sábado, 14 de março de 2015

marco do correio 11 - poesia d'outrem 05

* Victor Nogueira


1972
Café Portugal - dia de S. Pedro: uma pequena pausa na leitura contrariada do cooperativismo agrícola, capítulo da Sociologia Rural, parte ínfima da matéria de Sociologia II... Estou envolto no vozear barulhento neste fim de tarde, o ruído contínuo da máquina de café e da louça na cozinha, o barulho dos carros ali na rua. Seguramente um contraste com a Salvada, silenciosa nos seus ruídos campesinos, que o Pe. [Augusto] Silva tão literariamente descreve na sebenta {de Sociologia II], a propósito do meio físico rural: "O citadino que chega ao campo é ordinariamente surpreendido pelo silêncio que aí reina ou pelos ruídos novos que ouve (rumorejar das folhas, os gritos dos animais, o canto das aves, etc.) Tem a impressão de respirar mais à vontade ou, ao contrário, de ser surpreendido pelo vento, crestado pelo ardor do sol." Enfim, o rapaz Silva saiu‑me um "poeta".

Esqueceu‑se foi de falar no maravilhoso céu estrelado que vi em Beringel, [estirado no terraço duma casa que foi do Marquês de Minas].

E então a descrição psicológica que ele faz do agricultor !? Vê lá se concordas, oh gazela campestre:

“Identifica-se com o seu trabalho, raciocina a partir do concreto; sirtua os factos em relação à sua actividade; resolve os seus problemas por uma espécie de casuística; desconfia do verbalismo teórico; é desconfiado e individualista (individualismo não pessoal mas familiar)”e por aí fora.

Interessante, muito interessante !

Noto que o ruído aqui diminuiu, efeitos do aproximar da hora do jantar. Nas mesas ao meu lado o Dinis e o Carlos [Nunes da Ponte] estudam respectivamente Operações Financeiras e Contabilidade Industrial. Há um bom bocado que o Diogo e os seus amigos desapareceram.

Escrevo-te, e ao fazê-lo múltiplos porquês perpassam pelo meu espírito, como habitualmente. Estou um tanto ou quanto desolado; sucede-me sempre isto quando deixo a terra onde estou há algum tempo ou partem aqueles a quem de qualquer modo estou ligado. Fica sempre um vazio dentro de mim que o tempo ou o trabalho se encarregam de preencher. Escrevo-te pois, agora já em casa, aguardando que a D. Vitoria nos chame para mais um lauto banquete, que já se realizou no momento em que, sem resultados apreciáveis, tento passar legivelmente as linhas primitivas. Comecei deliberadamente a escrever para a direita (como na 1ª página) mas a meio da 2ª verifiquei que inconscientemente voltara a escrever na vertical. Não sei qual das letras me agrada mais (e a ti ?) mas esta é a que corresponde ao meu estado de espírito actual e com ela continuarei.

O silêncio que substituiu as discussões políticas à mesa após a partida da sra. D. Ilda e do sr. Marquês tem sido agora substituído por "importantíssimas" discussões entre o Diogo da Amareleja e o Victor [Dordio] do Cano sobre as altas percentagens de reprovações no Liceu e, sobretudo, como hoje, [por] questões automobilísticas. Enfim, se todos gostassem do mesmo era esta vida uma sensaboria, como diria a sabedoria popular.

Vou escrevendo, talvez sem grande interesse para quem me lê, mas com maior caudal do que esta tarde, quando resolvi acrescentar umas linhas à carta que a Bia [Almeida] escreveu ao senhor Marquês.

Levanto-me e ponho no gira-discos um disco que já não ouvia há muito: bossa-nova. Dança ?

Bem. amiga, vou deixar-te. Não é que a vontade de agarrar os “books” seja grande – o cansaço pela contrariedade é maior. Pareço-me um daqueles burros que teimosamente fincam as patas no chão, dificilmente arredando, mesmo que puxados pela arreata. Oh ! meu Deus, que auto-comparação tão pouco lisonjeira ! Olha, aquele tipo ali do gira-discos é parvo, está para ali a dizer que “só é triste quem não tem por quem chorar”.  [1] Tadinho.  Pfff ! Bem amiga, o relógio  [da igreja]  de Santo Antão bateu as onze da noite, cuja aragem entra pela janela escancarada e acaricia o meu rosto. É uma sensação agradável.

Já é 6ª feira. Tenho sentido a tua ausência. Não sei ainda o que és para mim: uma pessoa, (...), um símbolo, uma “possibilidade” ou tudo isto simultaneamente. Sei apenas que desejo a tua presença, tua e/ou daquilo que tu representas para mim !

O dia hoje está luminoso. O Diogo chegou há pouco. Pelos passos não posso dizer qual o resultado do exame de Geografia. Lá em baixo no pátio a Sra Maria lava a roupa e ouve-se o barulho da louça na cozinha. Uma criança, algures, solta uma gargalhada. E eu vou ficar-me por aqui. Receberás esta carta, visita minha, ainda amanhã ? Logo me dirás.

Deixo-te o Eugénio de Andrade

“Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de setembro,
quando a luz é perfeita e mais dourada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.”

Seguramente este não é um dos poemas mais poéticos do autor. O mesmo diz, por exemplo, estoutro:

“Nos teus dedos nascem horizontes
e aves  verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes..”

A minha mão hesita ao transcrever isto. Parece-me deslocado agora escrever isto. Há pouco ou daqui a pouco não me parecerá ou parecerá !

A Bia esteve aqui a falar. Veio entregar-me a folha junta, com informações que lhe pediras. Está chateada por nada ter para fazer e assim vai-se embora para Safara amanhã. Não lhe posso fazer a companhia que desejaria por causa do exame de amanhã, pois ainda me falta ver umas coisas que seguramente sairão. O que também não impede que paradoxalmente ocupe racionalmente o tempo. A Bia envia-te saudades e a tua Mãe.

Quanto a mim, despeço-me até 2ª feira à noite, em Beringel. Abraça por mim a tua mãe. Para ti beijos do amigo VM

Évora 30 Junho 72


~~~~~~~~~~
[1] Isto da Internet é um manancial de informação ao alcmce dumas teclagens e dum  clique. Hoje, em 15 de Março de 2015, descobri o nome e o poema desta "bossa nova"

As Mesmas Histórias

Sim, eu sei...
Volto de novo sabendo, quanto errei
Volto contando as histórias, as mesmas histórias
E no entanto eu nem lembro daquelas promessas que eu fiz

Só eu sei...
Quanta tristeza nas noites onde andei
Tanta saudade dos sonhos que eu sempre sonhei
E então aprendi que a beleza que existe é você

Você sorrindo só me faz acreditar
Que só é triste quem não tem por quem chorar
Que só é triste quem não tem por quem chorar

Sem comentários:

Enviar um comentário

Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)