quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

O Liceu era um mundo novo e diferente



* Victor Nogueira

Partindo dum dos meus blogs, Ana Mauricio contactou-me para que colaborasse com testemunho e fotografias numa edição por ela coordenada e patrocinada pelo Governo de Angola, na sequência das obras de reabilitação do edifício do antigo Liceu Nacional de Salvador Correia, em Luanda, denominado de Mutu-ya-Kevela. após a independência, em 1975.

Este personagem foi o último soba do Reino Bailundo, Para preservar a independência do seu país liderou a resistência Ovimbundu contra o exército colonial português de ocupação e "pacificação". A morte de Mutu-ya-Kevela (1870 / 1903) põs fim à autonomia do Reino Bailundo, com o território tornando-se possessão de Portugal.

Salvador Correia havia sido o comandante da Armada financiada pelos senhores do engenho no Brasil, com a finalidade de pôr termo à ocupação de Luanda e Benguela pelos Holandeses (1640 / 1648), retirando-lhes o controle do tráfico negreiro de mão-de-obra escrava. Pretendia o Brasil, na altura, que Angola lhe ficasse ligada e subordinada, mas a burguesia esclavagista luandense de então preferiu a subordinação a Portugal, que melhor favorecia os seus interesses.

A obra ("Mutu-ya-Kevela") foi finalmente publicada, profusamente ilustrada e com vários depoimentos. O texto que se segue reproduz a minha prestação original.

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O Liceu era um mundo novo e diferente; a minha mãe lá conseguiu convencer-me que não deveria levar todos os livros de estudo na pasta diariamente, pois passaria a ter vários professores, cadernos diferentes para cada disciplina e em cada dia precisaria apenas dos livros das que fossem lecionadas.

Num território onde não havia Universidade, frequentar o Salvador Correia era fazer parte da elite num estabelecimento de ensino onde figuravam praxes e rituais similares aos de Coimbra, com diferenciação entre “caloiros” e “veteranos” e “tonsuras” àqueles no 1º dia de aulas. Para novatos como eu alguns dos “veteranos”, designadamente os do 3º ciclo, faziam gala de insubordinação, eram “malcriados”, como registo no meu “diário” da altura. Nesse tempo entre estes alguns usavam negras capa e batina e era com alguma jactância que dizíamos alto e bom som “larga o osso, que não é teu, é da malta do Liceu”, quando víamos rapazes doutros estabelecimentos de ensino acompanharem uma engraçada e vistosa rapariga.

Não me recordo se nesse tempo o Salvador Correia já era misto no 3º ciclo ou se isso sucedeu apenas alguns anos mais tarde. No princípio do ano lectivo havia falta de professores nalgumas disciplinas e nas “borlas” umas vezes éramos obrigados a permanecer na sala de aula, outras saíamos para o recinto exterior, ficando na conversa ou travando renhidas batalhas com torrões de barro, as camisas vestidas do avesso para que não se notasse a sujidade nas aulas. Por vezes debandávamos à aproximação dum dos contínuos cuja alcunha era o “Ramona”, pois quem ele identificasse seria castigado pelo Conselho Disciplinar.  Quando havia diferendos entre os estudantes estes eram dirimidos à pancada no fim das aulas, na rampa ajardinada defronte do Liceu, com séquito de seguidores e apoiantes duma ou doutra parte.

Havia professores que estimávamos, uns mais, outros nada, e as aulas de Religião e Moral eram muitas vezes uma tourada, mesmo no 3º ciclo. Aqueles que como eu não tinham ouvido para a música ou que por razões de saúde não podiam participar nas aulas de Educação Física ou nas actividades da Mocidade Portuguesa estava a frustração de passar a aula sentado a ver os outros ou conseguir-se dispensa mediante atestado médico.

No final do ano lectivo havia arruaças mais ou menos inofensivas na Avenida Brito Godins, defronte ao Liceu, envolvendo os automóveis que passavam, por vezes obrigando a`intervenção policial. Recordo-me que num dos anos entre os estudantes levados para a Esquadra estava o filho do Governador-Geral, que reclamava em vão essa condição para não ser preso, retorquindo-lhe o polícia “Pois, pois, e eu sou o Presidente da República”. Dessa vez a ordem de soltura acabou por ser mais rápida.

