* Victor Nogueira
Uma vez mais deambulei pelas feiras das velharias e entre o que comprei ... ao ver o meu interesse por um maço de papéis amarelecidos, manuscritos com uma letra miúdinha e rápida, o vendedor ofereceu-mos, num gesto largo e (aparentemente) desinteressado. Afinal sempre sou um cliente habitual Eram talvez o espólio de alguém falecido, perdido numa gaveta dum qualquer armário vendido a peso pelos sobreviventes. Ao chegar a casa sentei-me na sala, os pés apoiados na cadeira defronte, a música em surdina quebrando o silêncio da noite. Foi num crescendo de interesse que fui decifrando os hieroglifos e resolvi partilhar convosco parte dos papéis, selecionando esta e aquela passagem, para construir um texto corrido, dividido em duas partes. Eis a primeira delas.
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Não sei se lá fora chove ou não. Mas está vento, porque as janelas e persianas batem cadenciadamente. Olho pela janela, gesto maquinal, e para lá das plantas e da varanda está o negrume da noite, pontuado lá ao longe por luzes brilhantes e dispersas. Também sei que está nortada porque a casa está cheia de correntes de ar, incómodas e cortantes.
Estou cansado e pesa-me o silêncio, mas não tenho música a tocar. O domingo foi triste, frio e cinzento; passei o dia fechado em casa e não comprei jornais. Continuei a escrever o meu infindável livro de viagens. Há sempre um acréscimo a fazer.
Acabei de ler um livro de Fernando Dacosta, chamado Máscaras de Salazar, feito essencialmente de colagens de pequenos testemunhos do personagem e de quem com ele conviveu, convenientemente interligados. É um livro que se lê duma penada, com agrado, mas que me não trouxe novidades. Tinha-me sido recomendado pelo sr. Graça, livreiro da Antecipação. Li, confirmando no catálogo aí comprado em Coimbra, que foi o escultor António Duarte quem fez os moldes da máscara funerária e da mão direita de Salazar após o seu falecimento, sem que depois aparecessem interessados, segundo Dacosta, o que é desmentido no referido catálogo, pois embora o molde em gesso pertença ao escultor, existem bronzes numa colecção particular. Ora, independentemente do que Salazar tenha sido, é inquestionável que foi um personagem determinante e marcante na história portuguesa e condicionante do desenvolvimento dos portugueses e dos povos das colónias. Inválido, muitos se afastaram, morto, muitos o esqueceram ou desprezaram, o espólio disperso quando não vendido ao desbarato, a casa da aldeia em ruínas, a estátua estralhaçada por uma bomba em Santa Comba Dão, onde quem afinal vence eleições parece ser o Partido Socialista.
Mas, deixando as leituras e reflexões, que fiz mais? Andámos os três em arrumações: aspirar a casa, limpar o pó, descongelar o frigorífico e a arca, matar as baratas que parece terem vindo para ficar, limpar azulejos e casas de banho. Nos intervalos ouviu se música, umas vezes escolhida por mim, outras pelo Miguel. Era para ver um filme português, Oxalá, de António Pedro Vasconcelos, mas como entretanto me apercebi que na TV estava a dar uma fita do James Bond interpretada pelo já envelhecido Roger Moore, acabei por escolhê-lo. A história era uma cowboyada, essencialmente passada num comboio, mas como envolvia uma companhia de circo com números circenses e algum humor, acabei por vê lo até ao fim.
Ainda não vi a 5ª e 6ª séries d'O Polvo. Qualquer dia tem de ser, pois não vale a pena esperar por ti, senão esqueço os episódios anteriores. Entretanto, nestes dias de recolhimento forçado, vi um documentário de Mariana Otero sobre a SIC e o debate entre Álvaro Cunhal e Mário Soares. A SIC reagiu mal àquele documentário, que comprou e passou de madrugada. A mim não me trouxe novidades, mas passado em horário nobre poderia eventualmente levar ingénuos tele-espectadores, que são a maioria, a mudarem de canal e lá se iam as audiências, a publicidade e os lucros do sr. Balsemão e Pandilha.
Quanto ao debate, embora ambos os intervenientes dissessem coisas com interesse, este foi um pouco monótono, pois qualquer deles se limitou a ler as folhas, com maior ou menor ênfase, com pior desempenho e embaraço do Cunhal no que se refere à leitura. Foi mais vivo quando passaram ao taco-a-taco. Entre a assistência estavam jovens, muitos, e menos jovens, bastantes, aqueles com ar interessado, artilhados de bloco e caneta para as notas que raramente tomavam, estes muito sérios, alguns mesmo com cara patibular. Durante a intervenção do Soares um assistente da 1ª fila dormia esparramado na cadeira, a cabeça apoiada na mão. Mas fora este, a câmara não focou pessoas a bocejarem ou com ar de muito enfado.
