4 de Janeiro de 2014 às 21:11
Setúbal - 1986
Paço de Arcos / Mindelo - 1993
Setúbal - 1993
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Setúbal
1986
Gostei que a Maria do Mar me tivesse telefonado hoje. Foi bom, depois de um fim-de-semana algo deprimido - às vezes também me dá a pancada - fim-de-semana em que saí apenas no sábado (para almoçar na Baixa, ver as montras e dar uma volta pela feira, ainda fechada), assim como no domingo, para comprar os jornais e o frango assado, que "repousa'' no frigorífico, para as emergências ou ataques extemporâneos de apetite. Fora isso, aproveitei para arrumar a minha livralhada toda (já não era sem tempo ) desde que a Celeste, vai para um ano, os retirou da entrada e os descarregou no que foi o quarto da minha sogra.
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Nos intervalos das arrumações vi os filmes todos que a TV apresentou, desde o "Ivanhoe" até a "Marty" passando pel' "A Velha Investiga", a Miss Marple, personagem criada pela Agatha Christie. Houve também tempo para uma peça de teatro de "A Barraca" Fernão, Mentes? baseada na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que vi há uns anos atrás em Setúbal, nos claustros do Convento de Jesus, em cenário mais atractivo. De qualquer modo gostei de ver novamente a peça, embora tenha perdido algum encanto na transmissão televisiva.
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(...) Resolvi alterar as minhas férias, mudando o seu início de 1 para 18, pois quero deixar prontos os boletins de inquéritos às populações de bairros degradados, a realojar Deus sabe quando !
Setúbal, 1986.07.28
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(...) É já domingo e o tempo continua frio e cinzento. Interrompi ontem para ir ao Pão de Açúcar abastecer-me de leite, peixe, carne, enlatados e batatas; quando regressámos eram já horas de fazer o rancho do pessoal - tenho de aperfeiçoar-me na fritura de batatas e resolver-me a fazer sopa, arranjadas que estão as panelas de pressão.
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Vi o final do "Faz de Conta'' (desta feita o Solnado não foi tão irritante nas suas conversas com o júri) e, quando me preparava para continuar a nossa conversa de surdos-mudos, alguém tocou à porta; eram a Isabel e o Ricardo, nossos velhos amigas e vizinhos de Évora, do casarão de que atrás falei. . Estivemos na conversa até às tantas -acabei por não ver o filme da meia-noite - dormiram cá e há -pouco abalaram, com um desenho para encontrarem a casa da Celeste. [Não sabiam que nos tínhamos divorciado]
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Posso pois continuar a minha visita á Maria do Mar, enquanto o Rui e a Susana brincam pegados um com o outro, com a exclamação "pai" nos lábios, até que se magoem e gritem a sério, obrigando-me a intervir com bonomia ou zangado, conforme a minha disposição na altura.
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(...) Releio o que escrevi, porque esta conversa não passa de imaginação e a Maria do Mar não está aqui, com o seu jeito gentil, o seu sorriso afectuoso ou levemente trocista, a sua palavra ou o seu gesto amigos. (...)
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Setúbal, 1986.12.14
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Paço de Arcos / Mindelo
1993
Finalmente a água voltou: barrenta, jorrando das torneiras aos borbotões ruidosos. Finalmente o prazer de abrir o chuveiro e sentir a carícia da água tépida deslizando pelo nosso corpo!
O calor continua e o corpo cobre-se de camadinhas de finas gotículas de suor que se não evaporam, tal como sucedia em Luanda.
A Susana, acabada de acordar, veio até aqui perguntar se eu andava a escrever o meu diário, emitindo a douta opinião de que os diários só se escrevem ... ao fim do dia e não a meio da manhã. Quanto ao Rui apareceu agora dizendo que era um hippie, de tronco nú, vestido com as calças de ganga, um colete da irmã e as joias artesanais dela ao pescoço e nos braços. É o ai Jesus da Alexandrina, que o trata como o menino da avó, com ternurinhas e cuidados risonhos, coisa a que não está muito habituado.
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Bem, façamos um intervalo. Tenho de barbear-me e de ler o jornal, para saber o que se passa pelo mundo.
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Já passou a hora de almoço e já foi tempo de passar por Santa Apolónia para comprar os bilhetes de comboio para o pessoal e para o carro. Embarcaremos no domingo após o almoço. Embarcaremos? Não seria mais apropriada dizer ... Encomboioremos?
