* Victor Nogueira
1974 é o ano de todos os sonhos, em Portugal e nas colónias, 1974 marca o fim da guerra colonial e o surgir do que pareceria um novo mundo a construir, ali, ao virar da esquina, ao alcance da mão, no sorriso duma criança. Mas ... como diizia Lampedusa pela voz de Don Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, em "O Leopardo", os troianos logo começaram a minar para que mudando alguma coisa, nada se mudasse.
Continuam as deambulaçoes mais ou menos turísticas, descrevem-se viagens de comboio e de automóvel, começa a estopada que foi o estágio de fim de curso, fala-se de Évora, da Rua do Raimundo e da malta do Arcada mas também de literatura e cinema. Ao reler as cartas verifiquei que faltam aqui nos "recortes" algumas coisas, mas ficarão para a próxima ou para o livro que venha a editar. Pouco se fala da associação de estudantes, que continuava a ser um dos campos da minha actividade. Em Fevereiro o meu pai já regressara a Angola e no Verão seria a vez da minha mãe.
Depois da "aventura" de passar as férias de Natal comigo e com a minha família, a namorada acantonara-se na aldeia, com explicações a alunos ao fim de semana como pretexto para não vir a Évora e a pressão para que terminado o curso fosse viver para a aldeia, o que eu rejeitei liminarmente, que tirasse o sentido de me ver como oficial de finanças em Moura ou a vender copos de vinho atrás do balcão numa taberna. E ao contrário do que havíamos acordado, não foi no verão de 1974 que casámos. E em 1 de Agosto, feito o últinmo exame e tendo sido aceite e aprovado o relatório de estágio, terminei o malfadado curso de Sociologia. Esperava eu que poderia finalmente pôr-me a milhas de Evora, definitivamente. Na ideia, tirar outro curso, Geofísicas.
Sintra estende-se por além abaixo, casario emergindo do meio do arvoredo ou dos campos verdejantes e ensombrados pelo dia cinzento e chuvoso. Lá ao fundo as montanhas e na mão esquerda uma sandes de queijo e presunto. Daqui a pouco seguiremos até à Boca do Inferno, perto de Cascais.
Aqui atrás de mim duas velhotas filosofam sobre as misérias dos católicos (parecem-me beatas e quando entrámos [no café à beira da estrada] estava uma desabafando: "o que nós fomos e ao que chegámos! " (...)
O comboio de Sintra desliza lentamente lá em baixo no vale. A sandes de presunto e queijo estava saborosa. (MCG - 1974.01.02)
A nossa viagem da Salvada para Lisboa correu bem. A paisagem era bonita e vimos grandes arrozais e salinas. Das povoações que atravessámos apenas retive Alcácer do Sal, com o seu castelo no cimo do monte, a vila debruçada à beira-rio; um quadro lindo. (MCG - 1974.01.02)
Uns largos minutos depois das linhas anteriores. Estamos aqui no Hotel de Santo Amaro. O meu pai acabou de dar cabo dum pacote de amendoins que comprou na Boca do Inferno (na foto muito apaziguado). O céu está cinzento de chumbo e o motel está quase vazio. Além uma senhora faz crochet e, lá fora, o mar morre serenamente nas rochas. Eu vou interromper. Termino em Lisboa.
Já estou novamente na pensão. Lá no motel ainda joguei nas máquinas; também 3 desafios de futebol, com o meu pai, tendo ganho dois.
Estou muito cansado e sinto-me triste. [Porque não estás comigo] Não me apetece ir para Évora nem gosto de Lisboa, assim [sem ti]…. beijinhos. (MCG – 1974.01.02)
O quarto está gelado. Passei o fim-de-semana lendo umas coisas de antropologia. Tenho os "conhecimentos" um tanto ou quanto baralhados. A D.Vitória veio aqui há pouco trazer-me um doce e peras de arroz doce. Está uma simpatia de senhora!
E o teu fim-de-semana, como correu? Ontem às 13 h, quando ia para o Liceu almoçar, resolvi passar pelo Gião (Restaurante) e encontrei-me com a Ana á esquina. Foi-se a última hipótese de ir até aí, pois ela tinha frequência (exame) á tarde, ficando cá o fim-de-semana por causa do exame de Matemática. (MCG – 74.01.03)
E então, que me dizes ao aumento do preço do petróleo e seus derivados? (Lá para Abril deve haver mais. Olarilas!). A velhota dos jornais ali às portas do Arcada já desabafou comigo esta manhã: não haver um raio que os partisse! Há 10 dias encomendara uma garrafa de gás; está cozinhando a lenha. Que só na 3ª feira. "Os patifes, os espertalhões, já sabiam disto e obrigam-me a pagar o gás mais caro!"
