quarta-feira, 28 de março de 2018

Holidays in Portugal

* Victor Nogueira



setúbal - auto-retrato em 2018.03.28 - O postal na prateleira é humorístico, duma série com aqueles dois personagens em situações variadas. Ele tem parecenças com o meu pai e retrata a relação mútua dele com a minha mãe, neste caso ambos na praia, ela zangada com ele e ele "alheado" de costas voltadas e ouvindo música. Ofereci um a cada um deles: o meu pai achou montes de piada mas a minha mãe zangou-se comigo, pois entendeu que estava a ser ridicularizada e o seu sentido do humor desvanecia-se quando lhe parecia que estava a ser posta em causa, contrariamente ao que sucedia com o meu pai que se divertia com os postais e bonecos que eu lhe oferecia., Abaixo pode apreciar-se o referido postal



A quem me visitar, uma boa Páscoa

* Victor Nogueira




A quem me visitar, uma boa Páscoa. Para quem estiver ausente ou silente, também.

terça-feira, 27 de março de 2018

As gracinhas da Susana e do Rui Pedro

Foto de Victor Barroso Nogueira.

* Victor Nogueira


1976

                O "Vitinho" está a crescer de dia para dia. (Da Celeste para FNS - 1976.03.14)

A Celeste lá vai andando, bem como o mini, que deve nascer lá com a força do calor.  (MEB - 1976.06.01)

A Susana lá vai crescendo e engordando. ([1]). A semana passada já pesava 3,200 kg. Não chora muito, mas fá‑lo normalmente a horas inconvenientes, isto é, ente as 24 e as 2 da madrugada. Já tem uma configuração diferente mas não sei com quem é parecida. Ah! Ah! Ah! Dizem que é comigo! Coitadinha da criancinha, bem poderia ter saído mais bonitinha! 

Nós cá vamos com uma nova actividade: o "tratar da Susana" (o nome sugerido pelo tio Zé [Luís] (...) Quando lhe damos as gotas [de Vi‑Dê] faz umas caretas enormes que nos faz rir (E a tomar banho também. Delicia‑se, salvo quando lhe molham a cabeça). O Victor está um pai "baboso" (NSF - 1976.08.30)

A Susana cá vai crescendo. Já tem cara de gente e vai engordando. Agora está bebendo o leite de biberon. Já nos segue com os olhos, desde que estejamos ao pé dela, e de vez em quando vai sorrindo, cada vez com mais frequência. Tem recebido bastantes prendas, mas sucede‑lhe um pouco como aos noivos: qualquer dia não sabe o que há‑de fazer aos "babetes" e aos "baby‑grows" (macacos). (NSF - 1976.05.09)

A Susana tem grandes palrações e de vez em quando berra para lhe irem fazer companhia. Pesa 6,050 kg. (MEB - 1976.11.29)

A D.Maria [avó] e a Susana dormem. A Susana fala muito, embora por enquanto só ela entenda o seu palrar. Nasceu‑lhe um dente e outro está a romper. Agarra as coisas e diverte‑se a tocar o guizo ou a fazer chiar o cão de borracha. Fora isso bebe o leite todo mas faz grandes fitas para comer a papa. (NSF - 1976.12.13)


1977

A Susana está com muitas gracinhas. (NSF - 1977.05.22)



1978

A Susana está para ali amuada pois quer ir para casa da Isabel, nossa vizinha. (MCG - 1978.06.27)


1980

A Susana tosse - tem estado com anginas. Está numa fase de afirmação de si própria e só quer fazer o que muito bem entende. Não sei como lidar com ela! (NSF - 1980.08.28)


1986

Ouço o Pedro Barroso, que em 2ª audição me agrada mais. Já arrumei as embambas, li a carta da Susana e vi o desenho do Rui, pus a roupa suja na barrela, faltando-me lavar a louça do jantar. Sempre comprei um frango assado, que ficará para amanhã, pois descobri no frigorífico um resto de perna de perú e batatas assadas, a que juntei um ovo cozido, sumo de limão e sopa de legumes que a minha querida sogra me veio cá deixar antes de ir-me embora no fim-de-semana. (MMA 1986.07.23)

Passei a manhã lendo ou gravando música - desta vez brasileira - para além de ter ajudado a minha tia lavando a louça e na parte das lides domésticas resultantes da minha estadia. À tarde fui com a Susana ver o comércio de Paço de Arcos e passear pelo jardim.  (MMA 1986.08.15)

Aproveitando a lassidão deste dia, fui dormir depois de almoço, para pôr os sonos em dia e para ganhar alento para logo ver na TV o filme da meia noite. 0 Rui foi brincar para casa do Chico e a Susana foi com a Cinda e demais amigas à festa de Natal da Junta de Freguesia de S. Sebastião. E eu, como não  me apetece sair, por causa do frio mas também por causa desta chuva miudinha que todo o dia tem caído, pus-me a ouvir música no leitor de cassetes que a Susana "ganhou" na Festa de Natal da Câmara; primeiro o UHF e agora o Paulo de Carvalho e a seguir a Gal Costa. É daqueles leitores que tem uns auscultadores e que a malta jovem traz pendurados nas orelhas, na rua ou nalguns empregos. O Rui também ficou encantado com a prenda que Ihe coube, um robot que deita luz por todos os lados e muda de direcção quando choca com os obstáculos.