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Gosto de ir até ao Mindelo (…) [A casa] fica a poucos metros da estação, com ligações ferroviárias ao centro do Porto (a Sul) ou a Vila do Conde e Póvoa de Varzim (a Norte), em viagens que não ultrapassam os vinte minutos. Para além disso a praia fica a 2 quilómetros. E depois sempre há pessoas que me vão reconhecendo ao fim destes anos. No centro da aldeia o homem dos jornais, o talhante, os donos do minimercado, a rapariga da padaria. Mais adiante, junto à praia, a dona de outra loja, um pouco maior e com maior variedade de mercadoria. (…) Gosto da casa e do sítio, mas fica demasiado longe para se ir lá durante o ano.
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No verão a população aumenta grandemente, pois trata-se duma praia muito procurada, com cheiro a algas e maresia, calma na zona rochosa e com ondas alterosas e batidas na zona arenosa, embora fria e ventosa para o meu gosto de pessoa nascida e criada nos trópicos. Deste modo no verão, com o comércio, o pessoal da terra procura tirar o sustento para o resto do ano. Fora isso as pessoas vivem da pesca e da agricultura (por trás da casa há um enorme campo que se cultiva), enquanto na praia se recolhem as algas para adubar as terras.
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(….) Por isso há três zonas habitacionais distintas: a mais antiga e tradicional, onde existem o centro comercial primitivo, em torno do adro da igreja velha, e algumas grandes casas típicas de lavradores abastados como a dos meus bisavós maternos para os lados de Barcelos. Mais perto da estrada nacional, para o sítio onde fica a casa de verão que foi do meu avô materno (um homem na cidade criado numa aldeia e que não perdeu o apego ao campo), abundam as casas de emigrantes, umas mais modestas, outras mais sumptuosas, estilo maison sem arvoredo, encafuadas em minúsculo quintal. Entre estas duas zonas fica a estação ferroviária [desde há uns anos, metro de superfície]. A terceira zona, junto à praia e ao longo da costa, é a zona dos veraneantes, mais ou menos endinheirados, com enormes casas no meio de grandes quintais arborizados ou com prédios compridos de vários andares. Neste local fica uma outra zona comercial com frutaria, talho, padaria, minimercados, peixaria, tabacaria, restaurantes e geladaria, entre outros.
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O calor continua, com uma intensidade tal que a sede aperta e os joelhos fraquejam. Aqui na Tapada do Mocho o sol bate na fachada da casa durante toda a tarde. Em Setúbal não sinto tanto calor pois durante o dia normalmente não ando na rua. Por seu lado no Departamento onde trabalho existe ar condicionado e em casa sempre se abrem as janelas e, desde este ano, o calor em casa ameniza-se com a refrigerante ventoinha que comprei, que me refrescou muitas vezes.
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Trouxe quatro álbuns do Calvin bem como uma colectânea de anedotas, muitas das quais me divertem imenso. A primeira vez que folheei este livro numa livraria dei por mim a rir às gargalhadas, pelo que resolvi arrumá-lo de novo e rapidamente no mostruário, não fossem pensar que tinha enlouquecido e me ria a bandeiras despregadas só por folhear um simples mas volumoso livro de capa azul. Depois comprei-o numa Feira do Livro e durante algumas noites o meu vizinho velhote do andar de baixo deve ter pensado que eu me passara da mioleira, pois até altas horas da madrugada me deve ter ouvido rir, numa altura em que eu já vivia sozinho.
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O Rui anda ali no corredor exibindo o seu esqueleto bronzeado como se fosse musculado e atlético, ao murro à irmã, esquecendo-se que em resultado de brincadeiras semelhantes ela anteontem torceu-lhe o dedo indicador, o que é um grave acidente com repercussões nos seus exercícios de viola e no seu dedilhar do computador.
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Paço de Arcos, 1993.08.20 (6ª feira)
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Setúbal
1993
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Acordei mal disposto e cansado, o que de resto me sucede desde domingo, tal como antes de férias. Para além disso hoje acordei de madrugada cheio de frio, pelo que resolvi fechar a janela da cozinha. Voltei a acordar mais tarde, continuando com frio até descobrir que a janela do quarto da susana também estava aberta. De qualquer modo não se perdeu tudo e assisti ao nascer do sol antes de voltar a deitar-me, acordando tarde. Antigamente e nas férias levantava-me mal acordava. Mas agora não tenho prazer em levantar-me em tempo de trabalho como este que (não) tenho presentemente [colocado numa prateleira de luxo, para nada fazer].
