, perseguições e rally papers.
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"Calcorrear a nossa Lisboa antiga é só um pretexto para perceber a evolução do País, desde D. Afonso Henriques ao 25 de Abril, a partir dos escândalos sexuais que caracterizaram cada época histórica", explica ao DN o historiador Miguel Aguiar, preparando a voz e o fôlego para conduzir mais uma visita a todos os recantos que se estendem para lá do Miradouro de Santa Luzia, onde o grupo se reuniu e aguarda a partida com cochichos expectantes e bloco de notas em punho.
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Acima de tudo, importa frisar que os escândalos sexuais que dão nome a este roteiro pela cidade são muito poucos quando comparados com a riqueza de outros pormenores aparentemente menos aliciantes. "Sei que isto desaponta muita gente", concede o guia, o passo saltitante a descer já a escadaria para abraçar a força ancestral do lugar. Mas mais que de sexo, Lisboa vive de alianças e histórias de amor. É assim desde o início dos tempos.
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"As pedras que aqui vêem pertencem à cerca moura, assim chamada por delimitar a cidade árabe. Antes, também os romanos haviam ocupado esta mesma colina e alguns acabaram mesmo por estabelecer boas relações com os mouros, nem tudo foram inimizades." E não foram. O amor deixou sempre marcas vincadas de norte a sul, ajudando a escrever a história em várias línguas. A de Lisboa e a do País.
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Percebe-se isso à medida que os dedos dos curiosos percorrem a pedra grossa da parede árabe na descida para Alfama (o nome do bairro significa "águas termais"), criando o momento perfeito para viajar pela Reconquista Cristã e falar das laranjeiras selvagens, "também elas trazidas pelos árabes", que iluminam os passeios da cidade. Sente-se isso na conversa entusiasmada sobre nomes de família e respectivas origens, suscitada por brasões descobertos entre fachadas históricas e casas antigas.
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A meio caminho entre o chamado Chafariz de Fora (mandado edificar pelo rei D. Dinis no século XIII) e o Campo das Cebolas, alguém tem uma dúvida mais para colocar sobre a invasão da Península Ibérica pelos árabes do Iémen no século VIII. Miguel Aguiar não hesita, responde a tudo com o mesmo toque de humor britânico que põe na visita guiada desde o início. E acaba a falar de Silves e da lenda das amendoeiras em flor.
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"Tudo aconteceu quando o Algarve era reinado por Ibne Almundim, poderoso entre os poderosos reis mouros." Mas não imune à paixão. "Um dia, num grupo de prisioneiros de batalha, ele viu-a pela primeira vez Gilda, a princesa loura de olhos azuis, a Bela do Norte que desposou e libertou." E, todavia, ela definhava um pouco mais todos os dias, com saudades da neve que deixara para trás. "Ibne Almundim percebeu que acabaria por perder Gilda e plantou no reino centenas de amendoeiras, que, na Primavera, rebentavam em flores brancas que substituíam a neve das terras nórdicas", conta o historiador. "E viveram felizes para sempre."
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De passagem pela Casa dos Bicos, o Arco das Portas do Mar, a Sé, o Largo da Madalena, a Conceição Velha, a Praça do Comércio e a Rua Augusta, a história muda de protagonistas e transborda de casamentos e traições, homicídios e golpes de Estado. Lisboa ganha uma dimensão diferente a da imaginação e do conhecimento. E o País torna-se, afinal, mais compreensível.
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in Diário de Notícias - Quarta, 4 de Janeiro de 2006
Fotografia - Leonardo Negrão

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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)