(...) Posso pois continuar a minha visita á Maria do Mar, enquanto o Rui e a Susana brincam pegados um com o outro, com a exclamação "pai" nos lábios, até que se magoem e gritem a sério, obrigando-me a intervir com bonomia ou zangado, conforme a minha disposição na altura. (MMA 1986.12.14)


1988


Daqui a pouco vou com as criancinhas para Setúbal; na próxima segunda feira entro de férias.

Vim carregado com os álbuns de fotografias desde 75, para identificar ou escolher as que darei ao Rui e à Susana  para os álbuns deles. Foi uma empreitada para esta linda 2ª feira de Agosto.

Misturado com algumas fotografias repetidas encontrei este postal, de quando há dois anos fui acampar com amigos meus [o Manuel Salazar e família] para Lagos, e uma foto tua, que te ofereço. És das minhas amigas aquela de quem eu mais gosto ou com quem prefiro estar ou encontrar-me, mas és também a mais "complicada". Olha, dou-te um beijinho e como não posso estar contigo deixo-te alguns textos do Rui e da Susana. Ontem fiquei contente por estares contente; espero contudo que hoje já não estejas com a "neura" ! (MMA 1988,08.15)

1993

Ontem fui ás compras, arejar o dinheiro. Comprei mais um relógio de parede, muito original, para substituir um outro de estilo mais "barroco", o da sala, que só tem trabalhado quando lhe apetece (talvez por ser "fino" demais) e que tocava doze músicas diferentes, uma a cada hora, dum modo que entoava por toda a casa, irritando a Susana. Para além disso comprei dois CD dos Beatles, o chamado Duplo Álbum Branco, por alguns críticos considerado dos melhores, conjuntamente com o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, (MMA 1993.08.07)

 Hoje estou  novamente com este enorme casarão por minha conta. A minha mãe esteve a passar uns dias em Setúbal., mas já regressou a Paço de Arcos. Apesar dos nossos "desentendimentos" [entre mim e a minha mãe] a casa ficou vazia, como sucede quando o Rui ([2]) e a Susana se vão embora, especialmente após estadias mais prolongadas. (MMA - 1993.08.10)



Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.

Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui  e para as quais me vem chamar a atenção com frequência.

Nem parece que houve fim de semana. Estou  muito cansado e dormi à tarde (coisa rara), até ser acordado pelo telefonema da Christine, uma colega e amiga  da Susana.  (MMA - 1993.08.15)

É meia-noite e o silêncio da madrugada, que apenas começa, só é perturbado pelo suave ruído das ventoinhas do quarto e do ventilador do computador, para além do matraquear das teclas que permitem a fixação deste texto. Quando paro para pensar ou refazer o que escrevo ouço um leve barulho da televisão que o Rui e a Susana vêm, entremeado com a conversa deles, lá ao fundo na sala. (MMA - 1993.08.15)


Finalmente a bagagem está toda ali à porta ou no corredor, aguardando o seu transporte para o velho Renault 5, meu companheiro de longas viagens. Tudo isto teria sido mais rápido se as criancinhas ajudassem, mas entre cada transporte ou arrumação surge sempre uma série na televisão que elas têm de ver ou um livro para o Rui ler !

Se o meu carro fosse de confiança amanhã metia-me auto-estrada do Norte acima, pois não tenho paciência para esperas e transbordos. Assim, tenho de passar por Paço de Arcos, descarregar, comprar bilhetes para o comboio, voltar a carregar o carro, levá-lo no dia seguinte para Santa Apolónia com uma hora de antecedência, secar na estação até à hora da partida, embarcar, desembarcar em S.Bento, esperar pelo descarrego do carro e ala para o Mindelo. Como se vê, uma aventura que se repetirá no regresso, onde espero ficar em Paço de Arcos alguns dias, em Setembro.  (MMA 193.08.17)

De modo que me sentei aqui no quarto do meu tio José João para ocupar o tempo a escrever  enquanto ele assiste a um desafio de futebol transmitido pela TV; a minha tia Maria Luísa lá ao fundo, na sala, assiste a outro programa com a Alexandrina, a viúva do meu avô Zé Luís. Quanto ao Rui e à Susana foram para a cozinha especar-se frente a um terceiro televisor, para ver um filme com o Robert De Niro e o Robert Duvall. Televisores não faltam e é difícil haver guerras por causa dos programas (ainda há um quarto aparelho, que está desligado). A contrapartida é que está cada um silencioso para seu lado, o que tem vantagens ou desvantagens conforme as circunstâncias. 