Como dizia o Carmelo, muito solene e sisudo na sua pose á mesa do café: "Isto está cada vez pior!" (MCG – 1974.01.03)
Ao entardecer a Rua do Raimundo é um espectáculo ao descê-la. Não gosto de Évora, porque não se vê o mar, nem a relva, nem as árvores, mas só pedras. Évora é um círculo que nos esmaga e constrange. Mas o espectáculo da Rua do Raimundo, quando a descemos ao entardecer!...
O sol põe-se mas o céu ainda é azul, com dois luzeiros brancos cintilando. Um arco vaporoso tingido de encarnado - rasto dum avião - cruza o céu da rua, de casa a casa. O horizonte é um encarnado pálido e as ruas são brancas e as pessoas passando quase fantasmagóricas.
Ontem o mar estava de tal modo encapelado que as ondas batiam violentamente no paredão, submergindo os carros que passavam na Marginal [do Estoril], entre os quais o nosso. Um espectáculo com piada. Anteontem choveu, relampejou e trovejou de tal modo que até parecia uma das tempestades em Luanda. (MCG - 1974.01.06)
RETRATO DE SENHORA PENSANDO SE HÁ-DE ACEITAR UM CONVITE PARA UMA IDA AO FIM DO MUNDO (ou já terá aceitado e pensa na data do embarque?) ENQUANTO NÃO SE DECIDE SE HÁ-DE ACEITAR: "viaje agora e pague depois" (ERA BOM, NÃO ERA? EU GOSTAVA, E TU ?), AQUI FICAM MAIS BEIJINHOS DO VM (1) (MCG – 1974.01.08)
Comprei hoje um livro de que o Pedro (...) me falara em tempos: "Le Sexe au Confessionnal", que reproduz uma série (parte de 600 e tal) confissões sobre questões sexuais gravadas por um casal em variadas igrejas de Itália. Entrevistas muito interessantes, reveladoras dum certo tipo de mentalidades. (MCG - 1974.01.08)
(1) Esta era uma linguagem cifrada minha para a namorada, que deixo ao critério de quem lê descodificar.
Já passa da meia-noite. Ao regressar hoje do jantar topei com montes de pinheiros às portas das casas, junto ao lixo. As "Festas" foram-se. (MCG - 1974.01.08)
Uma viagem no comboio do Alentejo - Apanhei o barco para o Barreiro às 19 h 30 m e depois de meia hora de secagem na outra margem, o trem lá partiu às 20 h 30 m. Na carruagem, além de mim, uma rapariga magra com um chapéu de palha roxa ou lilás, de feitio esquisito (parecia um outeiro circundado por uma vala, pois as abas estavam viradas para cima; muito vagamente assemelhava-se ao barrete dos marinheiros rasos), um padre (que saiu a meio do percurso) e um rapaz de camisola branca (que seguiu para além da Casa Branca). O comboio parou em tudo o que era estação ou apeadeiro. A luz na carruagem era para alumiar mortos, pelo que nem ler pude. Só quase no fim da viagem descobri como acender as lâmpadas individuais, por cima de cada poltrona. Chegámos a Casa Branca cerca das 23 h 15 m. Aí tivemos de mudar para a automotora, pois o comboio seguia para Beja. Que transição entre a carruagem deste e o compartimento daquela (viajava em 1ª classe). Um forte e incomodativo cheiro a gasóleo, as poltronas cobertas com panos sujos, amarfanhados, mal colocados. Ao fim duns vinte minutos foi a chegada a Évora. (NSF - 1968.09.09)
"Atenção, senhores passageiros, o comboio estacionado na linha nº 2, com destino ao Alentejo, vai partir dentro de momentos." A voz no alto-falante cala-se. Devem ser quase 19:05. Ei-las. Um sacão, um rolar suave, cada vez mais rápido e [compassado], tac-tac, paredes, comboios, postes, linhas e luzes deslizando pela janela. O cobrador vem "revisar" os bilhetes (ena, que rapidez!).
