Allfabetização
Escrevivendo e Photoandando
No verão de 1996 resolvi não ir de férias. Não tinha companhia nem dinheiro e não me apetecia ir para o Mindelo. "Fechado" em Setúbal, resolvi escrever um livro de viagens a partir dos meus postais ilustrados que reavera, escritos sobretudo para casa em Luanda ou para a mãe do Rui e da Susana. Finda esta tarefa, o tempo ainda disponível levou me a ler as cartas que reavera [à família] ou estavam em computador e rascunhos ou "abandonos" de outras para recolher mais material, quer para o livro de viagens, quer para outros, com diferente temática.
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Depois, qual trabalho de Sísifo ou pena de Prometeu, a tarefa foi-se desenvolvendo, pois havia terras onde estivera e que não figuravam na minha produção epistolar. Vai daí, passei a pente fino as minhas fotografias e vários recorte, folhetos e livros de "viagens", para relembrar e assim escrever novas notas. Deste modo o meu "livro" foi crescendo, página sobre página. Pelas minhas fotografias descobri terras onde estivera e juraria a pés juntos que não, mas doutras apenas o nome figura na minha memória; o nome e nada mais. Disso dou por vezes conta nas linhas seguintes.
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Mas não tendo sido os deuses do Olimpo a impor me este trabalho, é chegada a hora de lhe por termo. Doutras viagens darão conta edições refundidas ou novos livros, se para tal houver tempo e paciência.
VNquarta-feira, 28 de março de 2018
Holidays in Portugal
terça-feira, 27 de março de 2018
As gracinhas da Susana e do Rui Pedro
Ouço o Pedro Barroso, que em 2ª audição me agrada mais. Já arrumei as embambas, li a carta da Susana e vi o desenho do Rui, pus a roupa suja na barrela, faltando-me lavar a louça do jantar. Sempre comprei um frango assado, que ficará para amanhã, pois descobri no frigorífico um resto de perna de perú e batatas assadas, a que juntei um ovo cozido, sumo de limão e sopa de legumes que a minha querida sogra me veio cá deixar antes de ir-me embora no fim-de-semana. (MMA 1986.07.23)
Passei a manhã lendo ou gravando música - desta vez brasileira - para além de ter ajudado a minha tia lavando a louça e na parte das lides domésticas resultantes da minha estadia. À tarde fui com a Susana ver o comércio de Paço de Arcos e passear pelo jardim. (MMA 1986.08.15)
Aproveitando a lassidão deste dia, fui dormir depois de almoço, para pôr os sonos em dia e para ganhar alento para logo ver na TV o filme da meia noite. 0 Rui foi brincar para casa do Chico e a Susana foi com a Cinda e demais amigas à festa de Natal da Junta de Freguesia de S. Sebastião. E eu, como não me apetece sair, por causa do frio mas também por causa desta chuva miudinha que todo o dia tem caído, pus-me a ouvir música no leitor de cassetes que a Susana "ganhou" na Festa de Natal da Câmara; primeiro o UHF e agora o Paulo de Carvalho e a seguir a Gal Costa. É daqueles leitores que tem uns auscultadores e que a malta jovem traz pendurados nas orelhas, na rua ou nalguns empregos. O Rui também ficou encantado com a prenda que Ihe coube, um robot que deita luz por todos os lados e muda de direcção quando choca com os obstáculos.
Ontem fui ás compras, arejar o dinheiro. Comprei mais um relógio de parede, muito original, para substituir um outro de estilo mais "barroco", o da sala, que só tem trabalhado quando lhe apetece (talvez por ser "fino" demais) e que tocava doze músicas diferentes, uma a cada hora, dum modo que entoava por toda a casa, irritando a Susana. Para além disso comprei dois CD dos Beatles, o chamado Duplo Álbum Branco, por alguns críticos considerado dos melhores, conjuntamente com o Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band, (MMA 1993.08.07)
Hoje estou novamente com este enorme casarão por minha conta. A minha mãe esteve a passar uns dias em Setúbal., mas já regressou a Paço de Arcos. Apesar dos nossos "desentendimentos" [entre mim e a minha mãe] a casa ficou vazia, como sucede quando o Rui ([2]) e a Susana se vão embora, especialmente após estadias mais prolongadas. (MMA - 1993.08.10)
De modo que me sentei aqui no quarto do meu tio José João para ocupar o tempo a escrever enquanto ele assiste a um desafio de futebol transmitido pela TV; a minha tia Maria Luísa lá ao fundo, na sala, assiste a outro programa com a Alexandrina, a viúva do meu avô Zé Luís. Quanto ao Rui e à Susana foram para a cozinha especar-se frente a um terceiro televisor, para ver um filme com o Robert De Niro e o Robert Duvall. Televisores não faltam e é difícil haver guerras por causa dos programas (ainda há um quarto aparelho, que está desligado). A contrapartida é que está cada um silencioso para seu lado, o que tem vantagens ou desvantagens conforme as circunstâncias.
