O objectivo da viagem era a Benedita, terra onde existem muitas fábricas de calçado, incluindo botas caneleiras. Apenas 20 km que se transformaram numa eternidade, pelo meio da serra, ora subindo, ora descendo, curvando interminavelmente ora à direita, ora à esquerda, duas tiras de asfalto separadas ora por traço contínuo, ora por tracejado. Salir de Matos, Santa Catarina e Casal da Estrada foram ficando para trás, assim como setas indicativas de povoados mais para o interior: Casal disto, Casal daquilo, alguns relacionados com a Igreja, como Freiria, da Freira ou dos Frades.
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Finalmente surge a Benedita, que noutro tempo terá sido abençoada, mas que hoje é uma povoação incaracterística, com casas térreas, modestas, alternando com prédios de vários pisos. É já ao entardecer e as fábricas devem estar fechadas, pelo que procuramos sapatarias, acabando por escolher a do senhor Faustino, um velhote catita, que vai descendo o preço das botas de 6 mil e quinhentos escudos para 6 mil, quedando-se pelos ... 4 mil! Os sapatos custarão mais - 4 mil e oitocentos escudos - originando uma cena insólita: já não é o freguês que pede um abatimento mas sim o vendedor que pede um ... aumento, que não lhe concedo. E lá nos despedimos, com entrega dum cartão da sapataria - para a volta e recomendação aos amigos - e com oferta duma calçadeira ...de plástico. Usar botas baneleiras no inverno em dias de chuva é hábito que me fivou de évoraburgomedieval. As que deram origem a esta viagem ainda existem em 2013, para durar, apesar do uso,
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Regressar pela serra não é percurso que se torne apelativo pelo que, consultado o mapa das estradas, resolvemos ir até Rio Maior, passando por Venda das Raparigas, e daí inflectindo para poente, rumo a Óbidos. Nada me levaria propositadamente a Rio Maior, terra que ficou mal afamada para mim devido aoconservadorismo extremo dos seus habitantes nos tempos que se seguiram ao 25 de Abril: nessa altura, à beira da estrada, rumo ao Norte, as placas e os habitantes diziam: Aqui começa Portugal! enquanto se tornaram famosas as mocas de Rio Maior, com que se espancavam ou ameaçavam comunistas e afins. Nesse tempo o Alentejo da Reforma Agrária era a terra dos mouros, infiéis, e as cinturas industriais de Lisboa e Setúbal a Comuna de Lisboa, que Mário Soares e a direcção do PS, aliados á rede bombista de Spínola e ao cónego Melo, pretendiam fossem exterminadas a ferro e fogo. Mas isto é referido noutro local! (Notas de Viagem, 1997.12.02)
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Rio Maior
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Mas a povoação, onde chegámos já noite cerrada, revelou-se-me uma agradável surpresa. Um jardim aprazível, arborizado, onde outrora se realizava a Feira Nacional da Cebola, principal produto aí transaccionado, e que remonta aos tempos do senhor D. João V; num dos extremos deste campo situa‑se a nova igreja matriz.
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E já que falamos em cebolas, refira-se que a doçaria típica engloba o Pão‑de‑ló (de Rio Maior), os Leões de Rio Maior e as Delícias de Côco. As nogueiras que outrora abundavam na região originaram o Frango à Rio Maior (com nozes, evidentemente), destacando-se no campo dos vinhos os tintos, fortes e encorpados. Mas o que figura no brasão de armas são dois montículos de sal‑gema, importante recurso económico cuja exploração teria sido introduzida pelos árabes. Note-se aliás que toda esta região esteve outrora coberta por águas marinhas. ([1])
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Mas o passeio torna‑se mais demorado pelo núcleo primitivo da povoação, de que se registam nomes como os das travessas do Enxerto, da Raposa, da Estalagem, das Escadinhas, da Liberdade, dos Latoeiros, do Cotovelo, dos Casimiros, dos Carreiras, da Sualdeia (sic), do Açougue ... ruas como as do Norte, da Torre e da Boavista ... ou ladeiras como as das Milícias de Rio Maior e do Outeiro. Isto para não falar nas Escadinhas do Calvário e nas da Capela (da Senhora da Vitória). Não se vê quase ninguém nas ruas, quase todas pedonais, bem iluminadas, ladeadas de prédios brancos com cantaria. A planta da povoação assinala contudo nomes de outrora, como as ruas dr. António de Oliveira Salazar e da Legião Portuguesa, mas não procuro confirmar a sua existência, antes me dirigindo para o Largo da Ponte, onde os carros entram em perigosas derrapagens, para ver o curso de água que dá o nome à povoação e de cuja existência não suspeitava; trata‑se precisamente do rio Maior ou Asseca.