Entre o 4º e o 6º anos estive matriculado em colégios particulares, em Luanda e no Porto. Quando me matriculei de novo no Salvador Correia já algumas coisas eram diferentes embora se mantivessem outras, como o autoritarismo e o rigoroso acantonamento das raparigas em espaços interditos à permanência dos rapazes, nos intervalos e “borlas”, salvo na biblioteca. Um rapaz que permanecesse num espaço reservado às raparigas sujeitava-se a ser punido com suspensão das aulas, o que também sucedia a quem permanecesse sentado nos passeios ou muros do Liceu após terminadas as aulas. Todo esta “segregação” não existia fora do Liceu, pelo menos no estrato social a que pertenciam os meus pais, onde as relações entre rapazes e raparigas eram mais livres e abertas.

Até 1961/62 apenas uma minoria tinha possibilidades financeiras para frequentar o Liceu e dessa escassos podiam prosseguir estudos universitários em Portugal. Para os restantes o Liceu nenhuma preparação profissional dava, ao contrário do que sucedia nas escolas industriais e comerciais. E para quem como eu seguiu para Económicas o Liceu não nos fornecia conhecimentos básicos necessários, como os de contabilidade, de estatística ou de matemática baseada na teoria dos conjuntos ou na álgebra booleana. Nos dois primeiros ciclos o ensino era essencialmente teórico e foram escassíssimas as aulas práticas nos laboratórios de físico-químicas ou de ciências naturais, conhecidos como o “Planeta Proibido”. Por vezes havia as chamadas “visitas de estudo” a unidade industrias como a cimenteira Secil, de fabrico de sabões ou cervejeiras, como à Cuca, que eram pelos estudantes apreciadas devido aos lautos lanches regado de cervejolas, embora eu fosse conhecido pelas minhas bebedeiras de … laranjada. Desse ensino teórico e não poucas vezes desligado da realidade falo num poema meu intitulado “Raízes”

(…) Em Luanda nasci
Em Luanda vivi
Em Luanda estudei

Não Angola mas Portugal
Todos os rios e afluentes
Todas as linhas férreas e apeadeiros
Todas as cidades e vilas
Todos os reis e algumas batalhas
as plantas e animais
que não eram do meu país.

De Angola
pouco sabíamos
até ao 4 de Fevereiro, até ao 15 de Março
Veio a guerra e
....................a mentira
que alimenta
..................a Guerra,
Veio a guerra e a violência
veio a guerra e a liberdade. (…)


A partir de 1952 ou '53 o ano lectivo passou a ser idêntico ao de Portugal, para favorecer a minoria que prosseguisse estudos em Portugal, de que resultou a aberração das aulas serem no tempo mais quente e as Férias Grandes na estação fria do “cacimbo”.

O Estudante nº 84 (1964 Novembro) --Visita à Fábrica da NOCAL, segundo Barradas Teixeira  - Durante a minha estada no Liceu participei em várias visitas de estudo: à Cimenteira SECIL e a outras unidades industriais, como uma de saboaria e à cervejeira CUCA (não me recordo se também a esta à NOCAL). As que mais apreciávamos eram as visitas às cervejeiras, atraídos pelos opíparos lanches e pela cerveja, embora a minha especialidade, segundo os meus colegas, fosse apanhar bebedeiras ... de laranjada.




Luanda liceu salvador correia - 1964~65 - 6º ano turma B (alínea G) 1965.06.08

1ª fila - Abranches, Jacques Pena, Monteiro Torres (micro-torres)
2ª fila - Paula Coelho, Rogério Pampulha, Carlos Aguiar, Fátima Rocha, Isabel de Almeida, Artur Reis, Isaura, Carlos Lourenço, Teresa Melo, Victor Nogueira



Luanda liceu salvador correia - 1965~66 - finalistas e professores 1966-06







Outro dos salvados dos meus cadernos de apontamentos. Este desenho deve ser do Pepito, pela similitude com um dos da última capa do programa da festa dos finalistas 64/65 emhttps://www.facebook.com/photo.php?fbid=10204507196505307&set=a.10203875700958313.1073741832.1394553665&type=3&theater