(...) Hoje não choveu, apesar do tempo trovoadoresco, pelo que acabámos na Praça da Figueira cheia de gente, na Esplanada dos Irmãos Unidos vizinha da Suiça, mas com pouca variedade de comes e bebes. Por lá apareceu um indivíduo, poeta popular, vendendo meia dúzia de poemas em livro de sua autoria, a quem comprámos um exemplar que dedicou à Susana, depois dele e a minha mãe se terem recitado mútuamente poemas das respectivas autorias. De qualquer modo os dele, em conteúdo, não chegam nem de perto nem de longe aos calcanhares do António Aleixo, algarvio, ou do Calafate, setubalense, pois quanto ao estilo são diferentes. (MMA - 1993.08.19)
O Mindelo é para mim um quartel-general donde parto para as minhas explorações paisagísticas e turísticas. Para o interior e ao longo dos rios dão-se belos passeios, com protestos da Susana, que não aprecia ver pedras e monos. (MMA - 1993.08.21)
Como não podia deixar de ser eu e a Susana perdemo-nos na confusão do Jumbo, só a encontrando à minha espera no carro, pois esquecera-se duma nossa velha combinação sobre o ponto de encontro após perdimentos nestes malfadados hipermercados. E lembro-me duma das vezes em que nos perdemos no Jumbo de Setúbal. Farto de andar às voltas, dirigi-me à recepção dizendo que perdera a minha filha e se lhe podiam marcar um ponto de encontro. Ia tudo bem até que a empregada me perguntou a idade da menina. Devidamente informada das suas 16 risonhas primaveras, a empregada foi-me logo dizendo que com tal idade nada feito, pois a desaparecida já era muito crescida para andar perdida, pelo que não podiam satisfazer a minha pretensão. De modo que lá andámos os dois num hiper cheio como ovo, aos encontrões, à procura um do outro, cada um para o seu lado desconhecido, deixando recados a toda a gente conhecida com quem me ia cruzando. Uma aventura sem qualquer graça!
(...) O Mindelo é para mim um quartel-general donde parto para as minhas explorações paisagísticas e turísticas. Para o interior e ao longo dos rios dão-se belos passeios, com protestos da Susana, que não aprecia ver pedras e monos.
E chega por hoje de letras alinhadas em carreirinha umas atrás das outras. (MMA 1993.08.21)
Acordei mal disposto e cansado, o que de resto me sucede desde domingo, tal como antes de férias. Para além disso hoje acordei de madrugada cheio de frio, pelo que resolvi fechar a janela da cozinha. Voltei a acordar mais tarde, continuando com frio até descobrir que a janela do quarto da Susana também estava aberta. De qualquer modo não se perdeu tudo e assisti ao nascer do sol antes de voltar a deitar-me, acordando tarde. Antigamente e nas férias levantava-me mal acordava. Mas agora não tenho prazer em levantar-me em tempo de trabalho como este que (não) tenho presentemente. (MMA 1993.09.08/09)
Está uma tarde fria e cinzenta. Almoçamos em casa do Zé e da Ana. O Zé e o sr. Caldeira cantaram músicas do Alentejo; o pai da Ana tem uma voz muito bonita. O Rui também abrilhantou o almoço, com a sua viola, que já toca bem. Com os seus truques de magia e cartas, bem poderia começar a pensar em animar as festas de bairro!
Cenas do jardim em évoraburgomedieval
Gravura . postal do MDM - Fascismo, Miséria e Terror» (1974), por Isolino Vaz
No cimo das escadas, o menino ...
Lá em baixo, os meninos,
E as rodas
E as escondidas
E a tia Anica
E o Mestre André
E o pião
Que gira
Gira
Gira.
No cimo das escadas, o menino ...
... e a mão!
Lá em baixo, os meninos,
E as rodas
E as escondidas
E a tia Anica
E o mestre André
E o pião
Que gira
Gira
Gira
Com o menino !
No cimo das escadas, o menino ...