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O primeiro dia de trabalho está terminado e parece que as férias foram há muito tempo. O regresso foi como sempre: bacalhoadas para a direita, algumas beijocas para a esquerda, um sucinto relatório das mesmas com perguntas idênticas ao(s) interlocutor(es) e interrogações sobre as fotografias de férias. Vá lá que a arquitecta nina, que foi ao brasil ver a família e mostrar a mariana, a criancinha que é o enlevo dela como mãe babosa, não se esqueceu das moedas para a minha colecção.
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Setúbal, 1993.09.08/09
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Decididamente este mês de Verão tem sido um surpreendente catálogo de variações atmosféricas. Há uma semana estava quente e soalheiro. Hoje este dia de domingo apresenta-se com um céu cinzento, carregado de ameaças de chuva. Afinal as ameaças deixaram de sê-lo pois acabei de assomar á janela e lá em baixo o asfalto da avenida apresenta-se molhado e as pessoas passam de guarda-chuva aberto.
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Daqui a pouco vou sair para comprar o jornal e pão. Entretanto, enquanto não me ponho debaixo da água tépida do chuveiro, ouço o Nino Rosso. Gosto muito de música de trompete.
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Não creio que o tempo levante, pois a chuva de hoje do estilo miúdinho mas contínuo, género faz que não molha mas molha mesmo. De modo que tudo indica que passarei este domingo em casa, lendo, organizando as fotografias de férias e vendo algum filme ou uma cassete de vídeo que comprei, sobre fotografia. Entretanto andei à pesca de fotografias da Maria do Mar, que lhe tirei ou em que ela está. Gosto muito de uma das que lhe tirei no jardim de Oeiras, sem óculos, com a cabeça levemente inclinada e a sombra dos seus cabelos pretos no rosto. De qualquer modo parece-me que a preferida dela é uma em que está sentada na relva, porque a vi uma vez emoldurada no armário da sua sala.
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Dos filmes que abordam a relação entre um homem e uma mulher há dois que aprecio sobremaneira, embora sejam de géneros diferentes. Talvez porque me identifique com os personagens masculinos, isto é, com o modo como através deles as coisas são apresentadas. Um deles, África Minha, com Meryl Streep e Robert Redford, é um drama. O outro, que de novo revi há pouco com boa disposição e sonoras gargalhadas, é Um Amor Inevitável (no original When Harry met Sally), com Billy Crystal e Meg Ryan.
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O filme conta com humor a história dos (des)encontros do Harry e da Sally. No primeiro detestaram-se, porque nada tinham em comum (o que não foi o nosso caso), no segundo tornaram-se amigos (o que aconteceu connosco) e no terceiro casaram-se (o que ainda não sucedeu connosco). O primeiro encontro é numa viagem que fazem juntos, para a universidade, durante a qual Harry afirma que é impossível um homem e uma mulher atraente serem amigos porque surge sempre o desejo de sexo pelo meio. Na sequência do segundo encontro, anos mais tarde, Harry confessa a um amigo que é amigo de Sally e como não há mais nada pelo meio não precisa de mentir-lhe e podem falar e estar á vontade um com o outro. Á terceira casam-se mesmo. O filme tem cenas deliciosas. Numa delas, na fase em que eles são apenas amigos, á mesa dum restaurante Harry gaba-se do seu sucesso entre as mulheres, o que leva Sally a interrogá-lo sobre os fundamentos da sua presunção. Perante a convicção dele de que um orgasmo não se simula, ela, na cadeira, com a voz e gestos, "representa" uma cena de amor e orgasmo, finda a qual termina voltando á pose anterior como se nada se tivesse passado perante a estupefacção dos comensais e o embaraço do presunçoso. Pois é, nesta sociedade pretensamente dominada pelos homens, a estes cabe a presunção da iniciativa, mas nem sempre a conseguem fechar com chave de ouro! Mas, ... entre mortos e feridos alguém há-de escapar. E espero que cheguemos á terceira fase da história de Quando o Victor Encontrou a Maria do Mar.
