* Victor Nogueira
Évora 1972
Sabes quem apareceu por Évora, hoje? O Aristides Vem fazer quatro exames, regressando aos Açores no fim de Outubro. Até lá será hóspede da D.Vitória, a quem pagará ... 50$00 diários. Safa!
Tenho estado a estudar, como quem pratica desporto, sem preocupações pelos resultados. Claro que isto é só fachada, que isto cá por dentro é um vulcão que até me provoca tonturas e vertigens.
Como os demagógicos discursos do sr Marcelo Caetano. Gabo-lhe o estômago por não ter náuseas pela mercadoria que impinge. Mas se ele tivesse um estômago delicado não seria quem é. Os ricos até podem dormir descansados, que até têm uma função social importante, que é dar trabalho a quem precisa, enquanto [há] as ricas dos chás-canastas para os Fernandinhos pobres – que nos dias das visitas lavam as orelhas e limpam o nariz, para não incomodarem as ditas senhoras. Perante tanta água, ingenuidade ou má-fé eu assobio, por enquanto.
(…) Que mais dizer-te amiga, que se contenta com as coisas tal como estão ?! “Para quê mudanças, se nos temos dado bem desta forma ?” Como ela se engana, como ela desconhece ou esquece os momentos em que preciso dela e ela a milhas de distância, ela fazendo planos e imaginando enquanto eu me interrogo sobre a validade dos nossos actos quando ordenados em função de mim e do momento presente. Porque o mesmo coração e a mesma cabeça que me aproximam de ti em determinadas situações e memórias, afastam-me noutras, em porquês que terás o direito de saber mas ainda não passaram a letra de forma. Tudo isto é um peso que às vezes trago em mim, porque me cansam as perguntas sem resposta. Reservo a minha/nossa liberdade, mas não sou livre. Porque cada vez vivo menos de platonismos e me consciencializo agudamente da relatividade de nós. Termino hoje aqui, e deixo-te dois poemas dum poeta que muito aprecio: Manuel Alegre.
Desabafo do Poeta Desarmado
Procuro desesperadamente as armas do meu tempo.
Precisava de uma enxada mais do que da pena
precisava de cavar até ao fundo
até ao fundo do meu tempo
desenterrar as palavras em ruínas
e perguntar-lhes pelas palavras
pelas armas do meu tempo.
Precisava de uma enxada mais do que da pena.
Precisava de uma espada.
Que somos nós
Que somos nós senão o que fazemos?
Que somos nós senão o breve traço
da vida que deixamos passo a passo
e é já sombra de sombra onde morremos?
Que somos nós senão permanecemos
no por nós transformado neste espaço?
Que serei eu senão só o que faço
e é tão pouco no tempo em que não temos
para viver senão o tempo de
transformar neste tempo e neste espaço
a vida em que não somos mais do que
o sol do que fazemos. Porque o mais
é já sombra de sombra e o breve traço
de quem passamos para nunca mais.
Que dizer-te, amiga, senão que estou numa encruzilhada, donde partem a recusa ou a aceitação, um desespero de coerência, de autenticidade. Porque eu preciso dos cânticos, do calor humano, da fé, da serenidade e da alegria que não existem neste mundo em que estou !
A foice e a pena
Com outra que não pena arma trabalhas.
Se é minha a pena é tua a foice. Mas
se acaso são diferentes nossas armas
as penas são as mesmas e as batalhas.
Eu ceifo com a pena ervas daninhas
e a mentira que a todos envenena.
E tu ceifando penas essa pena
que fraterna se junta às penas minhas.
Onde tu ceifas eu ceifeiro sou
da tua dor ceifeira e dessas queixas
que dizes a ceifar e nunca ceifas.
Se já teu canto a foice te ceifou
canta ceifeira canta: a dor destrói-se
juntando a foice à pena e a pena à foice
É preciso um país
Não mais Alcácer Quibir.
É preciso voltar a ter uma raiz
um chão para lavrar
um chão para florir.
É preciso um país.
Não mais navios a partir
para o país da ausência.
É preciso voltar ao ponto de partida
é preciso ficar e descobrir
a pátria onde foi traída
não só a independência
mas a vida.
Salut, camarada
Évora 29 SET 72 (MCG - 1972.09.29)
vem de marco do correio 09 - poesia d'outrem 03 https://www.facebook.com/notes/victor-barroso-nogueira/marco-do-correio-09-poesia-de-outrem-03/10152804035374436
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)