Lá em baixo, os meninos,
E as rodas
E as escondidas
E a tia Anica
E o Mestre André
E o pião
Que gira
Gira
Gira
No cimo das escadas, o menino!
Victor Nogueira
1969.Janeiro.18 - Évora
O primeiro poema que escrevi, baseado no meu primeiro dia de aulas no Colégio D. Duarte, em Luanda, sendo minha professora a D. Judite Mata, jovem e simpática. O meu interesse pela poesia surgiu muito mais tarde, primeiro com o Eugénio de Andrade, por indicação da Noémia Mendes, e também nas tertúlias da Margarida Morgado, em Évora.
O Orlando, sobrinho da Dona Vitória em Évora, na Rua do Raimundo
QUINTA-FEIRA, MARÇO 29, 2007
Por toda a casa soam estalidos, consequência do irrequietismo do Orlando. Não descortino bem qual o gozo daquilo, mas enfim ...
Volto a página e pergunto‑me que mais vou eu escrever? Levanto‑me, dou uma volta pelo quarto, remexo numas quantas coisas e torno a sentar‑me para escrever isto.
Entretanto a D.Vitória regressa, para levantar a bandeja do lanche e despejar o cinzeiro (o João, o Carlos, o Tobias e a Lídia empestaram‑me o quarto com cigarros). Há cinco anos que lido diariamente com a D.Vitória e nunca as nossas relações foram muito cordiais nem estreitas!
Acendo o candeeiro, não porque seja absolutamente necessário, mas num gesto algo inconsciente ou automatizado.
Olho para a minha direita e vejo um enorme calhamaço: "Os Macondes de Moçambique", vol III - "Vida Social e Ritual". Terei de consultar este e os dois primeiros para redigir a monografia de Antropologia Cultural. (MCG - 1973.01.26)
O Orlando faz hoje anos. Deve haver festinha. Reprovou na Escola e anda ouvindo discursos por causa disso há tanto tempo que já estou enjoado (....) A Vicência faz exame depois de amanhã. (...) [O Orlando] deu‑me alguns dos desenhos dele (que eu podia ficar com todos os que quisesse). Vai sendo altura de mudar a decoração do meu quarto. O rapazinho agora pediu‑me trabalho - não tem nada que fazer - de modo que desde sábado que me anda em arrumações aqui no quarto - ordenou‑me revistas, separou‑me jornais e amanhã vou comprar umas folhas de cartão para fazer cadernos para arquivar a papelada e revistas. (MCG - 1973.06.17 B)
Quanto à D. Vitória tem‑me recebido com um sorriso bom. ([1]) O sorriso que não tenho à minha volta nem dentro de mim. O Orlando tem feito grandes estádios no meu quarto. Por causa da máquina de escrever. (MCG - 1973.11.27)
[1] - A nossa relação mútua sempre foi algo distante, talvez por não sermos muito expansivos. Mas a verdade é que a D. Vitória me aturou algumas madurezas e creio que me estimava. Sempre foram seis anos de convivência. Dizia-me ela que um alentejano só dá a sua amizade a alguém apenas depois deste provar merecê-la. E foi no Alentejo que me habituei a usar a palavra amigo, como em Setúbal se utiliza a de vizinho. Visitei-a algumas vezes quando ia a Évora depois de sair de lá, uma delas com o Rui e a Susana, estava ela na loja do irmão, na Rua de Aviz, e telefonei-lhe algumas outras, ficando contente por não esquecê-la. Morreu em 1998 e desse facto soube acidentalmente pela Noémia muito depois, quando me vai dando notícias dos nossos conhecimentos comuns em Évora. A D. Vitória era solteirona, tal como os irmãos que com ela viviam: o sr. Prates e, posteriormente, a D. Joana. Na pensão ficavam sucessivamente os sobrinhos que do Cano vinham para Évora estudar, como o Manuel, a Ermelinda e o Orlando.
Victor Nogueira, in RETRATOS
Histórias com o Caló
Hoje veio visitar-me o Caló, um miúdo que mora aqui no Largo e anda aí pelo prédio a pedir esmola e que asila aqui muitas vezes para jantar e ver filmes de desenhos animados ou banda desenhada. É um miúdo com dez anos, delicado e simpático (mas também com a escola da vida), muito franzino e parecendo por isso mais novo, embora tenha um rosto envelhecido, cujo pai, segundo ele, é pastor. Por vezes, ao fim de semana, aparece arranjado, mas isto não é regra nos restantes dias, talvez porque a madrasta não lhe ligue muito, embora esta não ande mal cuidada, quando por vezes aparece a procurá-lo; no princípio era todo machista, mas agora oferece-se para pôr a mesa, lavar a loiça e regar as plantas. As pessoas escorraçam-no ou não lhe devem dar muita atenção, por ser pobre e pedinte, pelo que ele diz a toda a gente que eu sou o maior amigo dele.