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Em África Minha identifico-me com o modo como aquele homem e aquela mulher tentaram e em certa medida conseguiram viver o seu amor respeitando a independência de cada um deles.
Setúbal, 1993.09.15
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Entretanto hoje resolvi fazer o que foi o terceiro bolo da minha vida, desta feita um bolo mármore. Das vezes anteriores foi pão-de-ló. O bolo come-se, não ficou muito mal. De qualquer modo só poderei lavar a forma depois dele acabar, pois ficou agarrado ás paredes da dita cuja, apesar de untada com margarina (acho que faltou passar as paredes com farinha). Para além disso a parte de cima não ficou nivelada, antes parecia o mar agitado em dia de vento, aos altos e baixos. Pois é, preciso é não perder a calma!
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A especialista em bolos é a Susana, mas ultimamente tem-se dedicado mais ás mousses de chocolate, que já deixei de apreciar, não por serem dela, que até tem jeito, mas porque antigamente gostava mais de doçarias.
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O fim-de-semana passado, que ameaçava ter sido chuvoso, acabou soalheiro. No domingo á tarde fui com o Rui e a Susana ao Jumbo comprar material escolar para o caçula depois de termos ido a uma das salas de cinema do centro comercial ver um filme de que te falei anteriormente: Dennis, o Pimentinha, sobre as diabruras duma criancinha traquinas. Embora me tivesse rido nalgumas cenas, achei o filme inferior a qualquer um dos da série Sozinho em Casa, não só porque nestes o miúdo/actor era mais expressivo, mas também porque nestes a história tinha mais consistência. Embora qualquer deles sejam filmes para miúdos cujo principal intérprete é uma criança, são duma extrema violência sobre os bandidos, adultos, que sofrem autênticos tratos de polé. Mas a verdade é que o Rui e os seus amigos deliram com tais cenas de violência, muito semelhantes ás dos filmes de desenhos animados, sobretudo dos de origem norte-americana que a televisão passa nos programas infantis.
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Foi um fim-de-semana relativamente folgado, pois à Susana deu-lhe o apetite de fazer todas as refeições por sua iniciativa. Quanto ao Rui, como já entrou na adolescência, cozinha as refeições dele quando não gosta do rancho da maralha. Claro que só fecho os olhos ás ementas do Rui para ele próprio porque fins-de-semana não são todos os dias a comer arroz de manteiga e douradinhos ou sandes de atum de conserva!
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Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ...
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Setúbal, 1993.09.25/26
vem de o domingo na poesia segundo vários escritores - 22 - textos de victor nogueira 04
https://www.facebook.com/notes/victor-nogueira/o-domingo-na-poesia-segundo-v%C3%A1rios-escritores-22-textos-de-victor-nogueira-04/10151883599844436
Carlos Rodrigues, Maria Célia Correia Coelho, Maria Márcia Marques e 29 outras pessoas gostam disto.
Maria Rodrigues
5/1 às 14:19 · Não gosto · 1
Arminda Griff Adoro ler teu "Diário". Como te expressas bem!Beijinho meu querido... tens me levar a Mindelo.
7/1 às 22:48 · Editado · Gosto
Deolinda Figueiredo Mesquita Muito bom. Obrigada Victor.
7/1 às 21:01 · Não gosto · 1
Graca Maria Antunes E assim se vai construindo a (s)nossa (s) vida (s) Obrigada, pela partilha, Victor.
7/1 às 21:03 · Não gosto · 1
Fernanda Manangao Adorei ,um beijinho amigo Victor
7/1 às 21:28 · Não gosto · 1
António Barrenho Abraço !
7/1 às 21:36 · Não gosto · 1
Maria João De Sousa Obrigada, Victor Nogueira! Li um pouco à pressa, mas não posso mesmo ficar aqui mais tempo... abraço!
7/1 às 22:08 · Não gosto · 1
Fatima Mourão
8/1 às 1:15 · Não gosto · 2
Laura Rijo Obrigada Victor...
8/1 às 11:55 · Não gosto · 2
Judite Faquinha Lindas fotos Victor lindas, gostei das estações ferroviárias, será que ainda existem?O texto já o tinha lido, mas como tu contas tudo ao pormenor, e eu gosto... obrigada Victor. Bjinhos.
8/1 às 12:42 · Não gosto · 2
Luisa Neves - Abraço.
8/1 às 20:21 · Não gosto · 2
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)