A folha tem uma anotação minha:"65". Não me lembro a que acontecimento se refere. nem quem é o "Tibério" que "assina"
 













luanda liceu salvador correia - 

FOTO Nº 1 - 1965~66 - finalistas 1966-06 7º ano turma A

1ª fila - Manuela Vieira (1) Maria de Lurdes (2) António Vasconcelos (3) Celestina (4) Ivone Magro (?) (5) Isabel Seiça (6) Alcina (7 Maria João (8) Fátima Coelho (9) Álvaro Cardoso (10) 
Maria José Fonseca (11) 
2ª fila - Aurora (1) Manuela Ezequiel (2) Manuela Vieira (3) Maria da Graça (4) Luísa Seia (5) 





luanda liceu salvador correia - FOTO Nº 3 - 1965~66 - finalistas 1966-06

na foto - Bastos (1) Assunção (2) Jorge Cadete (3) Afonso Leitão (4),Afonso Monteiro Torres (macro-torres), (5) Antº Luís Ramos (6) José Brandão (7) Carlos Barradas (8) Victor Nogueira (9) Brites (10) Abranches de Figeiredo (11) Edmundo (12) João Martins Paulo (13)
 



Almoço de confratenização num dos rearurantes dos arredores - A malta do Liceu Salvador Correia, em Luanda - à esquerda - Monteiro Torres (1), Jorge Cadete (2), sr Sampaio (3),António Gonçalves (Toneca) (4) , Carlos Spínola (5), João Martins (6), Agante (10)
à direita - Victor Nogueira (1) Carlos Aguiar (6) 
Tirando a foto da tonsura (http://www.escreveretriste.com/2015/03/este-e-o-meu-liceu-salvador-correia-o-mutu/ ), todas as restantes são do meu arquivo pessoal





Luanda - Liceu Salvador Correia - 1965.04.12 - visita à CUCA

Debaixo para cima e da esquerda para a direita
1ª fila - Abranches de Figueiredo (1), Carlos Arnaut (2), Jorge Cadete (3), Dias (4), Carlos Lourenço (5)
2ª fila . Dr. Correia de Barros (1), Correia da Silva (2), Agante (3)
3ª fila - Assunção (1), Edmundo (2), Amorim (3), Carlos Aguiar (4), Guerra (5) e Victor Nogueira (6)
4ª fila - João Martins (1), Pedro Brito,(3) sr. Sampaio (contínuo) (4)








Um jornal diário de Luanda cujo nome não registei costumava publicar as fotos dos melhores alunos do Salvador Correia, com uma breve biografia. Não fui colunável, embora tivesse terminado Letras com 13 valores e reprovado a Ciências. Entre a papelada encontrei estes recortes de colegas meus, todos eles naturais de Luanda, excepto o Oliveira Gama. Todos eles, haviam terminado o 5º ano. De cima para baixo e da esquerda para a direita, são eles:

Herculano Araújo da Silva, Marcolino António Pinto de Meireles, Nelson Rangel Pereira Duarte, Rui Filipe Matos de Martins Ramos (tb na foto pequena), Fernando Carneiro de Oliveira Gama, e António Maria Amaro Monteiro


RAÍZES
 * Victor Nogueira

............."Maianga Maianga
.............Bairro antigo e popular
.............Da velha Luanda
.............Com palmeiras ao luar ..."

.............''A Praia do Bispo
.............Cheiinha de graça
.............De manha á noite
.............Sorri a quem passa ..."

............(das Marchas Populares em Luanda)


Longo era o bairro ao longo da marginal
Longo era o bairro do morro de S. Miguel ao morro da Samba
Grande era o bairro e grandes as casas
No meio o bairro operário e a igreja de S. Joaquim,
estreitas as ruas, pequenas as casas.

Nas traseiras, o morro,
no alto o Palácio,
Na frente a larga avenida,
o paredão, as palmeiras e os coqueiros
a praia que já não era do Bispo
mas das pedras, dos limos e dos detritos.

