quarta-feira, 20 de março de 2013

Victor Nogueira - registos da vida em lisboa de 1970 a 1973

de Victor Nogueira (Notas) - Quarta-feira, 20 de Março de 2013 às 0:18


Cá vou partilhando as minhas notas, que poucos comentários suscitam. Será da vida ou da crise. Assim ... adelante !.
 
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Expulsão de Maurice Béjart - Comunicado do SNI (Secretariado Nacional da Informação), publicado nos jornais vespertinos de 9 Junho 1968: "Durante o espectáculo duma companhia estrangeira, realizado em Lisboa, na noite de 6 do corrente, foram dirigidas à juventude exortações derrotistas e tomadas posições de especulação política inteiramente estranhas ao próprio espectáculo.

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Perante a luta que temos de manter em defesa da integridade nacional, não pode consentir‑se que uma companhia estrangeira aproveite, abusivamente, um palco português para contrariar objectivos nacionais.

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As autoridades foram assim forçadas a impedir a permanência em território português do súbdito estrangeiro responsável por aquele espectáculo" (NSF - 1968.07.02)

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Há dias um comunicado nos jornais informava que um dos bailarinos da Companhia do Maurice Béjart tinha sido expulso de Portugal por, durante um espectáculo, ter-se imiscuído na política do Governo Português e ter incitado a juventude à subversão.

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Segundo as informações que tenho, de fonte não oficial, ele teria simplesmente comunicado ao público o assassinato de Robert Kennedy vítima dos fascistas, e pedido um minuto de silêncio contra todos os regimes fascistas e ditatoriais existentes no Mundo. (NSF - 1968.06.24)


 


 

Reli o "Diário de Anne Frank", cujos problemas eram os meus quando adolescente. Estava a relê-lo e a lembrar me-também das conversas da Maria Antónia comigo. Li também "A Velhice do Padre Eterno", de Junqueiro. Este teve melhor sorte que um outro exemplar, que o zelo católico da minha mãe houve por bem rasgar. Nada lhe acho de chocante. Parece me que será mais evangélico que muitas obras piedosas que se alinham em casa do meu avô Barroso. Fui forçado a mudar a minha opinião acerca de (alguns) livros da [Biblioteca] RTP. Gostei do Fernando Namora e, sobretudo, do Branquinho da Fonseca (excepcional a descrição feita no 3º e 4º parágrafos do conto "Um Pobre Homem"). A venda dos "Esteiros" de Soeiro Pereira Gomes foi proibida em Angola. Duvido que chegue também "O Valente Soldado Chveik". (NSM - 1971.09.03)
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Temos depois os novos: o Nuno, licenciado em Económicas, que me aturou algumas neuras nos meus tempos de Lisboa, e a Ana Maria que, minha companheira na cantina de Económicas, à mesa, casou com ele o ano passado. E a Maria Antónia,  agora ausente na Metrópole. (...) Gosto de conversar com ela, talvez pela ingenuidade e naturalidade dos seus 18 anos e da cordialidade das nossas relações, embora me aborreça um certo ar de "mais velho" que assumo. Penso que talvez funcione para ela com um - eu diria - irmão mais velho com quem fala à vontade de assuntos ... que normalmente me habituei a não abordar!

 

Todos estes e tantos outros fazem me sentir o desconforto do meu exílio em Portugal, mais precisamente em Évora. Estou cansado dele! (NSM - 1971.12.01/03)

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Toda a vida é uma enorme representação teatral, um palco mundano. (Lembras‑te, Shakespeare? Lembras‑te, Stau Monteiro da "Angústia para o Jantar"?  (NSM - 1971.12.03)

 

