Assim está o tempo: cinzentonho, tristonho, bisonho, com mau sonho. E eu como se fora dele espelho, lasso e sem laços, com uma incómoda mosca volteando em redor de mim.
como roupa
no chão....... em rodilha
…............... Rugas
(imperceptíveis)
….................nos olhos
um leve sorriso:
olá amiga!
um erguer pela gola
um desalento
um sorriso brando
.
na serenidadde do entardecer
uma enorme interrogação
a luz do candeeiro
o pó dos caminhos
nos lábios
um leve sorriso
(imperceptíveis)
…......................ao canto
dos olhos
rugas
..........................na alma
um enorme cansaço
.1972.Março.04 – Évora
O caos vai-se ordenando, com a ajuda dos vizinhos: a D. Amélia e o Paulo, de acordo com as suas disponibilidades de tempo.. Não tão rapidamente como a minha controlada impaciência o reclama. E o cansaço físico de km feitos em pequenos passos, aqui e ali, e mil gestos, vai-se acumulando sem que eu consiga parar. A impaciência contida aumenta e todo o corpo protesta, as juntas rangendo, os músculos tensos e contraídos a precisarem de massagem e bons tratos!
Como registo na minha compilação epistolar denominada "Retratos":
Auto
retrato VI
Qual é neste momento o meu anseio máximo? Descansar! Como
sempre comecei a entusiasmar‑me com o trabalho, desta feita o de Sociologia do
Desenvolvimento, que já vai em ... - imaginem - dezoito páginas. Como não sei parar para descansar, nem tenho
possibilidades de fazê-lo, o resultado está à vista. Gostava de estar assim
sentado, sentindo a brisa acariciando‑me o rosto e o afago duns dedos na minha
pele. Mas não pode ser, que tu estás longe. E ... como reagiriam outras pessoas
se eu fosse capaz de sentar‑me ao fundo das escadas, seduzido pelo gosto
bom dum sorriso, e abraçasse, num gesto sem
malícia, camarada, quase fraternal, a pessoa que lá estivesse? Ai Jesus, credo!
Mas ... sê‑lo‑ia? (1973.05.11)
Não é que neste momento a tarefa de desencaixotar, arrumar, montar e deslocar móveis me faça dar pulos de alegria.me ou me entusiasme por aí além, Mas, para lá da exasperante morosidade,tem de ser feito, apesar do cansaço, das dores e da dependência dos outros.
"A sesta", por Almada Negreiros
"Depois da ceifa", por Van Gogh
Mas, pensando numa inexistente Miquelina ou Penélope que por mim não tece a teia que ateia e logo incendeia, que resta neste mundo de virtualidades assépticas, inodoras, etéreas?!
foto victor nogueira - a teia, no mindelo
(..) Aqui estou no meu quarto,
buscando para ti as palavras que não encontro, corpo sem imaginação mas
irritado e desassossegado pela constipação que me percorre as veias e me enche
dum nervoso miudinho. Busco para ti as palavras dos outros, nos livros dos
outros, os ponteiros aproximando se das nove e trinta, hora da vinda do homem
que levará de mim as letras que cadenciadamente vão surgindo no papel branco
que já não é só! Busco as palavras e apenas encontro estas, hoje vazio de ti
pela tua ausência, ontem pleno pela nossa presença. São vinte e uma e vinte,
hora de parar, os livros espalhados pela mesa, o corpo quebrado, a imaginação e
a voz quase secas e frias. Daqui desta terra, para ti noutra terra, te abraço e
beijo com ternura e amizade, na memória do tempo que fomos juntos. Aqui estou!
(MCG - Évora - 1972.09.21)
Hoje já não se está sujeito e condicionado à inexorável hora da tiragem da correspondência no marco do correio nem ao dia e hora da passagem do carteiro. Basta um clique ou um triimm trriiim atendido e já está, quaisquer que sejam o dia e a hora! Quem de mim recolherá as palavras?!
Música, maestro!
Fausto - "O barco vai de saída" da peça de teatro "Fernão, Mentes?", baseado na "Peregrinação", de Fernão Mendes Pinto
O barco vai de saída
Adeus ó cais de Alfama
Se agora vou de partida
Levo-te comigo ó cana verde
Lembra-te de mim ó meu amor
Lembra-te de mim nesta aventura
P’ra lá da loucura
P´ra lá do equador
Ah! mas que ingrata ventura bem me posso queixar
Da pátria a pouca fartura
Cheia de mágoas ai quebra mar
Com tantos perigos ai minha vida
Com tantos medos e sobressaltos
Que eu já vou aos saltos
Que eu vou de fugida
Sem contar essa história escondida
Por servir de criado a essa senhora
Serviu-se ela também tão sedutora
Foi pecado.
Foi pecado!
E foi pecado sim senhor!
Que vida boa era a de Lisboa!
Gingão de roda batida
Corsário sem cruzado
Ao som do baile mandado
Em terras de pimenta e maravilha
Com sonhos de prata e fantasia
Com sonhos da cor do arco-íris
Desvairas se os vires
Desvairas magia
Já tenho a vela enfunada
Marrano sem vergonha
Judeu sem coisa sem fronha
Vou de viagem ai que largada
Só vejo cores ai que alegria
Só vejo piratas e tesouros
São pratas são ouros
São noites são dias
Vou no espantoso trono das águas
Vou no tremendo assopro dos ventos
Vou por cima dos meus pensamentos
Arrepia
Arrepia
E arrepia sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa
O mar das águas ardendo
O delírio dos céus
A fúria do barlavento
Arreia a vela e vai marujo ao leme
Vira o barco e cai marujo ao mar
Vira o barco na curva da morte
Olha a minha sorte
Olha o meu azar
E depois do barco virado
Grandes urros e gritos
Na salvação dos aflitos
Esfola, mata, agarra
Ai quem me ajuda
Reza, implora, escapa
Ai que pagode
Reza tremem heróis e eunucos
São mouros são turcos
São mouros acode
Aquilo é uma tempestade medonha
Aquilo vai p´ra lá do que é eterno
Aquilo era o retrato do inferno
Vai ao fundo
Vai ao fundo
E vai ao fundo sim senhor
Que vida boa era a de Lisboa.
Letra e música de Fausto Bordalo Dias, in Por este rio acima, 1982
Fausto - "Navegar, navegar!" do disco "Por Este Rio Acima" (LP 1982)
Navegar navegar
Mas ó minha cana verde
Mergulhar no teu corpo
Entre quatro paredes
Dar-te um beijo e ficar
Ir ao fundo e voltar
Ó minha cana verde
Navegar navegar
Quem conquista sempre rouba
Quem cobiça nunca dá
Quem oprime tiraniza
Naufraga mil vezes
Bonita eu sei lá
Já vou de grilhões nos pés
Já vou de algemas nas mãos
De colares ao pescoço
Perdido e achado
Vendido em leilão
Eu já fui a mercadoria
Lá na praça do Mocá
Quase às avé-marias
Nos abismos do mar
navegar navegar...
Já é tempo de partir
Adeus morenas de Goa
Já é tempo de voltar
Tenho saudades tuas
Meu amor
De Lisboa
Antes que chegue a noite
Que vem do cabo do mundo
Tirar vidas à sorte
Do fraco e do forte
Do cimo e do fundo
Trago um jeito bailarino
Que apesar de tudo baila
No meu olhar peregrino
Nos abismos do mar
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Águas passadas não movem moinhos? Bem ... enquanto passaram podem ou não tê-los movido e assim ajudado ou não a produzir a farinha para o pão que alimenta o corpo sem o qual o espírito não existe. (Victor Nogueira)