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Regressamos pela parte antiga, em busca dos Castelo e da Igreja Matriz. Encontro uma Igreja que presumo seja a da Misericórdia, que não parece um templo: não tem torre sineira que se veja, mas sim um modesto e quase invisível campanário lateral, mesmo junto ao Paço do Rei D. Miguel, em obras de recuperação. Do castelo nem cheiro, tal como em Alcobaça, efeitos talvez das visitas nocturnas. Nenhum dos passantes ouviu falar dele, nem mesmo os Guardas Republicanos, pelo que nos contentamos em ver o edifício da antiga Escola Comercial e, adjacente, a miniatura duma igreja, mais propriamente, a Capela da Senhora da Vitória, em cujo adro um telheiro protege escavações arqueológicas. Presumo que por estas bandas se situam as ruínas do castelo ou castro, mas a escuridão não dá para confirmar, a não ser que sejam as paredes postas a descoberto nas referidas escavações.
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Pelas ruas várias capelas, dos passos da procissão da crucificação de Cristo, um destes no Largo D. Maria II, datado de 1760. Aqui e ali, uma casa com escadaria exterior e alpendre, um larguito de sabor rural com árvores e bancos, aqui e ali uma chaminé decorada. ([2]) Agradável encontro é o da desafogada Praça do Comércio, com duas fontes, uma central e outra lateral, ambas com painéis de azulejos. Na 1ª figuram diversas vistas da povoação ou relacionadas com a extracção de sal e na outra, de 1931, representam-se cenas várias: lavadeiras junto ao rio, salineiros, junta de bois, carro de azeitonas, vista duma rua de Rio Maior.
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Desafogada é também a praça principal, a da República, com edifícios de vários estilos e traça mais recente, onde se destaca o novo edifício dos Paços do Concelho, inaugurado pelo (então) Presidente da República, dtr. (sic) Mário Soares. ([3]) (Notas de Viagem, 1997.12.02)
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Situada no interior, separada do mar por serranias, nesta região de Rio Maior se encontram salinas ... de sal gema. Águas subterrâneas atravessam jazidas de sal gema, águas que outrora eram puxadas para a superfície utilizando picotas e hoje através de força motriz. Dizem que é um espectáculo deslumbrante o do reflexo da luz nas águas das marinhas, mas como estas hoje não refulgem, a comparação com as salinas marinhas favorece estas. A extracção de sal é uma prática comunitária que ainda hoje subsiste em forma de cooperativa. Pensava que as cabanas de madeira seriam as moradas dos pescadores, mas não: eram os armazéns do sal, hoje em parte destinados a outros usos: cafés, colectividades, lojas de artesanato ... Numa destas uma jovem tricota e não nos dá grande atenção, mas na outra uma mulher de idade, neta dum salineiro, espraia‑se em explicações sobre os processos de extracção de sal, os utensílios utilizados: são precisos cinco dias de sol e vento para fabricar sal, de Maio a Agosto, tentando também vender‑nos recordações, incluindo reproduções das típicas fechaduras de Rio Maior, em madeira.
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Esta segunda visita a Rio Maior, ainda com luz diurna, quebrou o encanto pela povoação desperto na outra vez: as casas afinal estavam degradadas, as mazelas do branco das paredes sobressaiam... Enfim, um dos casos em que não há amor como o primeiro! De qualquer modo em resultado dela constato que as pirâmedes do brasão de armas representam montículos de sal, também reproduzidos em pedra na Praça da República. (Notas de Viagem, 1997.12.09)
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Alcobertas
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Sei que em Alcobertas há uma igreja que aproveitou uma anta e para lá nos dirigimos, pelo meio da serra erma e arborizada, ora subindo, ora descendo, pela serra de Candeeiros, sem vivalma que indique se vamos em bom caminho. Encontramos várias placas toponímicas azulejadas, como é característico desta região, até que finalmente surge Alcobertas, lá no fundo e numa curva da estrada, povoação cujas casas estão mal cuidadas e as ruas são um pandemónio.
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Lá descobrimos a igreja, num extremo da povoação, de traça moderna e sem especialidade, salvo a anta lateral. ([4]) Entro na Igreja às escuras e por pouco não fico lá encerrado. Mas acabam por acender-nos as luzes para apreciarmos o seu interior, modernizado, com três naves de dimensões diferentes, presumo que de utilização em função do número de fiéis.
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A anta, com 3 a 4 mil anos, foi capela mor, até ao século XVII/XVIII, quando o templo foi reconstruído e reorientado, passando então a capela lateral. Em meados do século XX novas intervençõesapagaram os testemunhos barrocos.
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Nesta região existem numerosos vestígios pré-históricos e grutas com estalactites e estalagmites que não visitámos então, por desconhecimento da sua existência e localização. (Notas de Viagem, 1997.12.09)
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[1] - As águas subterraneas salgadas até 1951 eram elevadas para as regueiras atrvés de picotas, actualmente substituidas por força motriz. È aquele sistema de elevação que se encontra reproduzido nalguns painéis de azulejos referidos mais adiante.
[2] - Os livros dizem que são chaminés historiadas.
[3] - A imagem do primitivo edifício original, com torre sineira central, figura num painel de azulejos na Praça do Comércio. Foi demolido para dar lugar ao presente.
[4] - Existem outros templos que fizeram o aproveitamento de antas, como a capela de S. Dinis, em Pavia, no Alentejo.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)