Mais além a ilha que era península
com a sanzala dos pescadores
casas de colmo no areal
da extensa e boa praia
o mar sem fim.

Em Luanda nasci
Em Luanda vivi
Em Luanda estudei

Não Angola mas Portugal
Todos os rios e afluentes
Todas as linhas férreas e apeadeiros
Todas as cidades e vilas
Todos os reis e algumas batalhas
as plantas e animais
que não eram do meu país.

De Angola
pouco sabíamos
até ao 4 de Fevereiro, até ao 15 de Março
Veio a guerra e
....................a mentira
que alimenta
..................a Guerra,
Veio a guerra e a violência
veio a guerra e a liberdade.

Em Évora a 11 de Novembro
Em Luanda a bandeira do meu país
no mastro subiu.
Era o tempo da liberdade e da esperança.

No Porto
Em Lisboa
Em Évora estudei
Em Évora casei
Em Évora vivi e nasceram o Rui e a Susana.
Em Setúbal moro e no Barreiro trabalho

Perdidos os amigos,
perdida a infância
Estrangeiro ......sem raízes ......sou em Portugal.

Victor Nogueira
1989

Em Lisboa, nas Férias Grandes de 1963

* Victor Nogueira


De Monte Real a Lisboa
A automotora chegou perto das 14 horas. Chegámos a Lisboa com cerca de uma hora de atraso, às 18:30. 

Entre a Cela e o Campo Serra tivemos que mudar de carruagem, pois os motores avariaram-se. A nova, que ia a puxar, foi a que se avariou, tendo passado para o meio. Viajámos em 1ª classe.


Muitas das estações [da Linha do Oeste] tinham bonitos jardins. Em Óbidos vimos o Castelo, que é enorme. Salvo erro a vila ainda se encontra dentro das muralhas. Chegámos ao Bombarral, terra dos vinhos, às 16h 16m Lá vi diversos homens com o barrete ribatejano, verde e vermelho. Em Torres Vedras vi uma casa acastelada mas arruinada. Passámos por três pequenos túneis e antes de Jer[…] por um comprido. Passámos depois pela Malveira, Alcainça. Moinho, Pedra Furada, Sabugo, Telhal. Cerca das 18h 30m entrámos no túnel da Campolide e uns cinco minutos depois estávamos em Lisboa. Ficámos no Hotel [Americano, na Rua 1º de Dezembro. (Diário III, 8/9 Setembro 1963, págs 348/351)



Lisboa
Ficámos no Hotel Americano, na Rua 1º de Dezembro. Ao entardecer vim dar uma volta, para ver as montras nos Restauradores e Avenida da Liberdade. Vi os cinemas Éden, que parece luxuoso, e Restauradores (que dá sessões contínuas). Subi a avenida e cheguei ao Parque Mayer. Dei por lá uma volta, tendo feito o gosto ao dedo na barraca de tiro ao alvo. Parte do [filme] "O Parque das Ilusões" passa‑se aqui. Quando cheguei ao S. Jorge [um pouco mais acima] voltei para o hotel. Passei pelo Tivoli e pelo Condes. As montras das lojas são variadas. Utilizei a passagem subterrânea. Depois do jantar fomos comer uns camarões e beber umas cervejas. A casa onde comemos tem as paredes forradas de conchas. (1963.09.09 - Diário III)

De manhã fomos a um mercado no bairro da encosta do Castelo ([1]). Depois visitámos o Castelo de S. Jorge, que é grande. Gostei bastante de vê‑lo. Regressámos ao Hotel, tendo antes ido à Igreja do Carmo, subindo no elevador [de Santa Justa]. As ruínas nada têm de especial, mas há lá um Museu Arqueológico interessante, com objectos da Idade da Pedra, túmulos, múmias e outras coisas do meu agrado. (...) ([2]) (1963.09.10 - Diário III).
Após o almoço fomos ver o Museu Militar, de que também gostei. No Museu de Angola, em Luanda, também temos algo, mas não se pode comparar a este. Gostaria de tê-lo visto com mais vagar. Seguimos pela Avenida Marginal até à Torre de Belém.  (Diário III 1963.09.10 pags 354/355)
Após o almoço seguimos pela Avenida Marginal até à Torre de Belém. Visitámos tudo, desde a torre até às masmorras, que são parecidas com as do Forte de S. Pedro da Barra,  em Luanda: frias e húmidas. Visitámos o Museu dos Coches, que também me agradou. (...) O avô Luís já não teve disposição para vermos o Mosteiro dos Jerónimos. (...)  Vi também a Casa dos Bicos  e os pilares da Ponte sobre o Tejo. ([1]) (...) O tempo tem estado muito quente, mas hoje à tarde esteve chuvoso e à noite também: é uma espécie de "cacimbo" (1963.09.10 - Diário III)