            
O calor continua e neste fim de semana partirei mesmo para o Norte, pois eu e a Susana queremos estar de volta para poder  assistir à Festa do Avante. De manhã fui cortar o cabelo a um barbeiro já velhote cuja existência desconhecia, ali numa transversal entre a Livraria Danny e o Largo do Mercado. A barbearia foi outrora o Salão Azul, agora decadente, e aplica cortes antigos e preços que são metade dos de outras barbearias. E que lento que é o velhote  na execução da sua tarefa! Porque gosto do trabalho perfeito, explicava-me ele.À tarde o Rui queria ir ao cinema (...) [e] a Susana preferia ver as lojas da Baixa Pombalina, para arejar o dinheiro. Prevaleceu a proposta da Susana, que comprou adereços de artesanato em pele e missangas, tendo oferecido ao maninho uma fina pulseira em cabedal. 

(...) Hoje não choveu, apesar do tempo trovoadoresco, pelo que acabámos na Praça da Figueira cheia de gente, na Esplanada  dos Irmãos Unidos vizinha da Suiça, mas com pouca variedade de comes e bebes. Por lá apareceu um indivíduo, poeta popular, vendendo meia dúzia de poemas  em livro de sua autoria, a quem comprámos um exemplar que dedicou à Susana, depois dele e a minha mãe se terem recitado mútuamente poemas das respectivas autorias. De qualquer modo os dele, em conteúdo, não chegam nem de perto nem de longe aos calcanhares do António Aleixo, algarvio, ou do Calafate, setubalense,  pois quanto ao estilo  são diferentes. (MMA - 1993.08.19)



A Susana, acabada de acordar, veio até aqui perguntar se eu andava a escrever o meu diário, emitindo a douta opinião de que os diários só se escrevem ... ao fim do dia e não a meio da manhã. Quanto ao Rui  apareceu agora dizendo que era um hippie, de tronco nú, vestido com as calças de ganga,  um colete da irmã e as joias artesanais dela ao pescoço e nos braços. É o ai Jesus da Alexandrina, que o trata como o menino da avó, com ternurinhas e cuidados risonhos, coisa a que não está muito habituado. (MMA , 1993.08.20) 

O Rui anda ali no corredor exibindo o seu esqueleto bronzeado como se fosse musculado e atlético, ao murro à irmã, esquecendo‑se que em resultado de brincadriras semelhantes ela anteontem torceu‑lhe o dedo indicador, o que é um grave acidente com repercussões nos seus exercícios de viola e no seu dedilhar do computador. (MMA - 1993.08.20).

O Mindelo é para mim um quartel-general donde parto para as minhas explorações paisagísticas e turísticas. Para o interior e ao longo dos rios dão-se belos passeios, com protestos da Susana, que não aprecia ver pedras e monos. (MMA - 1993.08.21)


Na 2ª feira coube-me a vez de servir de ama-seca ao Rui, pois tive de ir com ele à escola da Belavista, onde pela última vez dei aulas há 12 anos, para mudar para a turma onde ficou a maioria dos colegas que foram transferidos com ele da escola do Aranguez. Na sala onde eu dava Geografia agora é o Conselho Directivo e alguns empregados ainda me reconheceram, o que não deixa de ser agradável. O que não me agrada é ele ficar possivelmente com aulas á tarde e não sabiam ainda se também ao sábado de manhã. Devido á falta de salas de aulas, o turno funciona salvo erro com seis horas seguidas, o que é uma violência.  De resto nesta escola foi a única vez que dei 22 horas de aulas semanalmente, apenas num turno, o da tarde, o que me custou imenso. Felizmente que a meio desse  ano  fui para a Câmara do Barreiro. MMA - 1993.09.15)

O Rui anda todo orgulhoso porque lhe teria aparecido uma borbulha de acne no rosto, sinal, segundo ele, de que já entrou na puberdade. Agora deu-lhe para experimentar penteados a ver qual lhe fica melhor. Já não bastava o orgulho na musculatura! (MMA - 1993.09.16/19)

De manhã passei pelo Jumbo de Alferagide, cheio como sempre, apesar de estarmos a meio do mês. Ao menos no de Setúbal anda-se à vontade, excepto no final dos meses. Mas o de Alferagide tem mais variedade de filmes em vídeo ao meu gosto, que não comprei, enquanto os CD estão mais arrumadinhos.

