* Cristóvão de Aguiar
.
No próximo domingo cumprem-se cem anos sobre o nascimento do médico-escritor transmontano. Até lá, e numa semana muito especial, o Correio da Manhã recorda a vida e a obra do autor de ‘Bichos’, desvendando histórias e pessoas de lugares para sempre ligados ao seu nome.
.
Costuma dizer-se que os Poetas não têm biografia. No caso de Torga assim não acontece. A sua vida constitui o húmus de toda a sua escrita, tanto na poesia, como na prosa (o romance autobiográfico ‘A Criação do Mundo’ representa o percurso inteiro de uma vida e quem o lê fica ciente de tudo o que respeita ao homem e ao escritor), passando pela diarística (16 volumes), que foi lavourando durante mais de sessenta anos sem descanso.
.
Miguel Torga tinha da escrita uma ideia de sacerdócio. Escrevia por devoção, é certo, mas a pena não lhe deslizava ao longo da página com a desenvoltura dos que se julgam iluminados por uma inspiração que só para eles existia e que em Torga se transmudava numa bica de suor e aflição. A maior parte das vezes atravessava a noite a ‘lavrar’ a página e, no fim, já madrugada, quase manhã, a colheita nunca era proporcional ao trabalho despendido. Muitos exemplos existem no Diário em que o próprio Torga reflecte sobre o seu ofício de “lavrador das letras” angustiado e quase desesperado perante a página rabiscada e repleta de emendas. Revia até à exaustão. Nas tipografias onde imprimia a sua obra, sempre em edição de autor, os gerentes recusavam-se a fazer-lhe um orçamento prévio, porque, não raro, revia cinquenta vezes o mesmo exemplar. .
.
Torga não usou sempre este nome. Baptizaram-no na igreja de S. Martinho de Anta, onde nascera a 12 de Agosto de 1907, como Adolpho Correia da Rocha. Filho de pais pobres, o destino que o aguardava não era lisonjeiro: ou seminarista ou camponês. A mãe, com quem mantinha uma intensa cumplicidade afectiva, havia de lhe declarar, já depois de homem feito: “Nunca me enganaste, filho; falaste-me na barriga ”
.
O nome Miguel Torga havia de surgir em 1934, no livro ‘A Terceira Voz’, não como heterónimo, tão-só para que houvesse uma distinção entre o médico que iniciara a profissão e o escritor que dava os primeiros passos. Estreia-se, em livro, com ‘Ansiedade’ (1928), que vem a repudiar.
.
Concluída a quarta classe na sua aldeia, a conselho da mãe, ruma à cidade do Porto para trabalhar como criado de servir numa casa rica. Não se dá bem a ser lacaio de meninos ou a puxar-lhes o reposteiro nas representações teatrais. Era a revolta a instalar-se! Regressa a S. Martinho e logo depois entra para o seminário de Lamego, onde fica só um ano. O pai, que não queria dar ao filho a mesma vida que levava, indicou-lhe o caminho. Brasil. Tinha lá um tio que lhe mandou uma carta de chamada e o pequeno Adolpho, com apenas 13 anos, zarpou para a Terra de Santa Cruz. Trabalha na fazenda do tio, homem muito duro, durante cinco anos. Aos dezassete anos, manda-o matricular no Ginásio Leopoldinense, que frequenta durante dois anos, após o que, como recompensa do trabalho exercido durante cinco anos, lhe dá a escolher dois caminhos: montar-lhe um comércio no Rio de Janeiro ou pagar-lhe os estudos. Regressa a Portugal, termina o curso dos Liceus em três anos, matriculando-se depois na Faculdade de Medicina.
.
Enquanto estudante, colabora na revista ‘Presença’, da qual foi dissidente, em 1930, com Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca. A rebeldia de Torga já se manifestava, não se compaginava com escolas literárias. Fundou duas revistas: ‘Sinal’ e ‘Manifesto’, que têm curta duração.
.
Em Dezembro de 1939, e na sequência da publicação de o quarto dia de ‘A Criação do Mundo’, Torga é preso na cadeia de Leiria, onde abrira consultório de otorrino, tendo sido transferido para o Aljube. Aí permanece até 2 de Fevereiro de 1940. Escreve na cadeia um dos grandes poemas da resistência portuguesa ao fascismo: ‘Ariane’. Daí em diante, Miguel Torga traçou o seu próprio percurso. Sozinho. Longe das luzes da ribalta. Morre em 17 de Janeiro de 1995, no Instituto de Oncologia, em Coimbra, em plena lucidez de espírito, como se pode ver pelo poema abaixo transcrito. Recebia os amigos e nunca lhes falava da morte próxima. No derradeiro poema do seu último ‘Diário’, com data de 10 de Dezembro de 1993, confessa-se:
.
REQUIEM POR MIM
.
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim,
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da Alma.
Morto em todos os órgãos dos sentidos [ ]
.
*escritor duas vezes vencedor do Prémio Miguel Torga/Cidade de Coimbra
.
CRONOLOGIA TORGA
.