Na assistência distinguiam se algumas celebridades: Durão Barroso, Francisco Louçã, Pezarat Correia, Pedro Canavarro, Jorge Coelho, Medeiros Ferreira, Fernando Rosas ... Alguns dos assistentes sobretudo os menos jovens, mostraram-se pouco à vontade quando focados pela câmara, outros não esconderam o seu inchaço, talvez babosos para o vídeo lá em casa gravando para a família e para a posteridade. Contudo, a 2ª parte do programa televisivo foi perfeitamente surrealista: nela participaram três jornalistas: Maria João Avilez, Bettencourt Rodrigues e Vicente Jorge Silva. Aquilo foi um fartar vilanagem a desancar no Álvaro Cunhal, a propósito e, sobretudo, a despropósito, com especial relevo para os dois últimos e alguma moderação da Joãozinho Avilez. Uma autêntica masturbação, daquelas que se admitem lá em casa ou à mesa do café, em roda de família e amigos, mas não para massacrar os telespectadores.
E, neste ponto da leitura, imagino-te a murmurar: mas que raio de carta, ainda não me chamou amorzinho uma vez que fosse ou me disse que tinha saudadinhas minhas ou me mandou beijinhos. Pois é ! ...
Levanto-me, fecho a janela da sala e as correntes de ar diminuem, embora continue a entediante batida de portas e janelas. Continuo cansado, dói-me a garganta, que parece estar por dentro aos folhos, e tenho o nariz semi-entupido. Levanto-me novamente e vou pôr a água a aquecer para tomar o antibiótico. Não no micro-ondas mas sim no fogão a gás, porque o micro-ondas começou a fazer um ruído estranho e resolvi pô-lo fora de serviço. Não imaginas a falta que faz. É como se de repente deixássemos de ter electricidade e passássemos a ser alumiados com luz de vela ou candeia. Uma seca! A propósito, embora elegantes, as chávenas brancas que comprei contigo para substituir as que se foram partindo têm pouca estabilidade e são fáceis de entornar quando postas aqui em cima da mesa onde trabalho, no meio de livros e papéis; é preciso mais cuidado. Por vezes não se pode ter tudo: ou estabilidade, ou elegância!
Recebi três postais teus, havendo um quarto em Leiria, devendo amanhã chegar outro lá abaixo à caixa do correio. Como nos telefonamos, mais propriamente sou eu que o faço, por escrito poucas novidades temos a dar. Ainda bem que os postais apareceram todos.
Embalado nesta conversa, bebi o café sem tomar o antibiótico, o que se remedeia com o resto da água quente que ficou na cafeteirinha e que previdentemente não havia despejado no lava-louças! Resolvido este incidente, prossigamos.
Devo te algumas coisas: a tua ajuda, quando não é impositiva, a tua presença quando fiz o exame no Vasconcelos, a tua companhia e alguns momentos de alegria. O que te devo é pouco, face ao muito que os teus filhos te devem, a ti que te sacrificas e continuzas a permitir que condicionem a tua vida e decisões, apesar de já adultos. Sou lúcido, por vezes demasiado, e não sou de modo algum do estilo mãe galinha, sempre pronta a passar uma esponja sobre as suas crias e a ver com olhos negros e chamejantes as crias dos outros, como sucede contigo.
Enquanto estás para aí, eu estou para aqui. O tempo passou e já são três da manhã, sem que o meu cansaço ou fartura da vida e das pessoas tenha diminuído. O barulho provocado pelo vento amainou e o silêncio apenas é quebrado pelo zumbido contínuo do ventilador do computador e pelo tac tac mais ou menos regular, mais ou menos rápido, do teclado. A violenta tempestade passou, tempestade que fazia bater as janelas com fragor, conjuntamente com a porta de acesso ao terraço que se deve ter aberto e, em vai-vem, soava com estrondo.
Diz a sabedoria popular que não há uma sem duas nem duas sem três. Como já estão três páginas escritas, vão sendo horas de ir para Vale de Lençóis, para os braços de Morfeu, na companhia esquiva mas pronta e quase sempre fiel da Joana Pestana.
Creio que é muito difícil encontrarmos alguém que corresponda inteiramente áquilo que desejamos. Cada uma das pessoas que nos surge na vida tem aspectos que nos atraem com maior ou menor intensidade ou que nos afastam. E cada um destes aspectos assumirá maior ou menor importância conforme o nível das nossas aspirações, conforme o nível do relacionamento pretendido. Exigimos diferentemente conforme se trata do contacto ocasional, do vizinho, do colega de trabalho, do amigo, do camarada de partido ou do sindicato. Obviamente exigimos muito mais daquele que é ou será o nosso companheiro de vida, perante o qual se procura não ter máscaras ou disfarces. O que não significa que cada um de nós não tenha direito á sua reserva de intimidade, que terá a liberdade de expor e compartilhar ou não.
A minha terra está longe, noutro continente, para lá do Equador, já não é a mesma e não sei se alguma vez lá voltarei. Por outro lado, já morei e já estive ou andei por muitas terras, já conheci muita gente, largos milhares de pessoas, já tive e perdi muitos amigos porque o tempo, os lugares, a vida (ou a morte) e a política dificultaram ou cortaram a convivência. Gostaria que a vida fosse um eterno presente, com todos os lugares e todos os amigos ali sempre ao alcance da vista, da mão e da voz. Mas nada disto acontece e tu nada entendes da minha vida e sentir, porque és como és. Há pelo menos três poemas meus que "falam" disto.