Como não podia deixar de ser eu e a Susana perdemo-nos na confusão do Jumbo, só a encontrando à minha espera no carro, pois esquecera-se duma nossa velha combinação sobre o ponto de encontro após perdimentos nestes malfadados hipermercados. E lembro-me duma das vezes em que nos perdemos no Jumbo de Setúbal. Farto de andar às voltas, dirigi-me à recepção dizendo que perdera a minha filha e se lhe podiam marcar um ponto de encontro. Ia tudo bem até que a empregada me perguntou a idade da menina. Devidamente informada das suas 16 risonhas primaveras, a empregada foi-me logo dizendo que com tal idade nada feito, pois a desaparecida já era muito crescida para andar perdida, pelo que não podiam satisfazer a minha pretensão. De modo que lá andámos os dois num hiper cheio como ovo, aos encontrões, à procura um do outro, cada um para o seu lado desconhecido, deixando recados a toda a gente conhecida com quem me ia cruzando. Uma aventura  sem qualquer graça!

(...) O Mindelo é para mim um quartel-general donde parto para as minhas explorações paisagísticas e turísticas. Para o interior e ao longo dos rios dão-se belos passeios, com protestos da Susana, que não aprecia ver pedras e monos.
           
E chega por hoje de letras alinhadas em carreirinha umas atrás das outras. (MMA 1993.08.21)

Acordei mal disposto e cansado, o que de resto me sucede desde domingo, tal como antes de férias. Para além disso hoje acordei de madrugada cheio de frio, pelo que resolvi fechar a janela da cozinha. Voltei a acordar mais tarde, continuando com frio até descobrir que a janela do quarto da Susana também estava aberta. De qualquer modo  não se perdeu tudo e assisti ao nascer do sol antes de voltar a deitar-me, acordando tarde. Antigamente e nas férias levantava-me mal acordava. Mas agora não tenho prazer em levantar-me em tempo de trabalho como este que (não) tenho presentemente. (MMA 1993.09.08/09)

O Rui e a Susana vieram para o habitual fim-de-semana quinzenal que passam comigo. Amanhã começam as aulas. Fiquei por Setúbal, fazendo o habitual: arrumar a casa, comprar e ler os jornais, lavar e estender a roupa, comprar víveres na cooperativa, ouvir música. Não me apeteceu ir a Lisboa, embora a minha velha amiga Musa d'Ante, regressada definitivamente do Parlamento Europeu, me tenha convidado para ir conhecer a casa que alugou em Benfica e comer uns hamburgers especiais.

Também não me apeteceu aceitar o convite do Zé e da Madalena, um casal amigo do Seixal, para irmos jantar a casa deles hoje ou para irmos amanhã ao Barreiro ver a pastelaria que em sociedade com uma irmã do Zé abriram nesta cidade. Ando fatigado e não há meio de passar a inflamação nos gorgomilhos que me acompanha desde meados de Agosto e que com a chuvada piorou.

O Rui anda todo orgulhoso porque lhe teria aparecido uma borbulha de acne no rosto, sinal  segundo ele de que já entrou na puberdade. Agora deu-lhe para experimentar penteados a ver qual lhe fica melhor. Já não bastava o orgulho na musculatura! (MMA 1993.09.16/19)

A especialista em bolos é a Susana, mas ultimamente tem-se dedicado mais ás mousses de chocolate, que já deixei de apreciar, não por serem dela, que até tem jeito, mas porque antigamente gostava mais de doçarias.
            
O fim de semana passado, que ameaçava ter sido chuvoso, acabou soalheiro. No domingo á tarde fui com o Rui e a Susana ao Jumbo comprar material escolar para  o caçula depois de termos ido a uma das salas de cinema do centro comercial ver um filme de que te falei anteriormente: Dennis, o Pimentinha, sobre as diabruras duma criancinha traquinas. Embora me tivesse rido nalgumas cenas, achei o filme inferior a qualquer um dos da série Sózinho em Casa, não só porque nestes o miúdo/actor era mais expressivo, mas também porque nestes a história tinha mais consistência. Embora qualquer deles sejam filmes para miúdos cujo principal intérprete é uma criança, são  duma extrema violência sobre os bandidos, adultos, que sofrem autênticos tratos de polé. Mas a verdade é que o Rui e os seus amigos deliram com tais cenas de violência, muito semelhantes ás dos filmes de desenhos animados, sobretudo dos de origem  norte-americana que a televisão passa nos programas infantis.

