numa equipa de inquiridores do Gabinete de Planeamento do Ministério das Corporações e Previdência Social, num conjunto de inquéritos para a Caracterização Sociológica do Concelho de Arraiolos (1972 Novembro / 1973 Novembro).
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Sabugueiro
Escrevo dentro do carro, ao lusco-fusco, enquanto ouço os chocalhos do gado que recolhe. Cantam cigarras e há um certo sossego ao cair da noite. A minha vista ergue-se do papel e vagueia pelos campos verdejantes, muito arborizados, atravessados pelos postes (telefónicos? eléctricos?) onde se avistam os pirilampos das motorizadas e das máquinas agrícolas, quebrando a harmonia que de longe se ouve. Pelo carreiro onde parámos passam mulheres, ainda jovens, de negro vestidas, que deixam ao ar apenas a cara e as mãos trigueiras. Carregam umas, bilhas castanhas, apoiadas na anca, estevas outras. Todas menos uma, coloridamente vestida com um casaco e uma camisola, ambos de malha. Alguém passa assobiando, mas não é a miúdita transportando um balde tão grande quase como ela - passa e vai olhando para mim. Escrevo já à luz do carro: anoiteceu completamente. (MCG - 1973.03.22)
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Na camioneta para o Sabugueiro, aguardo a sua partida, no meio da vozearia fina da miudagem que a enche, de regresso a casa. (1973.11.08)
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Torre de Coelheiros
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Aqui na Torre de Coelheiros, novamente após 5 anos. Já parou de chover torrencialmente, mas o vento sopra com bastante força. Estou aqui na secretaria da Casa do Povo, um edifício inaugurado há cerca de 13 meses.(o que se deduz da lápide comemorativa] (...) O escriturário está ali na escrivaninha em frente trabalhando - é um rapaz novo que prefere o sossego do campo ao bulício da cidade - e a ajudante do médico está aqui defronte de mim lendo uma papelada; acabou de fazer um curativo a um homem que por aí apareceu.
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A nova sede tem uma sala de espectáculos - no palco uma televisão, ali, sozinha, no meio. Quatro a cinco telespectadores por noite, cinema aos sábados, cada quinze dias. Tem também uma sala de leitura, com um jogo de damas, um quadro na parede e estantes quase vazias, salvo alguns livros (de propaganda) e folhetos cheios de pó. Há uns 30 e tal livros mas são da Junta Central das Casas do Povo e estão arrumados, não vão estragar‑se ou desaparecer. Onde estou é a sala da secretaria, com uma parede de vidros, dando para a sala de espera do consultório. Do outro lado, a sala de consultas (com um gabinete de radioscopia que tudo leva a crer continuará ainda por muito tempo como sala vazia) e a sala dos tratamentos (com um gabinete de esterilização nome pomposo duma saleta que tem um lavatório de alumínio e um cilindro para aquecer água).
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Para ver na aldeia, o "castelo", como chamam a uma casa nobre, com uma torre de menagem, dum nobre qualquer. Nela funcionam a escola e a telescola. Desisti de ir visitá-lo. No resto é uma aldeia como as outras. Os jovens marcharam em busca de outros ares e ficaram as mulheres, os inválidos e os velhotes. ([1]) (MCG - 1974.02.12 )
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Vimieiro
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Encontrei no largo principal uma camioneta da biblioteca itinerante da Gulbenkian. Como não podia deixar de ser tive de lá meter o nariz. Cheirei os livros - bastante gastos pelo uso - e meti conversa com o funcionário. A sede daquela parece que é em Évora. (MCG - 1973.01.12) ([2])
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Aqui estou na Praça Dr. Oliveira Salazar, no Vimieiro, sentado num banco. São 19:45 e ouve‑se a algazarra das crianças pelas ruas e das mulheres falando. Passam miúdas, normalmente aos pares. No alto a lua é quase um círculo prateado, ao entardecer que vai esfriando. O Citroën 2 cavalos do Fialho está aqui ao pé. Daqui a pouco tenho de ir até à venda, ponto de encontro. Não me apetece estar lá, forasteiro. Antes esta quietude, esta serenidade do entardecer. Pássaros chilreiam e dois cães param além na esquina. Não é a primeira vez que estou nesta aldeia, tão grande ou maior que a Amareleja. Estou agora a fazer inquéritos à vida das famílias. (...).