Mudo de lugar, pois o revisor diz-me que não pode ligar a luz por cima de mim; entretanto dois passageiros foram recambiados para a 2ª classe. Perto de mim um homem lê um livro de histórias aos quadrinhos, tira o casaco e dá-me uma ideia que aproveitarei daqui a pouco, pois está calor. Estou com sede e é pena o comboio não ter bar. A luz da carruagem - que sacoleja muito - é fraca, quase de velório.
(...) Apitam comboios e ouvem-se vozes altas. São 21:05 em Casa Branca, onde acaba de chegar o comboio de Beja. As carruagens para Évora já estão separadas das que seguirão para aquela cidade. O cais está molhado e deve ter chovido para estas bandas.
O bar da estação continua a mesma confusão no atender dos clientes, que sempre lhe conheci: a malta amontoada ao balcão corrido de mármore, molhado do pano gorduroso que o "limpou" O homem afadiga-.se a vender bifanas, cervejas, refrigerantes e cafés. Atende-nos sem critério, na sua calma fleumática, atropelando a ordem de chegada. Os fregueses impacientam-se, nervosos, um olho no patrão, outro no comboio, não vá este desandar inopinadamente. Finalmente o comboio põe-se em marcha e balança mais que navio em mar tempestuoso (NID - 1974.01.09 - ?) (1)
1 - As viagens faziam-se em carruagens velhíssimas, como refiro a propósito doutra viagem (MCG - 1973.01.04). Carruagens sem aquecimento, com bancos corridos, cada um com portas laterais nos extremos, como se vê nos filmes dos anos 40. Havia dessas carruagens também na linha Barreiro - Setúbal. Quando a viagem para Évora era nocturna, na Casa Branca havia apenas uma sala gélida à espera para recostar o corpo e um bar fechado para aconchegar o estômago. Na 1ª classe da automotora, na qual viajava habitualmente, o tecido dos bancos era nojentamente gorduroso, os encostos para a cabeça já não brancos mas encardidos. Nada de semelhante nas linhas para Beja ou de Lisboa-Porto ou do Estoril.
DEPOIS DA FEIRA
Vão vagos pela estrada,
Cantando sem razão
A última esp'rança dada
Á última ilusão.
Não significam nada
Mimos e bobos são.
Vão juntos e diversos
Sob um luar de ver,
Em que sonhos imersos
Não saberão dizer,
E cantam aqueles versos
Que lembram sem querer.
Pajens de um morto mito,
Tão líricos, tão sós !
Não têm na voz um grito,
Mal têm a própria voz;
E ignora-os o infinito
Que nos ignora a nós.
Fernando Pessoa
Olá, amiga.
Notei apenas que a despedida foi um aperto de mão e tu no passeio enquanto me afastava. Há "coisas" que me ultrapassam, sinceramente! NÃO QUERO mais apertos de mão no futuro [na aldeia, os beijos em público eram tabu]. (MCG – 1974.01.14)
Motivo do postal - Évora, Praça do Giraldo e Montepio Geral
Pela fotografia não parece mas hoje é mesmo dia de S.Porco, i.e., 3ª feira ([1]). Já viste como seria pouco agradável o Giraldo ... se cheio daqueles chaparros "cinzentos como cepos sem vida" ? Estou aqui no café aguardando a sobremesa; o "rancho" melhorou um pouco, depois da saída do Aguilar e do Moura neste fim-de-semana. Vamos ver quando chegará a minha vez.
Amanhã de manhã vamos à [fábrica da ] Siemens tratar das "massas" e saber de trabalho. [estágio de fim de curso – trabalho conjunto meu, do Emílio Guerreiro e do Aníbal Queiroga] Recebi hoje uma visita do Carlos [Nunes da Ponte]. 'Tadinho, está mesmo a fazer [o estágio de fim de curso] um trabalho de escravo, sem promessa de remuneração. [o nosso, meu, do Emídio Guerreiro e do Aníal Queiroa, na Siemens, era pago de acordo com o previamente acordado entre nós e aquela empresa]
Antão, a "pestezinha" ([2]) sempre levou a dele avante e foi até à Tele-Escola ? Ele sabe-a toda. Olarilas! Um "bacalhau" para ele. Saudações a tua mãe. Saudades minhas. Para ti beijinhos do VM (MCG – 1974.01.15)
A manhã hoje estava frigidíssima (passe a força de expressão) e agora à noite está húmido. Um princípio de resfriado está-me entrando no corpo, consequência talvez da frialdade da sala da Câmara [Municipal] onde temos estado a trabalhar. Não sabia que havia tantos emigrantes eborenses para a Suiça! (MCG - 1974.01.16)
Li o princípio e o fim da "Casa da Boneca", de Ibsen. Não tive paciência para ler o meio, pelo que fiquei sem saber como tinha ela (a Nora) arranjado as "massas". Se te lembras, diz-me, OK? [Devo ter levado o livro para a Celeste ler e não devo ter tido tempo de lê-lo na íntegra] (MCG - 1974.01.16)
A tua carta recebida ontem traz em si [...]