Foi um fim-de-semana relativamente folgado, pois à Susana deu-lhe o apetite de fazer todas as refeições por sua iniciativa. Quanto ao Rui, como já entrou na adolescência, cozinha as refeições dele quando não gosta do rancho da maralha. Claro que só fecho os olhos ás ementas do Rui para ele próprio porque fins-de-semana não são todos os dias a comer arroz de manteiga e douradinhos ou sandes de atum de conserva!

Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também  utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ... (MMA 1993.09.20) 

Neste fim de semana a Susana não quis sair, a não ser para ir ás compras comigo, e pespegou-se em frente ao televisor ou a ouvir música, para além de se ter encarregado dos almoços e jantares e de aspirar a casa.  O Rui pespegou-se frente ao computador a jogar com o Bruno, um dos filhos da vizinha Estrela,  e desta vez não houve  ensaios de viola porque a não trouxe. Outras vezes fazem um estendal no chão com carros, canhões e soldados simulando grandes, discutidas  e barulhentas batalhas terrestres. (...)

De qualquer modo agora tenho com frequência companhia ao almoço. Com efeito o Rui anda com uma paisite aguda, de que te falei um dia destes ao telefone, pelo que vem até aqui  frequentemente  para almoçar ou quando não tem aulas, pois a Escola da Belavista fica a dois passos. Normalmente traz um colega, nem sempre o mesmo, para almoçar também ou para jogarem no computador. E neste fim de semana resolveu ficar ... até 3ª feira (5 Outubro), embora a Susana tivesse ido embora hoje. De vez em quando chega‑se inesperadamente a mim para beijar-me ou abraçar-me e retribuir-lhe. A Susana é que de vez em quando tem destes ataques de ternurite, mas vindos do Rui é novidade. Sabes, aqui é sempre o mais novo, enquanto que na casa da mãe passou a ser o do meio. Aliás o Jorge é um miúdo precoce, como a Susana, e o Rui ressente-se das habilidades comentadas dos irmãos das extremas. Quando está sózinho comigo é fácil de aturar, mas quando está com a irmã dá-lhe a veneta e aparecem as fitas para ser o centro das atenções.

O Rui agora passa a vida a experimentar penteados, parecendo-me que se fixou na risca ao meio com os cabelos  para os lados, como se usava nos anos 40. Um dia destes rapou o bigode e depois comentava para a irmã que já o sentia crescer quando passava a língua pelo lábio superior!  (MMA - 1993.10.03/04)

1994

Está uma tarde fria e cinzenta. Almoçamos em casa do Zé e da Ana. O Zé e o sr. Caldeira cantaram músicas do Alentejo; o pai da Ana tem uma voz muito bonita. O Rui também abrilhantou o almoço, com a sua viola, que já toca bem. Com os seus truques de magia e cartas, bem poderia começar a pensar em animar as festas de bairro!

A Susana foi dar uma volta; ficou de vir às seis para irmos ao Jumbo comprar a prenda para o César, o filho da Ana e do Zé (de Pias), que hoje fez 3 anos.  Quanto ao Rui, comigo, é mais caseiro e agora anda para ali aos saltos com o Bruno, desalojados que foram do computador, e em animada conversa com a Catia e a Aida, as filhas mais velhas da Ana e dum outro Zé (da Amareleja), com quem vivem. (MMA - 1994.02.06)

Pois é, a Susana chegou ontem aqui a casa positivamente nas nuvens. Estou apaixonada, disse‑me ela. Com aquele ar de êxtase ainda só a tinha visto  quando me sabe interessado por alguém e me pergunta emocionada como vão as coisas ... comigo. (MMA - 1994.02.07)

               