Vista do Estuário do Tejo, ainda sem a Pote, na altura em construção

 
No Jardim Zoológico

Regresso ao Porto
Às 8:30 tomámos o rápido da linha do Norte. Caía uma chuva miúdinha e no céu via-se um lindo arco‑íris. Matabichámos no bar da estação de Santa Apolónia, em, Lisboa, que é original, com motivos do caminho de ferro.

À saída de Lisboa passámos por um aeródromo militar. Monte Real  era sobrevoada por aviões a jacto, da Base Aérea 5. A primeira paragem foi em Santarém. As cadeiras da automotora são mais espaçosas que as do rápido. Às 9:40 chegámos ao Entroncamento, a terra dos fenómenos. Ia tão entretido a ler que, entre Fátima e Pombal, passámos por um túnel sem eu dar por isso.~

Antes de Pombal passámos por um outro que estava em obras. Nesta altura chovia.

Às 11:10 chegámos a Alfarelos e pouco depois à estação de Coimbra B. O rio Mondego estava quase seco - e é um rio importante do continente! Passámos por Pampilhosa da Serra (11:43), Cúria (11:50), Aveiro (12:18), Estarreja, Ovar, Espinho, Granja (13:05), Vila Nova de Gaia (13:25), Campanhã e S. Bento (13:50).

Na nossa carruagem seguiam 4 indianos que deveriam ter saído em Coimbra, mas por ignorância (passaram lá sem saber) não o fizeram e resolveram seguir até ao Porto. Muitas das estações do percurso tinham bonitos jardins. (1963.09.11 - Diário III)

[1] - Seria a Feira da Ladra? Era uma 3ª feira.


Fotos Victor Nogueira e JL Castro Ferreira

em Pointe Noire, 1958 / 1959

* Victor Nogueira


Na casa dos Gaspar

Na praia



Com Jacques Tiolais




Com Nicole Tiolais



Com o casal Gaspar

No verso das fotos anotei: "Numa praia de Pointe Noire, durante um picnic. Pescou-se uma raia que depois se deitou fora. Para beber só havia cerveja, de maneira que eu e o João Gaspar ficámos cheiros de sede. A Nicole era francesa e tinha uma irmã, a Chantal, e um irmão, o Jacques Tiolais. Íamos frequentemente a casa deles. (fotos em 1958.08)


Alice Gaspar

Fotos João Gaspar (?)
~
1958
Chegámos bem a P. Negra. O João [Gaspar] no primeiro dia caiu doente, mas já se encontra bom. O Zé sente a minha falta [?]. Já visitei a cidade quase toda. Ontem fui almoçar a casa dum rapaz e á tarde fui ao cinema ver dois filmes: "Victime du Destin" e "La Belle Otero" (MEB 1958.08.xx)

Já visitei a cidade, que é engraçada, mas diferente de Luanda. A tia já mandou os “Cavaleiros Andantes”? Cá os indígenas são mais “finos” do que os de Luanda. Quase todos têm o seu carro, bicicleta, etc (JJCF 1958)

Ponta Negra (Pointe Noire) [na Africa Equatorial Francesa] é bonita, mas Luanda é mais. Tenho falado francês. Aqui trabalha-se todos os dias, até ao domingo. (MEB - 1958.08.12)