 Mestre "Cuca" I - Estou com um grave problema, pois já me esqueci das recomendações das minhas tias (eu bem lhes disse para deixarem‑mas escritas): será que as batatas se põem ao lume durante 15 minutos? E quanto ao feijão-verde? Deita‑se no tacho quando a água ferver. E depois? Continua? Apaga‑se o lume? Bem, o que for se verá! (MCG - 1972.08.23)
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Gosto do Eça de Queiroz, da sua lucidez e da sua ironia. (...) Comprei um romance, "O Mandarim" e três livros de notas: "Cartas Familiares e Bilhetes de Paris", "Echos de Paris" e "Notas Contemporâneas" . (MCG - 1972.09.06).Lembro me duma das passagens do "Diário" de Anne Frank, na qual esta se refere ou faz uma ode à sua querida caneta desaparecida. (MCG - 1972.11.08)
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.As "Crónicas" do Fernão Lopes são um prazer de leitura e linguagem. (MCG - 1972.12.09)
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[Comprei] uma antologia do "Deccameron", de Bocaccio, autor italiano medieval. Um primor! (MCG - 1973.01.06)
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Comprei hoje um livro muito interessante - ou não fosse satírico - e que tem levantado uma grande celeuma, originando um discurso do Casal Ribeiro, na Assembleia Nacional; este senhor é salazarista ferrenho e de boa memória, venerador e obrigado, e o livro é um gozo pegado sobre o Governo de Salazar. O livro "Dinossauro Excelentíssimo". O autor - José Cardoso Pires. Comprei também "Novelas do Deccameron", selecção de novelas dum escritor italiano medieval - Boccacio - de quem já lera uma outra antologia - "Histórias Eróticas" (Editorial Inova). Do ponto de vista estilístico gostei mais do primeiro (como a das "Crónicas" do Fernão Lopes). Mas o último tem novelas não contidas no outro e simplesmente deliciosas! Pena terem adaptado a linguagem medieval à dos nossos dias. (MCG - 1973.01.22)
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Ando a ler um "Livro Vermelho dos Cábulas" e farto me de rir. (MCG - 1973.03.28)
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Que dizes a esta poesia ("Impossível") cheirando a fins do séc.XIX? Parece me que o Cesário Verde, pelos outros poemas, consegue retratar fielmente o ambiente da burguesia do seu tempo - que Eça de Queiroz retratou também, admiravelmente, nos seus romances. Mas Eça era satírico, mantinha-se alheado daquilo que escrevia. Enquanto que o Cesário parece viver aquilo, não só o ridículo, o mau gosto (a meus olhos) duma certa maneira de sentir e de agir. Para além disto, as pessoas miseráveis, a cidade, o povo, aparecem e perpassam pelos seus versos, muitas vezes contrapostos aos delíquios e aos sentimentos da pequena (e abominável, ridícula) pequena burguesia - que aspira a ser aquilo que não é, a uma grandeza que não tem e para que não foi talhada, porque apenas vivendo de exterioridades e aparências, sem uma vivência autêntica. (MCG - 1973.06.28 B)
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Comprei hoje o "Elogio da Loucura", de Erasmo. Foi escrito no séc.XVI e tem partes muito interessantes (ou não apreciasse eu a ironia e o humor!) (MCG - 1973.07.24)
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Mudei hoje de poiso [nos Olivais, em casa da família Pacheco]; trouxe a máquina [de escrever] da sala de jantar para a saleta onde durmo. São já 15 horas e pela persiana entreaberta entram os gritos e o chapinhar das pessoas nas águas da piscina, juntamente com o ronronar dos automóveis ali na Avenida de Berlim. Setembro chegou e com ele se foi o calor e veio esta temperatura amena que prenuncia o Outono. É agora tempo bom para os passeios e os jovens casais que passam pelas ruas, pelos jardins e pelos corredores do metropolitano, enlaçados, joviais ou simplesmente de mãos dadas aumentam, por vezes, a minha solidão e o desejo duma outra vida. Que nada tem a ver com esta esterilidade e desengano em que me encontro. (MCG - 1973.09.10).
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Os jornais de ontem noticiaram o suicídio do Presidente  Salvador Allende da  República do Chile, marxista eleito há três anos. Pretendia instaurar no Chile uma sociedade socialista, num processo evolutivo de transformação das actuais estruturas sociais. A sua experiência pretendia instaurar uma nova ordem social respeitando o ordenamento jurídico legal da ordem social que pretendia transformar. (MCG - 1973.09.13)
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Acabei de ler o último livro da Unibolso - de Aldous Huxley, "Admirável Mundo Novo". Um pouco na linha de um outro que originou um filme: "Fahrneit 451 - Grau de Destruição". (MCG - 1973.11.08)
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Acabei de ler um livro que apreciei imenso: "Cem Anos de Solidão", de Gabriel Garcia Marquez, que relata a vida duma família (os Buendía) que fundam uma aldeia (Macondo), i.e., desde que fundaram a aldeia até ao seu desaparecimento. Para além das análises psicológica e sociológica das personagens e da vida da aldeia (e a repercussão dos acontecimentos exteriores), interessou-me o "misterioso" que perpassa ao longo das páginas, cujo significado surge nas linhas finais. (MCG - 1973.09.14).
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A malta de Lisboa - É quase meia noite. (...) Hoje não me apetece nada ir a Lisboa! Lisboa é andar dum lado para o outro, a azáfama sem sentido. Outrora era a Universidade e a Associação dos Estudantes [do ISCEF] e o cinema. Depois, já em Évora, era a Emília [Dias] e os nossos almoços e as conversas sobre o momento político e o movimento estudantil. (1) A ela se juntou o Luís Filipe, que andava comigo no 1º ano de Sociologia. Mas ... a Emília passou e a sua presença amiga e gentil é a lembrança da mulher e do afecto que não tenho nem consigo dar. O Luís Filipe é a divergência de caminhos: a minha radicalização - ao menos teórica e intelectual - e a sua aceitação desta sociedade, revelada no curso que tirou, no emprego que arranjou, na vida que levará. (MCG - 1973.11.16)