Hoje anda por aí muito feliz e risonho, admirado com as magias do Rui e para as quais me vem chamar a atenção com frequência. (MMA - 1993.08.15)
Bem daqui a pouco vou interromper para ver um filme policial na televisão. Entretanto apareceu o Caló, o miúdo de quem falei em tempos, para visitar o grande amigo dele, que sou eu. Abancou ali numa cadeira a ver fotografias, comentando-as em voz alta, com perguntas e grandes exclamações. Agora fez uma interrogação enorme por causa dum bicho que nunca tinha visto: um perú. Entretanto viu umas fotografias de esculturas feitas pelo meu irmão e diz que não acredita que ele as tenha feito, respondendo que não, que não me estava a chamar mentiroso, mas lá que não acreditava, não acreditava, acrescentando Mas o meu pai sabe desenhar. Vai daí, disse-lhe: Eu não sei desenhar nem cuidar de ovelhas como o teu pai mas escrevo melhor que ele. Não acreditou. Que escrevesse Fernando ali num papel. Disse-lhe, apontando para o meu volumoso livro de poemas: Então não vês que escrevi aquele livro?. Respondeu-me: Ah! mas isso não é escrever, isso foi feito no computador. Claro que para o Caló não saberei escrever, tanto mais quanto ele não será capaz de ler os meus hieroglifos. Depois perguntou-me onde é que eu trabalhava e respondi-lhe que na Câmara. Exclamou ele: Ah! Apanhas o lixo! No prédio dele mora um cantoneiro de limpeza do Município, o Ramiro. Respondi-lhe que não, que trabalhava num escritório, o que nada lhe terá dito pois não deve conhecer a palavra e muito menos o que faz um sociólogo. Enfim! (MMA - 1993.09.10/11)
Hoje tive visitas ao jantar: o Caló. Reparei que também utiliza muito o Victor quando fala comigo, tal como sucede com a filha da Maria do Mar. Aquele devia ir para diplomata: oferece-se para ajudar-me, pergunta-me pelo Rui, pela Susana e pela minha mãe, elogia a minha comida ... (MMA - 1993.09.20)
Passei o fim de semana metido em casa. Apenas o Caló por cá apareceu à tarde, para ver e interrrogar-me sobre as fotografias e ver no vídeo filmes de desenhos animados do Walt Disney. Quando me preparava para regar as plantas ofereceu-se para fazê-lo, mas não jantou cá, pois entretanto a madrasta veio buscá-lo. (MMA - 1993.09.25/26)
Um dia destes dei pela falta dum velho binóculo de teatro, que era da minha avó materna e tinha ali na sala. O Caló negou que o tivesse levado, mas sugeri-lhe que procurasse bem lá em casa pois poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. E hoje bateram à porta e lá estava a figura franzina e envelhecida do miúdo, com um enorme sorriso de alegria quando me viu. Mas perguntei-lhe pelo binóculo e ele respondeu-me que o não encontrara, apesar de tê-lo procurado pela casa toda (dele). Observei: se não levaste o binóculo, porque o foste procurar? ao que me respondeu com um ar muito sério e convicto que o não havia tirado e que o tinha procurado em casa porque eu dissera que ele poderia ter caído para o saco sem ele dar por isso. Disse-lhe então que não viesse a minha casa enquanto o binóculo não aparecesse. Olha, o miúdo ficou com um ar tão triste, os ombros alquebrados numa enorme fragilidade, que eu tive pena dele. E depois pediu--me um pacote de leite para o irmão mais novo mas tive de dizer-lhe que não podia dar-lhe um pacote de leite e comida todos os dias. E assim se meteu no elevador. Não posso garantir que foi ele que levou o binóculo, mas de qualquer modo terei perdido a única pessoa que me vinha visitar, para além da vizinha Maria, que falava comigo e me fazia companhia ao jantar, me regava as plantas e ajudava a pôr a mesa e a lavar a louça. (MMA - 1993.09.26)
Tive duas visitas: o Caló e um irmão, que vieram pedir um pacote de leite e a quem além disso dei dois chocolates. (MMA - 1994.01.01)