* Victor Nogueira
1.
Uma greve no antigamente
1968 - Lisboa
E isso faz-me lembrar que se diz por aí que houve uma greve dos empregados da Carris, que pretenderiam aumento de salários; a greve teria sido sufocada, mas os jornais, que eu saiba, nenhuma referência fizeram ao assunto. (NSF - 1968.06.24)
Hoje todo o mundo, em Lisboa, anda à borla nos autocarros e nos eléctricos da Carris; não é nenhuma graciosa oferta da companhia aos seus utentes. Os seus empregados pretendiam um aumento de salário, que lhes não foi concedido - diga-se de passagem que eles ganham muito mal. Assim hoje e não sei por quanto tempo os transportes circulam, cumprindo os horários habituais, mas os condutores não cobram bilhetes, por decisão tomada pelo respectivo Sindicato. A não cobrança dos bilhetes acarretará prejuízos à Carris, pelo que muito provavelmente os seus empregados alcançarão o que pretendem. Mas, ... como é tradicional, os grandes accionistas não quererão ver os seus dividendos diminuídos, pelo que o Zé Povinho, um dia destes, verá o preço dos bilhetes aumentar.
Já no ano passado, quando uniformizaram para um escudo o preço dos bilhetes dos eléctricos - acabando com os de $70 e aumentando os dos elevadores de $20 para $50 - já não me ocorre a que pretexto pretenderam "actualizar o dos autocarros. Eu creio que os transportes colectivos alfacinhas são mais acessíveis que os tripeiros ou os de Luanda. (...)
Ultimamente a Companhia adquiriu novos autocarros onde, para aumentar a lotação, quase não existem bancos, amontoando-se os passageiros em pé, à rectaguarda e no centro. Neles deixamos de ser humanos para sermos gado, amontoados em equilíbrio instável. Há semanas os eléctricos começaram a sofrer idênticas transformações, suprimindo-se os bancos para aumentar a lotação. (NSF - 1968.07.01)
Os transportes na Carris continuam a ser gratuitos. Os jornais vespertinos não aludem ao assunto enquanto que os matutinos de hoje se limitam a publicar uma nota do Ministério das Corporações e Previdência Social. À noite já gozavam com a situação e desde então muitas são as pessoas que aproveitam as circunstâncias para passearem e andarem o menos possível a pé. Os autocarros e os eléctricos vão pejados de gente. (...) Em média os funcionários da Carris ganham 60$00 por dia e pretendem um aumento de cerca de 25$00 diários. (NSF - 1968.07.02)
Os empregados da Carris retomaram, há três dias, o serviço normal As negociações entre o Sindicato e a Companhia continuam, mas um intervenção do Ministério das Corporações e Previdência Social deu àqueles, para já, um aumento de 20$00 diários e 520$00 mensais, respectivamente aos assalariados e aos empregados. (NSF - 1968.07.06)
NOTA - aproximadamente 1€ = 200$00 ; 1c = 2$00
Uma nota por mim ontem lida no diário vespertino "A Capital" informava que a Carris contactara com a Câmara Municipal de Lisboa com vista a um aumento de preço dos bilhetes dos eléctricos. Comentários !? (NSF - 1968.08.04)
Os empregados da Carris foram todos agradecer ao Presidente do Conselho a intervenção do Governo. Discursos, ramos de flores, palmas, beijinhos ás criancinhas! ...
Para quê? Agradecer o quê? O Governo só tem razão de ser para servir a Nação. É a sua obrigação. Para isso é que lá está! (NSF - 1968.08.20) ]
Nota - O Presidente do Conselho era Salazar, que dias antes havia dado a queda que seria a causa da sua incapacidade e substituição por Marcelo Caetano no mês seguinte. Durante 48 anos e até ao 25 de Abril de 1974 as greves eram proibidas e os grevistas perseguidos e presos pela PVDE/PIDE/DGS. Do mesmo modo a comunicação social era sujeita a visto prévio da Censura, a realização de reuniões carecia de autorização prévia das entidades competentes e as direcções associativas - incluindo as sindicais - previamente aprovadas pela PIDE desde que nada constasse dos ficheiros desta, poderiam ser livremente demitidas pelo Governo desde que este assim o entendesse por serem "subversivas" e não acatarem ou afrontarem a Lei ... fascista. Pelo mesmo motivo as associações, quaisquer que fossem, podiam ser dissolvidas pelo Governo e os órgãos da comunicação social poderiam ver a sua publicação temporariamente suspensa ou definitivamente encerrados. Tudo isto com simples e definitivas decisões administrativas ou policiais, sem possibilidade de recurso aos tribunais.
2.
Uma boa vida
1974
Ali duas velhotas discutem as vantagens de ser criada de servir: ganham bem, vestem os vestidos da senhora, não gastam nada. Uma vida de fidalgas. (MCG - 1974.12.10)
3.
A miúda e a matrona
1969 - Évora
(...) Era um jardim geometricamente desconfortável, artificial, No coreto a banda tocava. Além, caridosamente, alguém partilhava com os "jardineantes" as goelas do transístor escancaradas. No banco, ao meu lado, uma matrona e uma gaiata conversam banalmente:"Puxa a mala um bocadinho mais para baixo. Isso! Assim! Para que te não vejam as pernas". E eu sorrio-me por entre a sisudez duma "Introdução à Vida Política". Pobres e ridículas gaiatas! Pobres e ridículas matronas! (A)
4.