Isto foi um postal nunca enviado, apesar de começado (há muito tempo atrás) Mas o postal da Rua da Abadia que vai junto não é alegre, mas mesmo que eu esteja triste ou aborrecido, não gosto de tragédias.
Queria pois enviar-te um postal bonito, mas este foi o único que encontrei ali na gaveta. Aqui fica com um beijinho do VM (MCG – 1974.01.18)
De Évora, esta rua (da Abadia) é um símbolo. São quase 20 h e em mim uma grande má disposição. Do trabalho que neste momento estamos fazendo: (1) um grande enfado e contrariedade. Aquilo é mesmo de enlouquecer. Ah! mas isto não pode continuar assim! Nunca pensei em tal monotonia; é quase como estar dias inteiros apertando a mesma porca numa linha de montagem numa fábrica de automóveis.
A minha mãe lê ali uma revista. Já houve tempestade. Sempre a mesma moínha [com a cunhada]. Safa! A tua saúde como vai? Queria estar contigo, mas não tenho já alegria e entusiasmo nenhuns nas minhas idas à Amareleja. Estou uma tal pilha de nervos que os meus sentimentos estão bloqueados.
Se o médico diz que tens isso, porque hás-de pensar em tragédias? (MCG – 1974.01.18)
(1) . Recolha, tratamento e análise com a respectiva síntese de dados estatísticos no âmbito do estágio [no nosso caso remunerado] de fim de curso na Siemens. Era um trabalho conjunto de 3 estagiários admitidos naquela empresa fabril - eu, o Emídio Guerreiro e o Aníbal Queiroga. O trabalho, dactilografado na secretaria do ISESE, foi publicado numa revista alemã mas não fiquei com qualquer cópia
Motivo do postal - Évora, Praça do Giraldo e Igreja de Santo Antão - A fotografia é antiga! Não parece ! Mas ... a cerca da fonte já não é assim e o táxi (1º) já não existe. Também as motorizadas já não param no topo do tabuleiro. A indumentária das pessoas e a esplanada defronte do "Diana" indicam que é Verão !
Eis aqui a célebre Praça do Giraldo, o local que os meus pés mais têm calcorreado. É sábado e estou jantando. Este fim-de-semana foi um pouco "chocho". A semana passada houve uma boa peça de teatro (O Amigo do Povo) e um filme a ver (O Espantalho). Esta semana, nada. Enfim. Por mero acaso integrámo-nos numa das visitas guiadas do Túlio Espanca. Mais duas igrejas visitadas. Amanhã é domingo (já é ontem, não?). Vê lá como o tempo passa e as coisas acontecem.
POENTE
No postigo do monte
inquieto rosto acode
espreitando para longe
o descampado aberto.
(Quem vem lá na distância,
Que nem a seara mexe
nem o pó se levanta
dos caminhos sem vento ? ...)