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[Entro na taberna]: pedra ao longo das paredes, na altura de um homem, pintada de verde, um balcão corrido azulejado da mesma cor, uma ventoinha, um televisor e um frigorífico. Prateleiras cheias de garrafas, rebuçados e tabaco. Mesas oleadas e cadeiras, tresandando e brilhando de gordura. Em pé ao balcão ou sentados às mesas, homens que não primam pela elegância no vestir, bebem o seu copito e trocam o seu dedito de conversa.
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Só fiz um inquérito hoje. Um velhote de 72 anos, cabo reformado da GNR e ex-comandante do posto do Vimieiro. Muitos elogios ao Marcelo [Caetano] (já o carcereiro de Arraiolos me dissera: "Deus o conserve por muitos e bons anos"). Um casal de velhotes simpático, à moda antiga, que nunca bateram nos filhos, que no entanto tinham de andar na linha, nada de saídas nem bailes. (MCG - 1973.03.16)
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A exiguidade das terras só permite aos seus proprietários empregar, eventualmente, mão‑de‑obra assalariada , nomeadamente nos meses de maior trabalho: NOV / DEZ (apanha da azeitona) e MAIO / JUNHO (Ceifa). Outras tarefas que antigamente ocupavam muita gente estão em declínio, como é o caso da monda,, que no Inverno dava trabalho (mas tal já não sucede por causa das "químicas") Também a mecanização da ceifa (ceifeiras‑debulhadoras) diminui o número do pessoal empregado nessas tarefas.
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Nos períodos de ponta já existe dificuldade em recrutar mão‑de‑obra indiferenciada, em contraste com os tempos de outrora. Antigamente e segundo vários testemunhos recolhidos, p.ex., chegavam a juntar‑se duzentos trabalhadores na praça do Vimeiro frente ao posto da GNR implorando emprego e, na Igrejinha, normalmente apenas uns duzentos dos oitocentos trabalhadores conseguiam trabalho.
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A emigração terá sido a última resposta dos trabalhadores rurais a esta situação de miséria, permitindo aos que permaneceram auferirem melhores jornas e obrigando à mecanização dos trabalhos agrícolas.
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(...) E no entanto a crise da agricultura vem de longe, no tempo. Nos primeiros anos de 1930 (?!) a Direcção da Associação dos Trabalhadores Rurais, na Igrejinha, recebeu um ofício [do Governo] inquirindo de propostas para resolver as crises de trabalho: a divisão e o arrendamento das propriedades, foi a resposta. Dias depois, uma camioneta cheia de polícias armados parou à porta daquela Associação e levou presos os membros da Direcção, segundo o depoimento dum velhote que fazia parte dela e que me surpreendeu pelas referências feitas à CGT (Confederação Geral do Trabalho): "Ainda estivemos presos12 dias. Ora se eles queriam fechar a Associação, escusavam de estar com estas coisas. Eles podem, logo mandam". (...) Contudo outro inquirido afirmou, noutra ocasião: "Não, nunca associações de trabalhadores cá na Agricultura. Na Igrejinha? Não, isso começou aqui em Arraiolos. Quando foi da República, em 1910. Mas isso não resultou. O Presidente era analfabeto e fugiu com o dinheiro. Mas nunca houve associações dessas cá entre os trabalhadores. Nem na Igrejinha." (1973 - Inquéritos às Condições de Vida da População de Arraiolos)
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[1] - Na véspera, em Valverde, Évora, houve um debate animado entre o [Emídio] Guerreiro e dois regentes agrícolas, professores na Escola de Regentes Agrícolas, sendo um deles proprietário. Este, mais velhote, encerrou‑se num beco sem saída: o Alentejo não tem condições para a agricultura. Não tem e não tem! Pronto! Nem há possibilidade de reconversão agrícola ou de reforma agrária. A experiência do Eng.º Canelas (nosso professor de Gestão de Empresas Agrícolas, numa perspectiva capitalista)? A ver vamos (ele há‑de falhar, deixem estar, estava implícito na sua resposta. "Isso é porque tem o dinheiro da CUF e não apanhou ainda um mau ano agrícola. Enfim, viva a rotina! (MCG -1974.02.11)
[2] - Vimieiro - principal aldeia na área do município, com diversas igrejas.
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Vem aí novamente o cante…" ~~~ OUVIR AQUI http://www.youtube.com/watch?v=GBhgE3EMQy4
OU AQUI os mineirosde aljustrel http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=WCWc3V0YK_s
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)