O miúdo e o carrocel
1969 - Évora
No mesmo jardim, era um miúdo esfarrapado, sujo, de rosto envelhecido. Dele aproxima-se o guarda, para cobrar o bilhete da entrada, mas o dinheiro não chega. No entanto, o velho, que já terá sido criança, deixa-lo entrar. O miúdo envelhecido corre, para, hesita! Os olhos sorriem no rosto sujo: balancé? carrocel? escorrega? ... ou avião? Não poder ele desdobrar-se! E assim, corre, sobe, escorrega - o mundo é dele. Agarra-lo, sobe, desliza, corre, sobe, desliza, sobe, desliza, corre, sobe, desliza, contorce-se ... De repente alguém exclama: "MÃE, OLHA ESTE MATULÃO SUJO! VAI-TE EMBORA!" Então, as avózinhas contorcem os lábios num rictus de desprezo, os meninos apedrejam com a língua e crucificam com os lábios. Ele hesita.
Baloiça, baloiça, baloiça! Roda, roda, roda, sobe, desliza, corre, sobe, tropeça, sobe, desliza, corre! contorce-se, baloiça, roda ... Olhos brilhantes cheios de felicidade! Um velho num corpo de criança, pequena para a roupa suja, esfarrapada! As avózinhas contorcem os lábios num rictus de desprezo, os meninos, esses apedrejam com a língua e crucificam com os lábios. Velhas envelhecidas. Garotos moribundos. E uma criança num pequeno corpo de velho! (POE - 1969.02.24) (A)
(A) - Do poema Cenas do Jardim, escrito em Évora em 1969.02.24
5.
O Cunha, alfarrabista em Luanda
1966 - Luanda
(...) Lembras-te do Cunha? Em Luanda era um alfarrabista de corpo dolorido e disforme a quem os miúdos roubavam e provocavam. Cria em mim, esperava ainda ver o meu canudo de senhor doutor, dizia ser eu um jovem diferente dos outros e nunca o consegui convencer do seu erro; falávamos de ópera e ele trauteava as árias, falávamos do Camilo e do Zola e da enorme fortuna que ele teria se o os livros em stock fossem libras. O homem que não conseguiu ser ele mesmo, condenado a vender a abominável literatura de cordel. "Escreva-me, não se esqueça deste pobre velho!""Havemos de ver-nos nas Ferias Grandes! " O meu postal ficou sem resposta. O Cunha morreu, só, abandonado, como um cão! (Eu, que era seu amigo, nunca o convidara para a minha mesa). E nas tardes quentes e plúmbeas mais uma voz silenciou-se: os frigoríficos do Pólo Norte -Frimatic, o Rei dos Frigoríficos - substituem os livros que nunca foram libras! [Escrito em Évora, em 1969.03.16 (Num repelão)]
O Cunha havia falecido em fins de 66, princípios de 67. O "Notícias" de Luanda dedicou-lhe umas linhas, lastimando a sua morte e o egoísmo dos homens. Teriam posto em leilão os livros da livraria e a Casa dos Frigoríficos anexou a lojeca, perto da Sé. Ficou deste modo privado do seu único meio de subsistência. O seu sonho era vender tudo e regressar a Portugal (à Metrópole ou ao Puto, como então se dizia). Gostaria de ter vendido bons livros, de ter sido um bom alfarrabista. E dizia-me, quando vim para Lisboa:"Escreva me, meu amigo, não se esqueça deste velhote. O senhor há de ser alguém!"(NSF - 1968.08.20)
Ao fundo à esquerda ficava a Cervejaria/Sorveteria Polo Norte, na esquina, e à direita a loja dos Frimatic. No prédio mais baixo ficava a loja do Cunha; à direita, a Igreja de N, Sra dos Remédios (Sé de Luanda), onde oficiava o Cónego Manuel das Neves, de que falei noutros posts, preso pela PIDE a seguir aos ataques do MPLA de 4 de fevereiro de 1961. O Cónego Manuel das Neves havia sido quem me baptizara, crismara e dera a 1ª comunhão e com quem gostava de conversar.
6.
A escrita em dia
1970 - Porto
Hoje tentei pôr a correspondência em dia, mas aquilo está tão atrasado que devem ser necessários uns longos serões. A partir da recepção deste postal devereis começar a escrever‑me para Évora. Espero que tenhais recebido o SDS [telegrama] que enviei na véspera de Natal.. Que mais dizer? Estou na estação dos CTT da Batalha; a escrivaninha treme que se farta com o esforço que um "hominho" faz para fechar um envelope. Uma mulherzinha procura quem lhe preencheu um telegrama para dar‑lhe qualquer coisa. E ao contar‑me isto poisa‑me a mão no braço. Gosto da gente do Porto; parece‑me mais humana que a de Lisboa e de Évora. (NSF 1970.12.26)
Naquele tempo, com as elevadas taxas de analfabetismo, nas repartições públicas e nos correios havia sempre homens que preenchiam os papéis, a pedido e mediante retribuição. Comigo sucedeu que no Registo Civil de Évora um homem masacrou-me tanto, apesar de eu dizer-lhe que sabia escrever, que resolvi deixar que mos preenchesse. No fim pediu-me a gorjeta, mas eu disse-lhe que não pedira que mos preenchesse, que o avisara que sabia escrever, entreguei-lhos e preenchi novos.
vem de cenas do quotidiano (1)
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)