Manuel da Fonseca
É ao anoitecer. Ouço uma sessão de órgão que o Carlos [Nunes da Ponte] gravou para mim vai para uns 2 anos. Os óculos encavalitados no nariz, a minha mãe [aqui no meu qurto] vai lendo um trabalho meu sobre "A ocupação portuguesa de Angola"
Este é mais um postal [Évora, Praça do Giraldo] para o álbum. Beijinhos do VM
É uma fotografia bonita, não é ?! (MCG – 1974.01.21)
(...) Por cá também, o nevoeiro (e o frio) dão aos dias características verdadeiramente invernais. Ontem à noite o frio era tal que ao entrar no Arcada fiquei subitamente sem visão. Mas não haja cuidado, pois foram as lentes que se embaciaram [repentinamente]. (MCG - 1974.01.23)
Á noite fui ver o filme da TV - "O Fugitivo", do John Ford. (1) Aquelas audiências lá em baixo [na sala de jantar da D. Vitória] são muito comentadas. Então com o filme de ontem! Um filme exemplar, não haja dúvidas. Lá estava dito porque eram perseguidos os padres (pregavam a resignação e a humildade, com a promessa dum reino melhor ... no outro mundo. Claro que tal "resignação" favorecia os latifundiários lá do sítio, mas isso o legendador não escreveu, talvez porque lá não fosse dito ou mostrado). Mas o que a Isabel e a Adélia retinham era o comportamento do tenente da polícia, matando tantos inocentinhos, um patife que seduzira e abandonara uma rapariguinha tão girinha como era a Maria Dolores, de resto vítima da soldadesca, na cantina; por isso a Adélia se revoltava contra as revoluções e o derramamento de sangue (como na Rússia, onde não há liberdade e são materialistas, segundo ela)
Enfim ... assim se vai vai prevenindo a revolução - que a PIDE e a Polícia poderiam, doutro modo, não chegar para as "encomendas". E o assaltante americano, coitadinho, que ladrão, sim, castigado, sim, mas ... protector da religião. (MCG - 1974.01.23)
(1) Fiilme de John Ford, realizado em 1947, com Pedro Armendariz, Henry Fonda e Dolores del Rio. Durante uma revolução num país da América Latina um padre é traído e para escapar à perseguição refugia-se junto duma índia, para depois, face ao apelo de quem o traíra, moribundo, ir dar-lhe a extrema-unção.
Motivo do postal – Évora, Sé Catedral - Com este se terminam os postais de "jeito" que tinha para enviar-te, aqui em cima da mesa, cuja papelada e livralhada acabei de arrumar, para ganhar um pouco de campo para estudar. Preciso de arranjar mais um ou dois caixotes para arrumar a tralha.
Perguntas-me quem é a "pequenitates" ? É uma miúda baixinha, que "mora" ali no quarto que foi teu e da Bia [Almeida]. Não sei o nome dela! A minha mãe já recebeu as fotografias da viagem pelo Norte, no mês passado. Ainda não as vi. Já te expliquei que não precisas de devolver a revista. Mas por força hás-de fazer a tua. Não te esqueças das fotografias da revista que tens na Escola. (MCG – 1974.01.24)
O soalho está molhado. Lá fora chove, um homem, eufórico, está com uma conversa parva ali ao telefone (deve ser com uma rapariga). O Luís entra e cumprimenta-me. Escrevo nos joelhos, aqui na tabacaria da esquina, pois a escrivaninha está ocupada. Acabei de jantar no Arcada com o João Luís e a Filomena. Detesto comer naquela cave abominável, sem janelas. Também estou farto de gabardinas e casacos, que prendem os movimentos. (MCG - 1974.01.28)
Porto de embarcações ao poente (ou nascente?) [motivo do postal] - Isto dum tipo tomar banho com cheirinho a peixe .... Bem. tenho de mudar de caneta [de tinta permanente], pois a outra já me começava a sujar o indicador direito. No gira-discos o José Afonso canta agora um poema do Luís de Camões. O [José Emídio] Guerreiro está ali vendo postais. Daqui a pouco vou jantar. Deixei de jantar lá em baixo. Amanhã devemos acabar o trabalho na Caixa de Previdência. Entretanto no próximo dia 15 de Fevereiro haverá eleições na Associação de Estudantes. Convidaram-me para Presidente da Mesa da Assembleia Geral. Quero ver se hoje consigo pôr a correspondência em dia. Amanhã devo ir até ao Liceu; vamos lá ver que tal a comida. (MCG – 1974.01.29)
SAFA! Estou mesmo saturado. Horas, desde há dias, passando apontamentos. A manhã de hoje quase toda de pé, na Caixa. Frio e chuva autenticamente invernais. As botas [caneleiras] encharcadas. Procurei um postal "decente" mas este foi o melhor que se arranjou. Volto o postal e reparo que ... a miúda está de sombrinha. Mas não deve ser ... inverno.
Fui hoje ao Liceu. Amanhã estreio as refeições na cantina do dito. Vamos ver que tal a comida. Apetecia-me hoje ir a casa de alguém, com uma poltrona confortável, ouvir música e conversar. Talvez telefone ao Carlos [Nunes da Ponte]. A partir de 6ª feira os jornais diários passam a custar 2$50. Tudo aumenta, minha gente.