[1]  - Nasceu em Évora a 7 Agosto 1976. Quando rebentaram as águas à Celeste, fomos para o hospital, tal como a Joana Espanca lhe dissera que fizéssemos. Apanhámos o táxi, de malinha na mão. Lá chegados, disseram-nos que ainda era cedo demais, que só voltássemos quando o intervalo das dores fosse de 5 minutos. A pé, lá regressámos à Rua Serpa Pinto. Quando as dores apertavam queria a Celeste ir para o hospital, enquanto eu, de relógio na mão, contando o tempo lhe dizia que o intervalo ainda estava longe dos cinco minutos. Mas, como ela protestasse, lá apanhávamos de novo um táxi, de malinha na mão, regressando a pé, com o mesmo recado. E a cena repetiu-se algumas vezes até que, sendo ao entardecer, os médicos acederam no seu internamento. Contudo a criancinha  só nasceu no dia seguinte, pouco antes da visita. Quando a vi, acabadinha de nascer, toda vermelha, os olhos bogalhudos e a cabeça com a forma duma bola de basebol, fiquei desgostoso, comentando: mas que filha tão feia! Contudo passado algum tempo já estava bonitinha e assim se tem mantido! Falava muito, horas seguidas, sendo também muito teimosa. Como os livros na sala estivessem ao alcance da mão, dizia‑lhe que lhes não mexesse, Como persistisse, batia‑lhe na mão prevaricadora, mas ela, voltada para mim, com a outra, atrás das costas, ia mexendo nos livros. Tencionávamos chamar-lhe Natasha; contudo, no dia em que fui increvê-la para a consulta de pediatria, disseram-me que tinha de fazê-lo com um nome e, como não tivesse a certeza que no registo civil aceitassem o que pretendíamos, dei-lhe o de Susana, que havia sido sugerido pelo meu irmão Zé Luís e me parecia pouco comum. Qual não foi o meu desgosto quando no dia da consulta eram chamadas mais que muitas ... Susana! Estávamos todos enlevados com as gracinhas da recém‑nascida, até que vi um filme feito pelo Zé João tendo como protagonista o João Filipe, filho da Isabel, da mesma idade, e que fazia exactamente as mesmas ... gracinhas. Pelo que caí em mim, ao aperceber-me que em todo o mundo milhares de criancinhas faziam exactamente as mesmas graças perante familiares enlevados que as consideravam únicas!

[2] - O Rui nasceu completamente careca, ao contrário da Susana, sendo menos sociável e risonho. Só aceitava o colo das avós e dos pais, chorando quando algum estranho lhe queria pegar. Habituado a andar com um capote alentejano, por causa do inverno, queria no pino do verão seguinte sair à rua ... de capote, chorando por isso.

in RETRATOS e CARTAS (quase diário)

Cenas do jardim em évoraburgomedieval




1. Era um jardim
geometricamente desconfortável
artificial
No coreto
a banda tocava.
Além
caridosamente
alguém partilhava com os "jardineantes"
as goelas do transístor escancaradas
No banco
ao meu lado
uma matrona e uma gaiata conversam
banalmente,
"Puxa a mala um bocadinho mais para baixo.
Isso! Assim!
Para que te não vejam as pernas"
E eu sorrio-me
por entre a sisudez duma "Introdução à Vida Política"
Pobres e ridículas gaiatas!
Pobres e ridículas matronas!

2. Era um miúdo esfarrapado
sujo
de rosto envelhecido,
Aproxima-se do guarda, mas o dinheiro não chega.
Mas o velho, que já terá sido criança, deixa-lo entrar.

O miúdo envelhecido corre,
Para,
Hesita!
Os olhos sorriem no rosto sujo,
Balancé? Carrocel? Escorrega? Ou avião?
Não poder ele desdobrar-se!
Corre, sobe, escorrega
o mundo é dele

Agarra-lo.
Sobe, desliza, corre, sobe, desliza
sobe; desliza, corre, sobe, desliza
contorce-se

"MÃE, OLHA ESTE MATULÃO SUJO! VAI-TE EMBORA!"

As avózinhas contorcem os lábios
num rictus de desprezo
os meninos apedrejam com a língua e crucificam com os lábios.
Ele hesita.
Baloiça, baloiça, baloiça!
Roda, roda, roda,
sobe, desliza, corre, sobe, tropeça, sobe, desliza, corre!
contorce-se, baloiça, roda
Olhos brilhantes cheios de felicidade!
Um velho num corpo de criança
pequena para a roupa suja
esfarrapada!

As avózinhas contorcem os lábios num rictus de desprezo
Os meninos, esses apedrejam com a língua
e crucificam com os lábios
Velhas envelhecidas
Garotos moribundos

e uma criança num pequeno corpo de velho!


Évora 1969.Fevereiro.24

Gravura . postal do MDM - 
Fascismo, Miséria e Terror» (1974), por Isolino Vaz
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NOTA - A entrada no parque infantil do Jardim de Diana, em Évora, era condicionada pelo pagamento prévio dum bilhete da Câmara ao velhote bilheteiro e vigilante.
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.https://www.facebook.com/notes/victor-barroso-nogueira/cenas-do-quotidiano-2/10152326423894436

No cimo das escadas, o menino ...




No cimo das escadas, o menino ...

Lá em baixo, os meninos,
E as rodas
E as escondidas
E a tia Anica
E o Mestre André
E o pião
Que gira
Gira
Gira.

No cimo das escadas, o menino ...

... e a mão!

Lá em baixo, os meninos,
E as rodas
E as escondidas
E a tia Anica
E o mestre André
E o pião
Que gira
Gira
Gira
Com o menino !

No cimo das escadas, o menino ...