Então, como vai? Sentes falta do teu Victor? Não vos escrevi há mais tempo porque só há avião para Luanda ás 5.ªs feiras. Já visitei grande parte da cidade. Devo embarcar no dia 4 de Setembro. (MNS -1958.08.XX)
1959
Vim a Ponta Negra pela 2ª vez [A 1ª fora nas férias grandes do ano anterior].  Isto é uma cidade muito pacata. A vida é monótona. Espero aqui voltar 3ª vez. A maioria da população é portuguesa. (...) Tenho ido bastantes vezes ao cinema. Aqui num mês fui mais vezes ao cinema do que durante um ano em Luanda. (MLCF - 1959.07.27) 

Os pretos, como não sabem o meu nome, chamam me "Le Portugais", tanto na loja como na rua. (...). Um deles disse que eu tinha cara de francês. Que pouca sorte a minha. (MEB - 1959.07.27)
Eu não sei escrever cartas sem ser em estilo telegráfico, pois a minha vida aqui é sempre igual. (MNS -1959.08.05)
Estive em Pointe Noire por duas vezes: em 1958, de Agosto 07 a Setembro 04, e em 1959, de Junho 24 a Agosto 26.
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1. Viajei de avião a Ponta N egra, na A.E.F. [Afrique Équatoriale Française]. Passei as férias em casa do sr. António Gaspar e sra. D. Alice Gaspar. Primeiras impressões sobre a vida sexual humana. Comecei a escrever um Diário, que durou poucos dias. Em P. Noire chamavam-me “Le Portugais”. (Diário III pags 4 e 5)
2. Viajei de avião a Ponta Negra, onde fui passar as Férias Grandes pela 2ª vez 1ª paixão da minha adolescência: Maria Filomena Amaro (Bébé). Pointe Noire é uma cidade recente, (Diário III pag. 5)

Já li (em Pointe Noire) os seguintes romances célebres: A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe (um livro que foi dos poucos que me fez verter lágrimas). É um romance a mostrar como os escravos negros eram tratados, separados dos filhos e das mulheres, obrigados a casar com outras (ou com outros), não importando se eram cristãos ou não), Fabiola, do Cardeal Wiseman (perseguições aos cristãos no tempo do começo do cristianismo), A Estranha História de Oliver Twist, de Charles Dickens, A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, A Dama do Nevoeiro, O Pirata, Rob Roy, O Cavaleiro da Escócia, todos de Walter Scott, Quo Vadis, de Henry Lienkyewicz e Feira das Vaidades, de William Tackeray.  (NSF - 1959.08.09)

Em Ponta Negra a minha vida era quase sempre a mesma. (...) Nas primeiras semanas eu ia brincar a casa do Zé Vieira e vice-versa. Geralmente praticávamos tiro ao alvo ou caçávamos pássaros com espingardas de chumbos. Um dia, por certas razões, deixei de ir a casa dele e vice-versa (outra vez!) Em casa dele andei várias vezes de bicicleta. 

Lia quase todos os dias umas quatro horas e passava uma ou duas horas a falar francês com o lavadeiro. Ultimamente passava muito tempo na loja a falar francês com os clientes. Algumas vezes ia a casa da Maria Alice, a noiva do Correia Martins. Almocei lá uma vez e jantei no dia em que o C.M. a pediu em casamento. 

À noitinha o sr. Gaspar e o João iam ao Correio e à Livraria e eu aproveitava e ia com eles. Algumas vezes saia também com o João.

Ao princípio eu dormia com o João, mas depois, por causa dumas discussões que tive com ele, mudei para o quarto do lado. 

Ia todos os domingos à missa, excepto no último. E ia sempre à missa das 8 horas. Só umas duas ou três vezes é que a D. Alice foi comigo.

Assisti aos aniversários do Zé Vieira, duma rapariga conhecida do João. Almocei duas vezes em casa do Zé Vieira. Na véspera da minha partida fui convidado por ele, mas recusei. 

Quase todas as terças feiras ia ao Correio comprar selos e despachar as cartas. Escrevi vinte e uma cartas: cinco ao pai (3), três ao José João (2), oito à mãe (6), duas à Gininha (0), uma ao avô Zé Luís (0), uma à Maria Luísa (0), uma ao Espinheira Rio (1). Os números entre parênteses indicam o número de cartas que recebi em resposta. Não recebi resposta a nove cartas.