Junto te envio um recorte do Urbano [Tavares Rodrigues] no [Diário de] "Lisboa" de hoje. Bem, vou jantar que o espaço acabou. (MCG – 1974.01.30)
Imbondeiro, ao pôr do sol (?) [motivo do postal] - O imbondeiro é o símbolo de Angola, pretendem alguns. Também o pôr-do-sol nos trópicos é algo de maravilhoso. E então para quem morava à beira-mar!
O Carlos [Nunes da Ponte] acabou de sair. Esteve aqui no paleio. Está frio; o quarto é grande demais para os 750 W do aquecedor. Ando num estado de tensão quase insuportável. Ainda não falei nem com o [Chico] Lucas nem com a Ana. Preciso simultaneamente de descontrair e de estudar. Sobretudo de descontrair. Precisava de um carro para sair de Évora, sem sujeições aos outros [boleias] ou às camionetas.
Fui ao Liceu falar com o reitor para poder almoçar na cantina. Comi lá hoje pela 1ª vez: foi saboroso. Custa 7 $ 50 a refeição. Não há jantares. Não deverei aceitar a Presidência da Mesa da Assembleia Geral [da Associação de Estudantes] Poderei trabalhar se for caso disso, mas sem cargos. Não sei se irei à Amareleja. Logo se verá. (MCG – 1974.01.30)
Mercado de louça de Barcelos [motivo do postal] - Estou aqui no Arcada. Na mesa ao lado o João, a Filomena e companhia folheiam e comentam uma revista brasileira. Vim há pouco de casa do Xico, que não volta aí senão pelo Carnaval. Quanto à Ana, ainda não sabe se vai. Estou chateado. Primeiro porque cada vez gosto menos das pessoas da Amareleja e daí. Para além do provincianismo, o sentir-me estranho. E depois também me começa a chatear o sistema das boleias e ficar em casa do sr. Cachopo [era uma mercearia que alugava um quarto a mim e outro ao motorista da carreira entre Évora e a aldeia].
Enfim, ... isto está mau. Não fosses tu e facilmente iria tomar ares para bandas onde não me sentisse tão deslocado.
Por causa do nosso trabalho [estágio na Siemens] fomos hoje falar com as big bosses do Liceu e Escolas. Também ao Magistério, cujo director teve uma saída ... que muito dificilmente consegui suster o riso. Depois te conto.
Sinto-me cansado e, porque não dizê-lo ... não interessa escrever-te "desamparado". Tudo isto vai de mal a pior. E parece-me que estamos longe um do outro. (MCG – 1974.02.07)
O sol tenta romper o cinzento carregado de chuva, mas em vão. Acordei hoje ao som de catadupas de água [à tarde o sol descobriu e o céu azulou]. Quase um dilúvio que encherá ali a barragem do Divor, livrando-nos da água sabendo a peixe. Já não era sem tempo.
Chegámos [da Amareleja] pouco antes das 22 horas. No Arcada o João [Garcia], a Filomena, o Camilo, o Zé Pinto, o Ribeiro, o "Chinês" e o irmão cantavam em coro desde as cantiguinhas da primária ("Ó Rosa, arredonda a saia", "Tia Anica de Loulé"...) às excursionistas ("Santa Catarina", "Rapsódia Portuguesa"...) passando por cânticos gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da Beira Baixa. Enfim, uma grande audição, no café cheio e entretido com outros assuntos. (MCG - 1974.02.11)
Aqui na Torre de Coelheiros, novamente após 5 anos. Já parou de chover torrencialmente, mas o vento sopra com bastante força. Estou aqui na secretaria da Casa do Povo, um edifício inaugurado há cerca de 13 meses.(o que se deduz da lápide comemorativa) (...) O escriturário está ali na escrivaninha em frente trabalhando - é um rapaz novo que prefere o sossego do campo ao bulício da cidade - e a ajudante do médico está aqui defronte de mim lendo uma papelada; acabou de fazer um curativo a um homem que por aí apareceu. A nova sede tem uma sala de espectáculos - no palco uma televisão, ali, sozinha, no meio. Quatro a cinco telespectadores por noite, cinema aos sábados, cada quinze dias. Tem também uma sala de leitura, com um jogo de damas, um quadro na parede e estantes quase vazias, salvo alguns livros (de propaganda) e folhetos cheios de pó. Há uns 30 e tal livros mas são da Junta Central das Casas do Povo e estão arrumados, não vão estragar-se ou desaparecer. Onde estou é a sala da secretaria, com uma parede de vidros, dando para a sala de espera do consultório. Do outro lado, a sala de consultas (com um gabinete de radioscopia que tudo leva a crer continuará ainda por muito tempo como sala vazia) e a sala dos tratamentos (com um gabinete de esterilização nome pomposo duma saleta que tem um lavatório de alumínio e um cilindro para aquecer água).