Lá em baixo, os meninos,
E as rodas
E as escondidas
E a tia Anica
E o Mestre André
E o pião
Que gira
Gira
Gira

No cimo das escadas, o menino!

Victor Nogueira
1969.Janeiro.18 - Évora


O primeiro poema que escrevi, baseado no meu primeiro dia de aulas no Colégio D. Duarte, em Luanda, sendo minha professora a D. Judite Mata, jovem e simpática. O meu interesse pela poesia surgiu muito mais tarde, primeiro com o Eugénio de Andrade, por indicação da Noémia Mendes, e também nas tertúlias da Margarida Morgado, em Évora.

O Orlando, sobrinho da Dona Vitória em Évora, na Rua do Raimundo

QUINTA-FEIRA, MARÇO 29, 2007



O Orlando, sobrinho da Dona Vitória em Évora, na Rua do Raimundo
* Victor Nogueira

Isto aqui em casa são umas correrias escada acima, escada abaixo, que nem calculas. Sim, que o amigo Orlando anda alvoroçado com a escola e um mundo novo para ele, de que me não fala mas pressinto. Os cuidados com os livros, todos bem arranjadinhos, o ar tímido quando com ele falo! (...) O sr. Prates já foi largando a bisca para um explicador ... À borla, pois então. Só que o coração já me caíra aos pés quando na véspera a D.Vitória me comunicara que a minha pensão aumentara de 200 $ 00 mensais, isto é, para 1600 $ 00. (MCG - 1972.10.04)

Por toda a casa soam estalidos, consequência do irrequietismo do Orlando. Não descortino bem qual o gozo daquilo, mas enfim ...

Volto a página e pergunto‑me que mais vou eu escrever? Levanto‑me, dou uma volta pelo quarto, remexo numas quantas coisas e torno a sentar‑me para escrever isto.

Entretanto a D.Vitória regressa, para levantar a bandeja do lanche e despejar o cinzeiro (o João, o Carlos, o Tobias e a Lídia empestaram‑me o quarto com cigarros). Há cinco anos que lido diariamente com a D.Vitória e nunca as nossas relações foram muito cordiais nem estreitas!

Acendo o candeeiro, não porque seja absolutamente necessário, mas num gesto algo inconsciente ou automatizado.

Olho para a minha direita e vejo um enorme calhamaço: "Os Macondes de Moçambique", vol III - "Vida Social e Ritual". Terei de consultar este e os dois primeiros para redigir a monografia de Antropologia Cultural. (MCG - 1973.01.26)

O Orlando faz hoje anos. Deve haver festinha. Reprovou na Escola e anda ouvindo discursos por causa disso há tanto tempo que já estou enjoado (....) A Vicência faz exame depois de amanhã. (...) [O Orlando] deu‑me alguns dos desenhos dele (que eu podia ficar com todos os que quisesse). Vai sendo altura de mudar a decoração do meu quarto. O rapazinho agora pediu‑me trabalho - não tem nada que fazer - de modo que desde sábado que me anda em arrumações aqui no quarto - ordenou‑me revistas, separou‑me jornais e amanhã vou comprar umas folhas de cartão para fazer cadernos para arquivar a papelada e revistas. (MCG - 1973.06.17 B)

Quanto à D. Vitória tem‑me recebido com um sorriso bom. ([1]) O sorriso que não tenho à minha volta nem dentro de mim. O Orlando tem feito grandes estádios no meu quarto. Por causa da máquina de escrever. (MCG - 1973.11.27)
Vindo da rua, deparei com a D.Vitória carregada com camas, que ajudei a transportar escadas acima, enquanto ouvia um desabafo: "Muito pena a gente para ganhar uns tostões!" Já ontem o Orlando me retorquira "ora, isto vai mal!"quando lhe fiz a pergunta habitual: "Então, sô Orlando, como vai isso?!" Referir‑se‑ia à sua "exclusão" do 2º andar? (MCG - 1973.12.04)

[1] - A nossa relação mútua sempre foi algo distante, talvez por não sermos muito expansivos. Mas a verdade é que a D. Vitória me aturou algumas madurezas e creio que me estimava. Sempre foram seis anos de convivência. Dizia-me ela que um alentejano só dá a sua amizade a alguém apenas depois deste provar merecê-la. E foi no Alentejo que me habituei a usar a palavra amigo, como em Setúbal se utiliza a de vizinho. Visitei-a algumas vezes quando ia a Évora depois de sair de lá, uma delas com o Rui e a Susana, estava ela na loja do irmão, na Rua de Aviz, e telefonei-lhe algumas outras, ficando contente por não esquecê-la. Morreu em 1998 e desse facto soube acidentalmente pela Noémia muito depois, quando me vai dando notícias dos nossos conhecimentos comuns em Évora. A D. Vitória era solteirona, tal como os irmãos que com ela viviam: o sr. Prates e, posteriormente, a D. Joana. Na pensão ficavam sucessivamente os sobrinhos que do Cano vinham para Évora estudar, como o Manuel, a Ermelinda e o Orlando.