 

IMPRESSÕES SOBRE AS MINHAS VINDAS AO HOSPITAL [DO ULTRAMAR]
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As obras, novo edifício, desde a antiga entrada principal até ao antigo pavilhão. As filas de espera. As precedências. Da inutilidade de ser dos primeiros, por causa das categorias. As "habilidadezinhas" para sair-se da bicha. O encontro com a enfermeira de Luanda. A história da outra vez. A história desta vez. O mano do mano (que sou eu)
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O pequeno jardim nas traseiras. A calma e o sossego, sentado num dos bancos, o chilrear dos pássaros e o ruído dos carros passando lá em baixo. O jardim é quadrangular. Três topos estão ocupados com edifícios térreos, com, inúmeras portas e alguns aparelhos de ar condicionado. No outro topo, para o qual estou voltado, avista-se, por entre os edifícios da capela e do hospital, por entre as árvores desfolhadas, a Ponte e o Cristo Rei. O jardim tem uma árvore grande, debaixo da qual escrevo, e algumas outras pequenas. Outras pequenas árvores, o relvado, a fonte, flores cor de laranja nas áleas empedradas. Aqui perto de mim um homem de chapéu e cigarro na boca, vai arrancando a erva que cresce por entre o empedrado. Trabalho lento, entremeado de conversa. O Nuno, que me cravou desenhos e agora não me larga. Deixou de ir para casa. A conversa da tia ou mãe: "De onde conheces esse senhor para estares a falar com ele?". A miúda com a cara queimada, de ar triste e casaco encarnado, que não fui capaz de acarinhar. O Nuno não me deixa escrever, empoleirado em mim, que lhe faça desenhos e faz-me inúmeras perguntas. O meu nome, porquê? Que faço ? Que são férias ? Se ando no trabalho, onde moro. Passam pessoas, que vão à junta [médica], que caso a pessoa esteja doente (!) permite o prolongamento da licença graciosa. O sal que deitam para que a erva não cresça, mas cujo efeito dura apenas dois meses. A história de Átila, o flagelo de Deus. O tempo que se espera inutilmente. (NOT - s/ data - 1972/73 ?)
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NA SALA DE ESPERA (DO HOSPITAL DO ULTRAMAR - Sala rectangular, de paredes azuladas, com bancos ao longo das paredes e outros como o dos comboios, face a face. Nas paredes gravuras de pássaros e flores, algumas já descaídas nas molduras. As luzes estão acesas e o ar aquecido, de calorífero que se não justifica. De vez em quando as enfermeiras berram desagradavelmente, no corredor ou à porta da sala, pelo nome dos doentes. A maior parte dos "esperantes" estão com um ar cerrado, imersos nos seus pensamentos, lábios descaídos. Um ar bestialmente entediado. Algumas, poucas, conversas entre si e os seus rostos assumem uma ar mais animado. Eu cheio de calor - e hoje não trouxe gabardina - e elas, na sua maioria, em grossos e quentes casacões. Estou a ficar mais mal disposto, ansioso por pôr-me a mexer daqui para fora. Não fora preocupar-me a dormideira que se apodera do meu braço direito nestes últimos dias e punha-me a mexer. Detesto vir ao médico e ao hospital. (NOT - s/data - 1972/73 ?)
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 1 - Após o 25 de Abril de 1974 passou a designar se Hospital Egas Moniz.
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Era no Hospital do Ultramar que os estudantes das colónias tinham direito a assistência médica. Também consultava em Lisboa o Dr. Dinis da Gama, que fora meu médico em Luanda praticamente desde o meu nascimento. Penso que tb tinha direito a assistência médica na Casa do Povo de Évora ou similar, onde uma vez o oftalmologista - daqueles médicos do antigamente, intimidantes, arrogantes e que tratavam toda a gente por "tu" me perguntou pelos óculos que me receitara em consulta anterior Respondi-lhe que os não aviara pk não tinha dinheiro. O homem reagiu à bruta e pôs-me fora do consultório, que não estava para perder tempo com pessoas que não seguiam as suas receitas (ou algo do género). Saí e dirigi-me à enfermeira pedindo que me dissesse o nome do médico e a nova interpelação dela disse que ia participar dele. A enfermeira tentou dissuadir-me e respondi-lhe que me desse o nome do médico pois eu não tinha que aturar a arrogância e falta de educação dele. A mulher, sem mo identificar, entrou no gabinete e voltou dizendo que o senhor doutor me ia atender. E pronto, o homem fez-me os exames, receitou novos óculos, despedimo-nos e assim escapou à minha participação.

 


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