Fui a dez matinées e onze soirées. Vi 25 filmes. Todas as terças feiras e algumas vezes à quarta havia dois filmes à noite, num dos cinemas. 
Em Ponta Negra comprei quatro livros e uma lembrança, além de várias coisas que necessitava. (MEB - 1959.09.04)
Li o livro "Fabíola", do Cardeal Wiseman. Trata das perseguições aos cristãos no século IV. À tarde fui ver o filme "Cinq Fusils à l'Ouest", [de Roger Corman - 1955] no Vox. De manhã fui ver a parada militar. Além do desfile dos soldados, desfilaram "jeeps", ambulâncias do exército, camiões de transporte de tropas e carros blindados. Os tanques de guerra não desfilaram. Sobrevoaram a cidade quatro aviões militares. Foram condecorados três oficiais. (Diário II - 1959.07.14) ([1])

[1]  - Do filme “Guerre et Paix”, de King Vidor (1956) baseado no romance de Léon Tolstoi, impressionaram-me as cenas de batalha com a infantaria avançando em filas cerradas, os soldados morrendo como tordos, uns sobre os outros, mas sempre avançando, ao som dos tambores e do troar dos canhões.  Quando na tela Napoleão queimava as bandeiras francesas, ao retirar da Rússia, muitos franceses abandonaram a sala.

[2] - Da casa de Ponta Negra pouco me recordo já. Era um edifício grande, com dois pisos e um quintal nas traseiras. No piso térreo os armazéns e a loja e no superior a casa de habitação. Na loja vendia-se de tudo e ainda hoje o cheiro a panos e a bacalhau traz-me à memória a loja e o seu conteúdo. Pouco mais me recordo para além do que ficou acima registado e nas poucas fotografias. Lembro-me que havia um lavadeiro negro, o que me causou alguma perplexidade então, pois tal tarefa em Luanda era feminina. Com este empregado tinha longas conversas em francês.

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Filmes que vi em Pointe Noire.
Far-west - L'Aigle Solitaire, 5 Fusils à l'Ouest (no Cine Vox), La Derniére Fleche (com Tyrone Power), Je Suis un Aventurier, Tomahawk [este no cine Vox].
Grande Guerra - Kanal (insurreição dos polacos contra os nazis em 1944. Neste filme vêm‑se os horrores da guerra, só desejada pelos que ficam em casa e não se arriscam como os soldados se arriscam, a morrer sem saber quando), L'Almiral Canaris, no Cine Vox. (Filme de espionagem alemã hitleriana. L'Almiral Canaris, o chefe da espionagem alemã, que sempre foi contra a guerra, e que foi enforcado por ordem de Hitler  horas antes dos aliados tomarem a cidade onde ele residia. Grande parte das cenas deste filme são verídicas, pois são provenientes de documentários da época). Le Dictateur (Neste filme, que é de rir até mais não, Charles Chaplin põe no ridículo Hitler), Le Renard des Oceans.
Outros géneros - "Scipion, L'Africaine". La Guerre et La Paix [Impressionantes as marchas da infantaria cerrada contra a artilharia, em vagas sucessivas e dizimadas.] Houve espectadores que abandonaram a sala de exibição (Cine Potinière). O filme tinha muitas cenas cortadas, especialmente no que se refere à derrota dos franceses. Uma cena foi suprimida: quando Napoleão queima as bandeiras francesas, forçado a retirar‑se da Rússia após a invasão até Moscovo]
Circo - Sous le Grand Chapiteau du Monde (um dos melhores filmes que foram produzidos)
Outros filmes - "Dick Turpin, le Bandit Gentil‑homme", "Tu Seras un Homme, mon Fils" (com Tironne Power), "Les Grandes Familles" (mostrando que a riqueza não traz a felicidade), "Jordan, le Revolté" (filme de gangsters, no Vox), "Ulisse",  "Magie Vert" (vêm‑se as paisagens do Perú, Bolívia e Brasil)

Hoje devo ir ver um filme cómico: "Comme un Cheveu sur la Soupe". (1959.08.09)