* Victor Nogueira
1971
Uma breve pausa no “far niente” matinal e soalheiro para saber da tua ilustre pessoa e dos seus feitos.
Hoje, em Évoraburgomedieval é terça feira e, para além dos turistas habituais, a Praça do Giraldo e o Café Arcada encontram-se cheios de forasteiros, solidamente especados, indiferentes a quem passa e ao estorvo provocado. É dia de S.Porco, i.e, dia de mercado, em que os homens vêm à cidade para o negócio do gado, enfiados nos seus fatos escuros, de mau corte, botas enlameadas e chapéu na cabeça. Detesto a sua falta de maneiras, embora por vezes seja uma distracção observar as suas atitudes. O mais interessante neles é o modo como se escarrancham nas cadeiras, à mesa do café, solidamente instalados, o chapéu na cabeça atirado para trás.
Mas para além deles, e quotidianamente, há outras figuras curiosas no café, figuras de todos os dias nas mesmas posições. Todo um mundo parado, parecendo indiferente à passagem do tempo.
Este tempo que se esvai rapidamente, sem parar, fazendo aproximar cada vez mais uma época de exames que decidirá ou não a minha passagem para o 4º ano. Exames, ritual soando a falso, insignificativos e desacreditados. “Mas ainda não se descobriu algo que os substitua” (estafado e contestável estribilho, frequentemente citado).
Verdadeiramente Évora é uma cidade morta, a que o começo das aulas dá um certo movimento que se transformará na monotonia do café, casa, instituto, com o cinema (estreias diárias) e as mesmas caras e os mesmos rostos. Agora em Luanda tive a nítida sensação de estar exilado desde há três anos e, após o meu regresso, o desconforto da estranheza disto tudo que nada me diz.
… …. … …
Muito tempo se passou desde que escrevi as linhas anteriores. Entretanto tive notícias vossas pela minha mãe, que me disse do vosso breve regresso ao Porto, onde espero estas linhas te encontrem. Como sempre ouço música: Rameau. Não estou com grande disposição para escritas, a não ser elegíacas. Assim, fico-me por aqui. Queres escrever-me ? Deves ter montes de impressões para comunicar ! [agora que da nossa Luanda te vieste matricular em Letras, no Porto]. Para ti, pela voz do Daniel Filipe in “O Viajante Clandestino”.
IV
Uma palavra antiga
mais nada .
Eh amiga ,
camarada !
Eh , onde quer que o sonho
leve o teu corpo tenso , teu sabor campesino ,
agridoce , de azedas e medronho ,
tua voz - aurora , sol , vitorioso sino.
Motivo de cantiga ,
anónima e amada
eh amiga ,
camarada !
PS. Dá comprimentos meus a teus pais e saudades à Nela.
Évora 9 OUT 71
Victor Manuel
Pousa a mão na minha testa
Não te doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
— Amor.
(Manuel Bandeira)
Tema e variações
Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado
Em sonho lembrei-me
de um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.
Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.
Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.
(idem)
Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
(Álvaro de Campos)
(F. Pessoa)
(MAF - 1971.10.09)
VEM DE marco do correio 14 - poesia d'outrem 06 - https://www.facebook.com/notes/victor-barroso-nogueira/marco-do-correio-14-poesia-doutrem-06/10152846354504436
1971
Uma breve pausa no “far niente” matinal e soalheiro para saber da tua ilustre pessoa e dos seus feitos.
Hoje, em Évoraburgomedieval é terça feira e, para além dos turistas habituais, a Praça do Giraldo e o Café Arcada encontram-se cheios de forasteiros, solidamente especados, indiferentes a quem passa e ao estorvo provocado. É dia de S.Porco, i.e, dia de mercado, em que os homens vêm à cidade para o negócio do gado, enfiados nos seus fatos escuros, de mau corte, botas enlameadas e chapéu na cabeça. Detesto a sua falta de maneiras, embora por vezes seja uma distracção observar as suas atitudes. O mais interessante neles é o modo como se escarrancham nas cadeiras, à mesa do café, solidamente instalados, o chapéu na cabeça atirado para trás.
Mas para além deles, e quotidianamente, há outras figuras curiosas no café, figuras de todos os dias nas mesmas posições. Todo um mundo parado, parecendo indiferente à passagem do tempo.
Este tempo que se esvai rapidamente, sem parar, fazendo aproximar cada vez mais uma época de exames que decidirá ou não a minha passagem para o 4º ano. Exames, ritual soando a falso, insignificativos e desacreditados. “Mas ainda não se descobriu algo que os substitua” (estafado e contestável estribilho, frequentemente citado).
Verdadeiramente Évora é uma cidade morta, a que o começo das aulas dá um certo movimento que se transformará na monotonia do café, casa, instituto, com o cinema (estreias diárias) e as mesmas caras e os mesmos rostos. Agora em Luanda tive a nítida sensação de estar exilado desde há três anos e, após o meu regresso, o desconforto da estranheza disto tudo que nada me diz.
… …. … …
Muito tempo se passou desde que escrevi as linhas anteriores. Entretanto tive notícias vossas pela minha mãe, que me disse do vosso breve regresso ao Porto, onde espero estas linhas te encontrem. Como sempre ouço música: Rameau. Não estou com grande disposição para escritas, a não ser elegíacas. Assim, fico-me por aqui. Queres escrever-me ? Deves ter montes de impressões para comunicar ! [agora que da nossa Luanda te vieste matricular em Letras, no Porto]. Para ti, pela voz do Daniel Filipe in “O Viajante Clandestino”.
IV
Uma palavra antiga
mais nada .
Eh amiga ,
camarada !
Eh , onde quer que o sonho
leve o teu corpo tenso , teu sabor campesino ,
agridoce , de azedas e medronho ,
tua voz - aurora , sol , vitorioso sino.
Motivo de cantiga ,
anónima e amada
eh amiga ,
camarada !
PS. Dá comprimentos meus a teus pais e saudades à Nela.
Évora 9 OUT 71
Victor Manuel
Pousa a mão na minha testa
Não te doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
— Amor.
(Manuel Bandeira)
Tema e variações
Sonhei ter sonhado
Que havia sonhado
Em sonho lembrei-me
de um sonho passado:
O de ter sonhado
Que estava sonhando.
Sonhei ter sonhado...
Ter sonhado o quê?
Que havia sonhado
Estar com você.
Estar? Ter estado,
Que é tempo passado.
Um sonho presente
Um dia sonhei.
Chorei de repente,
Pois vi, despertado,
Que tinha sonhado.
(idem)
Estou cansado, é claro,
Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.
De que estou cansado, não sei:
De nada me serviria sabê-lo,
Pois o cansaço fica na mesma.
A ferida dói como dói
E não em função da causa que a produziu.
Sim, estou cansado,
E um pouco sorridente
De o cansaço ser só isto —
Uma vontade de sono no corpo,
Um desejo de não pensar na alma,
E por cima de tudo uma transparência lúcida
Do entendimento retrospectivo...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
Sou inteligente; eis tudo.
Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,
E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,
Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.
(Álvaro de Campos)
(F. Pessoa)
(MAF - 1971.10.09)
VEM DE marco do correio 14 - poesia d'outrem 06 - https://www.facebook.com/notes/victor-barroso-nogueira/marco-do-correio-14-poesia-doutrem-06/10152846354504436
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)