Victor Nogueira, in RETRATOS

Histórias com o Caló




Histórias com o Caló
* Victor Nogueira

Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.

Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui e para as quais me vem chamar a atenção com frequência. (MMA - 1993.08.15)

Bem daqui a pouco vou interromper para ver um filme policial na televisão. Entretanto apareceu o Caló, o miúdo de quem falei em tempos, para visitar o grande amigo dele, que sou eu. Abancou ali numa cadeira a ver fotografias, comentando-as em voz alta, com perguntas e grandes exclamações. Agora fez uma interrogação enorme por causa dum bicho que nunca tinha visto: um perú. Entretanto viu umas fotografias de esculturas feitas pelo meu irmão e diz que não acredita que ele as tenha feito, respondendo que não, que não me estava a chamar mentiroso, mas lá que não acreditava, não acreditava, acrescentando Mas o meu pai sabe desenhar. Vai daí, disse-lhe: Eu não sei desenhar nem cuidar de ovelhas como o teu pai mas escrevo melhor que ele. Não acreditou. Que escrevesse Fernando ali num papel. Disse-lhe, apontando para o meu volumoso livro de poemas: Então não vês que escrevi aquele livro?. Respondeu-me: Ah! mas isso não é escrever, isso foi feito no computador. Claro que para o Caló não saberei escrever, tanto mais quanto ele não será capaz de ler os meus hieroglifos. Depois perguntou-me onde é que eu trabalhava e respondi-lhe que na Câmara. Exclamou ele: Ah! Apanhas o lixo! No prédio dele mora um cantoneiro de limpeza do Município, o Ramiro. Respondi-lhe que não, que trabalhava num escritório, o que nada lhe terá dito pois não deve conhecer a palavra e muito menos o que faz um sociólogo. Enfim! (MMA - 1993.09.10/11)

Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ... (MMA - 1993.09.20)

Passei o fim de semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu à tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo. (MMA - 1993.09.25/26)

Um dia destes dei pela falta dum velho binóculo de teatro, que era da minha avó materna e tinha ali na sala. O Caló negou que o tivesse levado, mas sugeri-lhe que procurasse bem lá em casa pois poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. E hoje bateram à porta e lá estava a figura franzina e envelhecida do miúdo, com um enorme sorriso de alegria quando me viu. Mas perguntei-lhe pelo binóculo e ele respondeu-me que o não encontrara, apesar de tê-lo procurado pela casa toda (dele). Observei: se não levaste o binóculo, porque o foste procurar? ao que me respondeu com um ar muito sério e convicto que o não havia tirado e que o tinha procurado em casa porque eu dissera que ele poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. Disse-lhe então que não viesse a minha casa enquanto o binóculo não aparecesse. Olha, o miúdo ficou com um ar tão triste, os ombros alquebrados numa enorme fragilidade, que eu tive pena dele. E depois pediu--me um pacote de leite para o irmão mais novo mas tive de dizer-lhe que não podia dar-lhe um pacote de leite e comida todos os dias. E assim se meteu no elevador. Não posso garantir que foi ele que levou o binóculo, mas de qualquer modo terei perdido a única pessoa que me vinha visitar, para além da vizinha Maria, que falava comigo e me fazia companhia ao jantar, me regava as plantas e ajudava a pôr a mesa e a lavar a louça. (MMA - 1993.09.26)

Tive duas visitas: o Caló e um irmão, que vieram pedir um pacote de leite e a quem além disso dei dois chocolates. (MMA - 1994.01.01)

Victor Nogueira in RETRATOS

Nunca mais soube do Caló: desapareceu, simplesmente.

Sobre o Caló (falar cigano)
Sobre o povo cigano no Brasil ver:



crianças no bairro azul da belavista, em setúbal


foto victor nogueira -- crianças no bairro azul da belavista, em setúbal

Nas minhas deambulações em Portugal não poucas pessoas, especialmente crianças, me pedem para fotografá-las. Na maioria dos casos dava-lhes posteriormente as cópias indo a casa delas ou enviando pelo correio.embora neste caso nunca me acusassem a  recepção. Mas havia adultos que pretendiam apenas ser fotografados, como se daquele modo ficasse o registo para a eternidade. 

Esta é uma das fotos de que gosto imenso. O olhar fixo na câmara, de expectativa, o alheamento total de tudo o resto, o gesto como que protector da miúda relativamente à criança central...