Como te disse tenho mais amigas do que amigos, e a maioria deles já vêm de longe. São amizades que nuns casos já têm cerca de 40 anos, noutros apenas sete ou oito. São na esmagadora maioria amizades anteriores ao meu casamento ou posteriores ao meu divórcio, porque as amizades do casamento "foram-se" com o divórcio. Não tenho qualquer problema em apresentar-te ás minhas amigas, se e quando entender oportuno e conveniente. Mas não tenho que fazê-lo face aos teus descabidos ciúmes, "exigências" de rompimento de amizades de décadas, nalguns casos, ou com ameaças de escândalo e "pancadaria". Não és tu mas sim eu e mais ninguém quem decide das minhas amizades. Por exemplo, gosto de ajudar e ser prestável para com as pessoas. Sou amigo dos meus amigos! O que tu não aceitas ou mal entendes.
E num outro parênteses noto que há uma grande diferença entre aquilo que tenho escrito ao longo dos tempos, desde as cartas da meninice e o "diário" de adolescente (secos, lacónicos, objectivos), passando pelas "filosofias" psicologizantes dos meus tempos de "perdido" em terra estranha de Portugal como universitário, "desenraizado" ainda hoje neste "jardim á beira-mar plantado", até ás cartas que passei a escrever a partir dos 25 anos. Como há uma grande diferença entre o meu desinteresse pela poesia, até começar a escrevê-la, primeiro apenas em momentos de crise e de angústia, até passarem a reflectir outros sentimentos, desde a "seriedade" que caracterizava os primeiros poemas até à ironia, humor ou brincadeira das que escrevi após o meu divórcio. Há pessoas que influenciaram a maneira como escrevo ou a forma utilizada. Quando leio o que escrevo, leio como se tivesse sido outrem que tivesse escrito e não eu e gosto mais ou menos do que escrevi e comovo-me mais ou menos não porque tenham sido escritas por mim mas porque também me comovo ou sensibilizo com o que outros escreveram, por exemplo, poetas como Eugénio de Andrade, António Reis, António Gedeão, Brecht ou Shakespeare. Mas tu consideras- te o centro único da vida e dos afectos de quem gostes e não tens sido capaz de sair para além do teu umbigo.
Não aceito abdicar do meu espírito crítico, não tenho sentimentos exclusivistas e de posse das pessoas, no meu "coração" há lugar para todos, cada um no seu canto e com a dimensão adequada.
E por isso não adoro quem quer que seja - homem ou mulher, pai ou mãe, filho ou filha, amizades ou amante e companheira. A adoração e a paixão são intolerantes e cegas e nada têm a ver com a razão, o entendimento e a compreensão das pessoas, das coisas, dos sentimentos, das relações humanas e sociais. O que não significa que a minha amizade ou o meu amor não sejam valiosos.
Sei o que é uma pessoa gostar imenso doutra, pôr nela a esperança e o futuro, sei o que é "subir ao céu e á lua e cobri‑los de estrelas" quando estamos com ou pensamos na pessoa por quem estamos "enamorados", sei quanto custam a (des)ilusão e o (des)encanto, os sentimentos não correspondidos.
Apesar de tudo que nos tem separado, o tempo e a convivência criaram em nós laços e em mim sentimentos que em vários momentos me têm levado a querer estar contigo, a sentir a tua ausência, porque para além do que nos separa, tens qualidades e aspectos que me aproximam de ti, nos momentos em que parece tudo estar resolvido.
paço de arcos 13 de Novembro de 2014 às 23:36
Madalena Mendes
Muito belo! Obrigado pela partilha dos mistérios da escrita! E da vida!
8 ano(s)Editado
Fatima Mourão
lindo ❤
8 ano(s)
Isabel Dias Alçada
Obrigada por partilhares comigo estas tuas descobertas , beijos meu amigo do ❤
8 ano(s)Editado
Clara Roque Esteves
Também ando nessa tarefa.
8 ano(s)
Cecília Barata
❤
8 ano(s)
Deolinda F. Mesquita
Muito bonito. Obrigada Victor.
8 ano(s)Editado
Elsa Cardoso Vicente
Obrigada por partilhar
8 ano(s)
Maria João De Sousa
Magnífico "achado", o teu! Obrigada pela partilha, Victor Barroso Nogueira! Abraço!
8 ano(s)
Carlos Rodrigues
É bom achar escritos assim. Obrigado Vitor.
8 ano(s)
Maria Lisete Almeida
Bem haja Amigo Victor Nogueira. Continuo a adorar os seus "escritos". Abraço.
8 ano(s)
Jose Conceição
Partilho consigo o mútuo conhecimento do amigo Graça, na Livraria Antecipação, onde comprei muitas dezenas de livros, e frequentei com amizade, para a partilha de muita sabedoria experiência de vida do casal Graça.
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)