1907 Nasce em S. Martinho da Anta no dia 12 de Agosto. 1920 Emigra para o Brasil, de onde regressa após cinco anos. 1927 Co-fundador da ‘Presença’, abandona a revista em 1930. 1928 Estreia-se na poesia com ‘Ansiedade’. 1931 Estreia-se em prosa com ‘Pão Ázimo’. 1933 Forma-se em Medicina na Universidade de Coimbra. 1934 Adopta o pseudónimo de Miguel Torga com ‘A Terceira Voz’. 1941 Primeiro de dezasseis ‘Diários’. 1960 Proposto para o Nobel e, de novo, em 1991. 1995 Morre em Coimbra.
.
PROGRAMA DE FESTAS DO DIA DO CENTENÁRIO
.
(...)
.
COIMBRA
.
Em Coimbra, é inaugurada a Casa Museu Miguel Torga. Trata-se da vivenda que foi sua durante quatro décadas, agora propriedade da Câmara Municipal de Coimbra. O espólio, pertença da filha, Clara Rocha, foi doado ao município.´
.
(...)
.
O DESESPERO HUMANISTA
.
A obra de Miguel Torga deixa ecoar as agonias humanas da década de 30, fazendo perpetuar a sua voz. É em poemas como ‘Penas de Purgatório’, ‘Esperança’ e ‘Dies Irae’ que o poeta exprime a sua agonia e o seu desespero face a um Mundo “suspenso dos grandes poderes e da sua impensável capacidade de destruição”. Há em Torga um misto de angústia e de esperança: “Brota em mim a angústia como um joio/Imortal” – a angústia originada pela ausência de absoluto, de deus nos homens, pela morte final; a esperança representada como a resposta da vida que todo o homem faz imperar: “Sou ave da esperança,/ /Pássaro triste que na luz do sol/Aquece as alegrias do futuro”.
.
Na verdade, Torga ora escreve poemas de esperança ora de desespero e, por vezes, é a indecisão entre uma e outra que dá matéria ao poema. Poder-se-á dizer que, através dos seus poemas, cada leitor pode ouvir o seu “pessoal desespero”.
.
Verifica-se, ainda, em Torga uma recusa à poesia “lamecha” dos românticos, recorrendo a uma “expressão violenta” e “agressiva” para vencer o seu próprio destino. A poesia representa para ele um refúgio perante a efemeridade do tempo, procurando, desta forma, encontrar a eternidade na realização poética: “Canto, a ver se o meu canto compromete/ a eternidade do meu sofrimento”.
REQUIEM POR MIM
.
Aproxima-se o fim.
E tenho pena de acabar assim.
Em vez de natureza consumada,
Ruína humana.
Inválido do corpo
E tolhido da alma.
Morto em todos os órgãos e sentidos.
Longo foi o caminho e desmedidos
Os sonhos que nele tive.
Mas ninguém vive
Contra as leis do destino.
E o destino não quis
Que eu me cumprisse como porfiei.
E caísse de pé, num desafio
Rio feliz a ir de encontro ao mar
Desaguar,
E, em largo oceano, eternizar
O seu esplendor torrencial de rio.
.
Miguel Torga
.
in Correio da Manhã 2007.08.06
Bom dia!
ResponderEliminarTorga, junamente com Florbela, são os meus preferidos, desde há muitos anos. Com ela aprendi os sonetos, a lasciva beleza do amor no seu saudosismo exacerbado, mas ao mesmo tempo de extraordinária ternura e cadência.
Com Torga, como eu da terra, apendi que na dureza se podem esconder doçuras inenarráveis e surpreendentes.
Obrigada por mos recordar, através de Miguel Torga.
Abraço
Maria Mamede
Olá
ResponderEliminarFoi também com uma amiga, já lá vão mais de 30 anos, que aprendi a gostar da poesia a partir do Eugénio de Andrade, que acho o poeta do amor que se não alcançou,apesar da leveza do que escreve. Outro poeta da altura foi o Manuel Bandeira, esse também do amor, mas dum amor triste, duma grande tristeza Foi também graças à Noémia que comecei a escrever poesia, que não abundava nas bibliotecas familiares. Anos mais tarde outra amiga ensinou-me a técnica da contagem das sílabas e graças ao Canões e a Shakespeare aprendi a escrever sonetos, mas sem o brilho deles. Mas há muitos anos que deixei de escrever poesia.
Bjo
Victor Manuel
PS - Não viste ou não gostaste do meu poema :-)
Bi-Viva
ResponderEliminarDo Torga só tenho três livros de contos na minha vasta biblioteca: Bichos e (Novos)Contos da Montanha. Por onde me aconselhas a começar a ler o Torga?
Bjo
VM
Olá Victor, boa tarde!
ResponderEliminarEm primeiro lugar quero dizer-te que vi o teu Poema, comentei e agradeci, como "menina bem comportada" e creio ter deixado num dos teus Blogs o meu email., mas se acaso não o fiz, aqui fica...maria.mamede@sapo.pt.
E agora em resposta à tua pergunta...Quanto a mim, dos Poemas mais inspirados que conheço do Torga, estão todos (ou quase) numa compilação existente dos seus Diários...há coisas verdadeiramente excepcionais, que me apaixonam profundamente. E parece por vezes impossível, que aquele Homem de perfil granítico fosse capaz de "dizer" o Amor tão maravilhosamente...
Se acaso não respondi como querias, já podes contactar-me.
Obrigada uma vez mais!
Um abraço
Maria Mamede
Lavrador das letras vai ser o título do próximo livro de Cristóvão de Aguiar, em homenagem a Miguel Torga.
ResponderEliminar