sexta-feira, 27 de março de 2015

marco do correio 16 - poesia d'outrem 08

* Victor Nogueira

1973


 A vyda sem ver-uos
he dor e cuidado,
que synto dobrado
querend' esquecer-uos.
Por que, sem querer-uos
já nam poderia
vyver hũ soo dia.

 Já tanta payxam
valer nam podera
se vos nam tivera
em meu coraçam.
Sem tal defensam,
meu bem, hũ soo dya
viuer nam queria.

(Conde de Vimioso)
~~~~~~~~~~
    Sospiros, cuydados,
payxões de querer
se tornam dobrados,
meu bem, sem vos ver.
Nom synto prazer,
sem vos hũ so dya
viuer nam queria.

    Nam quero nem posso
nem posso querer
viuer sem ser vosso,
e vosso morrer,
Poys ysto ha-de ser,
por morte aueria
nam vos ver hũ dia.

(Garcia de Resende)
~~~~~~~~~~
TROVAS SUAS A UM VILANCETE ALHEIO
“Abayx’esta sserra / verey minha terra”

Oo montes erguidos,
deyxay-uos cahyr,
deyxay-uos somyr
e ser destroydos.
Poys males sentidos
me dam tanta guerra
por ver minha terra.

Rybeyras do mar,
que tendes mudanças,
as minhas lembranças
deyxay-as passar.
Deyxay-m' as tornar
dar nouas da terra
que daa tanta guerra.

CABO
O ssol escureçe,
a noyte sse vem,
meus olhos, meu bem
ja nam apareçe.
Mays çedo anoytece
aaquem desta serra
que na minha terra.

(Francisco de Sousa)
~~~~~~~~~~
Señora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhũs por ninguém.
Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partyda,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mays desejosos
cem myl vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d'esperar bem,
que nũca tam tristes vistes
outros  nenhũs por ninguém.

(João Roiz de Castel-Branco)

Olaa ssalta-pocyñas !

Descobri ontem, numa antologia de literatura medieval, os poemas que acabaste de ler e que muito me agradaram. Por isso tos transcrevi; parece-me que já conheces o último. A propósito: não sei se conheces e aprecias Eça de Queiroz. Se assim for e se os houver, poderás requisitar na biblioteca itinerante da Gulbenkian “Cartas de Inglaterra”, “Ecos de Paris” e/ou “Cartas Familiares e Bilhetes de Paris”. São simplesmente deliciosos os seus escritos e comentários.

O dia hoje esteve maravilhoso. Um pequeno senão: a electricidade trovoadoresca, já minha velha conhecida permanente de Luanda, e que me complica com o sistema nervoso; nem imaginas o sacrifício que é para mim contactar com as pessoas neste estado. Antes o frio e uma boa lareira !

Estivemos no café até meio da tarde. Depois fomos – o João [Garcia], o Carlos [Nunes da Ponte] e a Lurdes – dar uma volta pela cidade, apreciando os prédios e espreitando pelas frinchas. O João anda à procura de casa, pois a senhoria dele resolveu aumentar, dum mês para o outro, em quinhentos escudos a pensão, que passou a ser de dois mil escudos (!). Claro que encontrar casa decente nesta época do ano é um bico-de-obra. Quando vier para cá a Universidade, então é que vai ser o bom e o bonito. Oh! se vai. Então é que elas ficarão com os hóspedes na mão, a seu bel prazer.  Sim, que o Governo faz a “sementeira da educação” (de um discurso do Veiga [Simão])  mas quem colhe os espinhos … tá-se mesmo a ver quem será. Já o [Diário de] “Lisboa” de hoje trazia uma notícia, informando que o Instituto Universitário de Évora começará a funcionar no próximo ano, desdobrando-se o actual ISESE [Instituto Superior Económico e Social de Évora] em duas faculdades e funcionando na Escola Agrícola (entretanto transferida para Beja, Portalegre ?) os cursos de Agricultura, Pecuária e Direcção de Empresa Agrícola. O papel acabou e meus olhos te deyxam, meu bem. Muyto çedo anoyteçe !
~~~~~~~~~~
Querida C.

Escrevo isto:  no entanto nada diz do meu desejo por ti e de toda a ternura que gostaria tivesse livre curso; são sensações e impressões, memórias e desejos vagos; já não sei onde eles terminam e estás tu, a tua pessoa. Gostaria de largar tudo e partir à tua busca, chegar e dizer: aqui estou, na fragilidade e na leveza dos gestos ternos que buscam a forma de expressão não nas palavras mas em si mesmos, no estar ali presente. E o meu entendimento perde-se no inebriamento dos sentidos, por ti, que só os meus olhos e os meus dedos conhecem: sermos apenas um completos em tudo o que nos rodeia. Mas isso, ah! isso é um instante fugaz na constância de eu ser eu, cada outro o outro e o mundo uma realidade distinta de nós. Sei isso. Sei-o até agora. A vida vai passando e nós com ela, em caminhos distintos que ainda não vejo como nem onde se juntarão. De mim sei apenas que vagueio de mãos vazias com tudo o que não floresceu senão incompletamente. Palavras, que algo em mim refreia enquanto Haydn se ouve além [no gira-discos].  Os meus dedos e os meus lábios percorrem o teu rosto e o teu corpo ao de leve, como brisa suave e cariciante; busco-te com ardor e tudo isto é memória ou imaginação, emoção que a nada conduz porque não é senão passado ou futuro, sem realidade no agora. Nada resta senão calá-la no fundo de mim.

Hoje deixo-te apenas isto sem te falar do tempo que escorre pelos meus dedos abertos, como areia onde nada cresce.

Salut, camarada, a quem beijo e abraço com ternura e amizade
Évora, 21 março 73  
VM
 PS – Arrumo a máquina [de escrever]  e vou preparar trabalho para uma das aulas de amanhã, Mais logo irei para o Sabugueiro fazer inquéritos. Lá fora o tempo está encoberto. No início da Primavera, ainda não há as flores e os gorjeios das avezinhas de que falam os livros das criancinhas que vão para a escola aprender o A-E-I-O-U. Não é, sessôra ?!


Sem comentários:

Enviar um comentário

Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)