Para ver na aldeia, o "castelo", como chamam a uma casa nobre, com uma torre de menagem, dum nobre qualquer. Nela funcionam a escola e a telescola. Desisti de ir visitá-lo. No resto é uma aldeia como as outras. Os jovens marcharam em busca de outros ares e ficaram as mulheres, os inválidos e os velhotes. (1) (MCG - 1974.02.12 )
1 - Na véspera, em Valverde, Évora, houve um debate animado entre o [Emídio] Guerreiro e dois regentes agrícolas, professores na Escola de Regentes Agrícolas, sendo um deles proprietário. Este, mais velhote, encerrou-se num beco sem saída: o Alentejo não tem condições para a agricultura. Não tem e não tem! Pronto! Nem há possibilidade de reconversão agrícola ou de reforma agrária. A experiência do Eng.º Canelas? [nosso professor de Gestão de Empresas Agrícolas e que nos tem proporcionado – aos seus alunos - visitas de estudo a empresas agrícolas “novas”] A ver vamos (ele há de falhar, deixem estar, estava implícito na sua resposta. "Isso é porque tem o dinheiro da CUF e não apanhou ainda um mau ano agrícola”. Enfim, viva a rotina! (MCG -1974.02.11)
A D. Vitória levou me hoje ao quarto uma dose de arroz doce. Ah!Ah!Ah! (MCG - 1974.02.16)
Ontem fui à ópera com o Carlos [Nunes da Ponte] e duas das suas amigas. Uma borracheira: cantaram trechos de árias dos dois primeiros actos da Traviata, sem cenários. O 3º acto foi representado integralmente, com cenários improvisados. Orquestra não havia - o acompanhamento era ao piano. O espectáculo foi promovido pela FNAT. No camarote ao lado do meu ficou o dr. Cabral, delegado do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, que num intervalo me pediu a opinião. Coitado, está com azar, porque não me coibi de dizer-lhe o que pensava da "história". (MCG - 1974.02.16)
Comprei sábado passado um livro de Desmond Morris, - "O Casal a Nú", cuja leitura achei interessante. Pretende ser um estudo psicológico dos gestos das pessoas, "desde a amável pancadinha nas costas ... do formal aperto de mão á cópula mais apaixonada". Na sua obra o autor procura interpretar o significado dos gestos humanos, buscando o tal significado nos animais ou na história dos costumes humanos, vendo como a maioria deles, embora frequentemente estilizados, correspondem ou antes, pretendem transmitir uma mensagem, com o seu código de leitura. (MCG - 1974.02.17)
Cheguei agora do cinema (1): um "croupier" assalta um milionário à saída do casino onde este ganhava uma fortuna. Uma mulher é testemunha do assalto e o "croupier" passa a ser vítima da chantagem dela: o silêncio em troca do seu "amor". Entretanto a polícia (paga pelo milionário), investiga e o rapaz tenta escapar-se à teia em que se viu envolvido. Assim, torna a mulher (ex esposa do milionário) sua cúmplice numa tentativa de homicídio do milionário. Ficam quites, mas perde o dinheiro roubado que já lá não está enterrado (retirado, penso eu, pela mulher). Volta assim às mesas de jogo do casino, para dar dinheiro aos outros. O único beneficiário foi, aparentemente, a polícia. Enfim ... não percebi lá muito bem o contra golpe final. (1974.02.17)
1 - Título não registado
(humorístico) menino piscando um olho, com latas velhas em redor [motivo do postal] -Ora viva, então como vai essa cabecinha destemperada? Fiquei verdadeiramente surpreendido com o teu despropósito. Mas que teve o mérito de mostrar quantos confusionismos tens a meu respeito!
Voltaremos á tua carta de hoje. Não agora; mas precisamos mesmo de conversar. Hoje, nada mais tenho para dizer-te. Um abraço (MCG - 1974.02.18)
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)