Com uma vida até aí vivida em cidades abertas e onde havia solidariedade como em maior ou menor grau sucedia em Luanda, Lisboa (da Academia e das Associações de Estudantes) ou Porto (a terra onde haviam nascido e vivido os meus pais e tios e onde viviam os meus avós), évoraburomedieval era uma ilha de pedra e cal parada no tempo, nas mãos dos agrários e dos machos lusitanos ou marialvas, e foi um enorme sufoco, sem esquecer a enorme desilusão do ISESE nas mãos dos Jesuítas, uma escola "velha" e não a "nova" que procurara. Nesse 1º ano ainda não se cimentara o que chamo o "grupo do Café Arcada", que reunia alguns poucos alentejanos e os estranhos "estrangeiros" provenientes de Angola e Moçambique e dos 4 cantos de Portugal para lá do Alentejo, sobretudo da Beira Interior e de Trás-os-Montes.
Em Luanda a casa dos meus pais sempre foi uma casa de portas abertas e o meu quarto na casa de hóspedes eborense sempre foi uma "cidade sem muros nem ameias", tal como abertos eram os meus colegas alentejanos em Lisboa. Mas Évora, Évora era uma cidade sitiada e temerosa. Para mim todos eram amigos até prova em contrário mas dizia-me a D. Vitória Prates, minha hospedeira, que os alentejanos apenas davam a sua amizade a quem previamente provasse merecê-la. Tirando duas colegas minhas, a Lúcia e a Guida, e mais tarde o Miguel Bacelar e o Aníbal Queiroga, nenhum dos alentejanos com quem convivia alguma vez me convidou para sua casa. Foi apenas nos montes e aldeias do Alentejo que senti o sabor da palavra "amigo", não nas vilas ou cidades.
Em Luanda a casa dos meus pais sempre foi uma casa de portas abertas e o meu quarto na casa de hóspedes eborense sempre foi uma "cidade sem muros nem ameias", tal como abertos eram os meus colegas alentejanos em Lisboa. Mas Évora, Évora era uma cidade sitiada e temerosa. Para mim todos eram amigos até prova em contrário mas dizia-me a D. Vitória Prates, minha hospedeira, que os alentejanos apenas davam a sua amizade a quem previamente provasse merecê-la. Tirando duas colegas minhas, a Lúcia e a Guida, e mais tarde o Miguel Bacelar e o Aníbal Queiroga, nenhum dos alentejanos com quem convivia alguma vez me convidou para sua casa. Foi apenas nos montes e aldeias do Alentejo que senti o sabor da palavra "amigo", não nas vilas ou cidades.
E desse tempo anterior ao 25 de Abril que falam escritos meus como este texto de 1969..
* Victor Nogueira
6ª feira Santa
Ah! 15 horas!
Sim, foi há uns dois mil anos
Houve um Deus feito homem
- ou um Homem feito deus -
não sei bem.
A memória dos homens é fraca.
Mas, ... não interessa
Há dois mil anos alguém morreu numa cruz
Vejam lá!
Até disse coisas simples
"Que o vosso falar seja sim, sim, não, não"
"Amai-vos uns aos outros!"
"Perdoai as nossas ofensas
"Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido"
Tudo coisas neste género,
Bem, também falou em choro e ranger de dentes
em maus servos,
infiéis,
Lembro-me, bem, lá lembrar não lembro
- ainda não era nascido
pois, lembro-me
NÃO!
Dizem-me que esse alguém disse
para não cortar as ervas daninhas
antes de vir o tempo da ceifa,
não fosse estragar-se a seara.
Foram assim coisas nesse género.
Coisas simples..
Pois só os simples as entendiam.
"Não julgueis para não serdes julgados"
Parece-me ser também de sua autoria.
Não interessa.
Deve ter sofrido muito
-até chorou lágrimas de sangue! -
Vejam lá!
A mesma multidão que lhe cantou hosanas
ululou selváticamente no Calvário
- não confundir com o António.
Não brinco.
Sei quanto pesa a solidão,
a traição dos amigos
o sono dos que dizem acompanhar-nos
Ah! sei! Oh! se sei!
Quão pesados são os risos de escárnio
as galináceas multidões
cacarejando
aos uivos.
E eu não tenho pretensões de morrer
para salvar as meus irmãos
- só dou para alguns.
Dizem que foi há dois mil anos
que os seus frágeis ombros de Homem feito deus
ou Deus feito homem
suportaram o pesado madeiro
feito das nossas lágrimas,
dos nossos desesperos,
das nossas angústias,
das nossas raivas,
das nossas faltas
que não são nossos,
mas do Adão e da Eva.
Morreu sózinho,
abandonado,
numa a cruz
ladeado por dois ladrões
- o bom e o mau,
o Judas e o João
o espírito e a matéria
o homem e a mulher
o lupanar e a igreja
Gabriel e Lúcifer
o bem e o mal ...
Dizem que foi por mim, por nós.
Depois
os homens pegaram na sua solidão
Institucionalizaram-na
(é um termo bonito)
Juntaram-lhe artigos
alíneas,
parágrafos,
ritos
gestos
penumbras,
trindades,
Trentos e Vaticanos.
"Quem não for por mim
é contra mim!"
Organizaram-se cruzadas
Alcácer Quibir
a Inquisição
o Index
os autos de fé
- ah! o fogo purificador -
Vá, em fila
"Arbeit macht frei"
Auschwitz Bergen-Belsen
Está tudo bem escrito
o que deve fazer-se
o que não deve fazer-se
artigo 8º e suas alíneas [1]
É preciso estudar muito
Direito Natural
Doutrina Social da Igreja
Filosofia
Teologia
Teodiceia
Direito Canónico
Internacional Público
Ética
e muita matemática
cálculo infinitesimal
para extrair a média aritmética
da raiz quadrada disto tudo
(parto sem dor)
e planificar bem. a distribuição dos pecadores
e dos bem aventurados,
para que não haja inflação
para que se equilibrem
as curvas da oferta e da procura.
Hoje não se come carne·
nem se ouve música
deve comungar-se ao menos·
uma vez cada ano
Pela Páscoa da Ressurreição
Domingo
Mete-se a moeda
sai a confissão - perdão - absolvição
despache-se
não vê a multidão
enorme
quedesejalavaraalma?
1969.Abril.04 - Évora
[1] o artº 8º da Constituição fascista enumerava os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que logo de seguida negava ou condicionava
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)